Gustavo Antonio Solimeo
“A mim, Hegel ajudou-me a compreender Marx. Marx levou-me a redescobrir Jesus Cristo e o sentido de sua mensagem. Jesus e sua mensagem fizeram com que eu me desse conta de que os cristãos não somos cristãos, de que a Igreja Católica existente na História tem pouco de cristão. Com isto, sinto-me chamado a penitência, metanóia, reconstrução”.
Eis o itinerário que o Jesuíta espanhol Pe. José Maria Díez-Alegría percorreu à procura de um credo que desse um sentido à sua vida de católico, de Religioso e de Sacerdote. Não sabemos que sentido tinha essa vida antes da leitura de Hegel e de Marx. Seria de supor-se que ela tivesse algum sentido, talvez aquele que normalmente tem a vida de todos os católicos, de todos os Religiosos e de todos os Sacerdotes.
Seu credo, o sexagenário Jesuíta, ex-professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, apresentou-o ao grande público em um volume que tem por título "Yo creo en la esperanza...!", lançado pela Editorial Española Desclée De Brouwer (Bilbao, 1972), na coleção "El Credo que ha dado sentido a mi vida".
Esse "credo", veremos, não é o Credo que desde sempre deu sentido à vida de todos os que cremos na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, e que professaram todos aqueles que nos precederam marcados com o sinal da Fé.
Com a publicação (sem o "Nihil obstat dos Superiores, nem o "Imprimatur" da Autoridade Diocesana) de "Yo creo en la esperanza ...!", estourou, em fins de 1972, o "escândalo Díez-Alegria".
Os jornais da Espanha, de Roma e do mundo inteiro ocuparam-se do "caso" em largas manchetes.
O Provincial dos Jesuítas na Espanha apressou-se a esclarecer, numa carta enviada a todos os Bispos do país, que a Companhia "não pode assumir institucionalmente responsabilidade alguma, nem para o bem, nem para o mal, pelo fato do aparecimento deste livro, nem pelo seu conteúdo" (apud “Qué pasa”, Madrid, n.° 525, de 19 de janeiro de 1974, p. 7).
É verdade que à época da publicação do livro o Pe. Díez-Alegría vivia afastado de fato da Companhia de Jesus, exclaustrado por dois anos, por vontade própria e com o consentimento do M. R. Padre Geral. Mas não é menos verdade que continuava a pertencer juridicamente à Ordem (como, de resto, pertence até hoje).
Entretanto, o escândalo maior (se há ainda quem se escandalize nesta era "pós-conciliar") não está no fato da publicação do livro nem no seu conteúdo (de cuja responsabilidade procura pôr-se a salvo o cauto Provincial jesuíta da Espanha... ).
O maior escândalo, o escândalo máximo está. — isto sim! — no fato de o Revmo. Pe. José Maria Díez-Alegría, S. J., ter podido ensinar durante pelo menos dez anos (como ele mesmo o declara), dentro e fora da Gregoriana, com o tríplice prestígio de Sacerdote, Jesuíta e professor da famosa Universidade romana, as mesmíssimas doutrinas contidas em seu livro, sem ser perturbado, en lo más mínimo, por seus Superiores religiosos, por nenhum Bispo, nem tampouco por qualquer das autoridades a quem compete vigiar o que se ensina nos Seminários e nas Universidades Católicas (sobretudo as de Roma...). E, mais ainda, que haja e continue a haver legiões de Díez-Alegría, encarapitados em cátedras dos Seminários e das Universidades, e em postos de mando não só da Companhia (como o filocomunista Pe. Manuel Segura, Provincial do Chile que deu todo apoio a Allende) , mas também fora dela, em outras Ordens e Congregações, como o Ministro Geral dos Franciscanos, o brasileiro Frei Constantino Koser, que declarou estarem seus Religiosos dispostos a colaborar com os marxistas (cf. "Catolicismo", n.° 265, de janeiro de 1973, p. 8).
O escândalo está também no fato de que só depois de publicado o seu livro tenha sido o Jesuíta espanhol afastado de sua cátedra na Pontifícia Universidade Gregoriana.
Já em 1947, quando começou a ensinar Ética na Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus em Madrid, o Pe. Díez-Alegría — apesar do que ele chama de "condicionamentos" de sua origem espanhola e burguesa, e de sua formação católica e jesuítica — era levada a interpretar "em sentido relativamente aberto" as teses “da chamada doutrina social católica (Encíclicas de Leão XIII e Pio XI e discursos de Pio XII)" (obra cit., p. 27; os destaques em versalete, nas transcrições, serão sempre nossos).
Essas interpretações, diz ele, "tinham que conduzir-me a uma atitude crítica e, de uma forma ou de outra, militante, em relação à sociedade capitalista e à significação histórica que teve e continua a ter a Igreja Católica, particularmente nos últimos cento e cinquenta anos" (id., ibid.). Foi, porém, depois de uma viagem à Alemanha, em 1955, que nasceu nele "a necessidade de consciência de "opor-me" dentro da Igreja e da sociedade a que pertencia" (p. 28).
O estudo de Hegel e Marx levaria, afinal, o Religioso inaciano (?) a encontrar o "credo" que ia dar um sentido à sua vida...
"À luz das posições contrapostas de Hegel e de Marx, escreve Díez-Alegría, repensei o que se pode chamar a 'essência do cristianismo como vida vivida, na História e na sociedade humanas.
Mas isto levou-me a constatar que o cristianismo como vida vivida ESTÁ INÉDITO. Que os cristãos existentes na História não vivem o cristianismo. E que a análise que Karl Marx faz da religião como "ópio do povo", obstáculo estrutural à libertação do homem, "ideologia" sustentada e sustentante de uma situação social de opressão e injustiça estruturais (de forte dimensão econômica), vale, em uma enorme proporção (digamos oitenta por cento), da religião que os cristãos vivemos como cristianismo, e que é na realidade bem outras coisas" (p. 40).
E pouco adiante:
"[...] a compreensão de que é preciso dizer "não" à exploração e às estruturas de exploração. Desta compreensão sou devedor a Marx. Porque a mentalidade católica dos anos 50, mais do que ajudar-me a chegar a essa compreensão, serviu-me de forte obstáculo a ela.
Havendo compreendido que é preciso dizer "não" à exploração, não apenas, naturalmente, com palavras, mas também com a ação militante, a reflexão cristã fez-me avançar por um caminho novo. Surgiu diante de mim, em termos insuspeitados, o problema de religião verdadeira e falsa" (p. 47).
Em outra página, mais à frente, o Pe. Díez-Alegría acrescenta:
"A mim, Hegel ajudou-me a compreender Marx. Marx levou-me a redescobrir Jesus Cristo e o sentido de sua mensagem. Jesus e sua mensagem fizeram com que eu me desse conta de que os cristãos não somos cristãos, de que A IGREJA CATÓLICA existente na História TEM POUCO DE CRISTÃO. Com isto sinto-me chamado a penitência, metanóia, reconstrução.
Para mim, Hegel foi um sábio. Talvez um neto de Laméc (cf. Gên. 4, 23-24). Marx, um profeta, um rebento sui generis de Amós, de Jeremias e de Sofonias, o profeta messiânico da "sociedade sem classe”:(Sof. 3, 11-13)" (p. 53).
Estribado na sabedoria de Hegel e na inspiração profética de Marx, o Jesuíta chegou a "ver onde está a diferença entre religião falsa e religião verdadeira" (p. 56).
Citemos suas palavras: "Se a religião verdadeira não é, nem pode ser, instrumento da injustiça no mundo, e, por outra parte, a religião dos cristãos (concretamente dos católicos) tem sido e continua a ser (em conjunto, prevalentemente) fator de conservação de estruturas de opressão e injustiça, então o resultado é, inexoravelmente, que a religião que vivem os católicos não é a religião verdadeira" (pp. 59-60).
A pergunta se impõe: qual é, pois, a Religião verdadeira? A resposta também se impõe: é a que promove a derrubada das "estruturas de opressão e injustiça", segundo o jargão marxista do sexagenário Sacerdote, tão no estilo do Pe. Comblin, dos clérigos "tercermundistas" argentinos e dos "cristãos para o socialismo" do Chile (os quais até hoje choram a morte, não de Allende, mas da "experiência chilena"). Todavia, é preciso dar uma explicação "científica" àqueles que se chocam com a brutalidade da conclusão, isto é, os "moderados".
Vejamos como é que o douto sociólogo da Pontifícia Universidade Gregoriana elucubra sua teoria.
Há dois tipos possíveis de religião, a "ontológico-cultualista" e a "ético-profética".
A religião de tipo ontológico-cultualista floresceu no mundo greco-asiático da época helenístico-romana; compreende a História como um ciclo, que se repete como as estações do ano, e no qual o homem acha-se preso, não tendo outra saída que a "identificação cultual com um Deus" (p. 60), realizada através da liturgia, "que representa a AVENTURA MÍTICA DESSE DEUS, POR EXEMPLO UMA MORTE E UMA RESSURREIÇÃO. A ideia mítica de morte e ressurreição vem sugerida pela sucessão das estações e pelo ciclo natural da vida vegetal, especialmente" (p. 61).
A salvação oferecida por este tipo de religião — sempre segundo nosso sociólogo — é individual e meta-histórica, ou seja, dá-se fora do tempo, numa outra vida. Os indivíduos podem salvar-se pela via mistérico-litúrgica. "Mas a História, A AVENTURA HUMANA COLETIVA, é irredimível" (ibid.).
Conhece o leitor alguma religião que cultive a "ideia mítica" da morte e ressurreição de Deus, que procure uma "identificação cultual" com Ele através da liturgia e espere uma salvação "individual", numa outra vida? Não pairem dúvidas! O nosso Padre-sociólogo quer fazer-se entender e por isso é explícito: "A religião dos cristãos (concretamente DOS CATÓLICOS) é hoje prevalentemente UMA RELIGIÃO ONTOLÓGICO-CULTUALISTA" (p. 62) ; "o cristianismo vivido pelos cristãos (diferentemente do cristianismo de Paulo ou dos Evangelhos) é uma religião ontológico-cultualista e, COMO TAL, UMA RELIGIÃO FALSA, justamente denunciada por Marx [o Profeta!] como algo que é necessário superar" (p. 63).
Ao contrário, "o tipo de religião ético-profética corresponde à religião bíblica do antigo Israel e à religião de Jesus e dos primeiros cristãos, tal como se apresenta ou se reflete no Novo Testamento.
Esta religião tem uma concepção linear aberta (digamos retilínea) do tempo histórico.
Deus é libertador, e a libertação que Deus promete e que o crente espera É HISTÓRICA. Trata-se de REALIZAR NA HUMANIDADE HISTÓRICA A LIBERTAÇÃO DA OPRESSÃO, O REINO DA JUSTIÇA, A PLENITUDE DA FRATERNIDADE E DO AMOR" (p. 61).
Em outras palavras, a religião "ético-profética" do Pe. José Maria Díez-Alegría quer estabelecer a nova sociedade do futuro, que os "cristãos" identificam com o "Reino de Deus na terra" e os marxistas com o comunismo ou o socialismo, segundo a "escatologia" da "teologia da libertação", da "teologia da esperança" ("Yo creo en la esperanza...!" é o título de seu livro), e de outras tantas vertentes da "teologia marxista", tão bem descrita e analisada pelo erudito teólogo polonês residente no Chile, o Revmo. Pe. Miguel Poradowski, no documentado ensaio "A gradual marxistização da Teologia", que "Catolicismo" apresentou em seu número de outubro último.
Quem é, então, para o Jesuíta, esse "Jesus" que Marx o ajudou a "redescobrir"?
"Jesus — escreve o Sacerdote — foi um profeta [para ele, Marx também o foi...], situado na linha dos profetas de Israel [Marx também: Amós, Jeremias, Sofonias...], no sentido de sua denúncia sem compromisso da injustiça dos poderosos. Jesus anatematizou a acumulação de riquezas, fruto e base do egoísmo dos "ricos", e fator de injusta opressão dos desafortunados. Jesus externou ao máximo sua solidariedade com os humildes, com os oprimidos, com os pobres. Por tudo isto, Jesus foi condenado à morte, como agitador político, por um tribunal romano. Um fator importante para chegar a este resultado, foi o conflito de Jesus com uma casta sacerdotal privilegiada, politicante e antiprofética" (p. 64).
(Procure o leitor com cuidado nas páginas do livro alguma expressão que deixe entrever a crença do Padre na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo: "Yo creo en el HOMBRE Jesus, real y concreto COMO YO" , e outras formulações do gênero, — é só o que encontrará).
Ora, "a religião dos cristãos (concretamente dos católicos) é hoje prevalentemente uma religião ontológico-cultualista. Também a ação do "aparelho" eclesiástico está orientada, em último termo, à conservação de uma religião ontológico-cultualista, contra os germes, que se manifestam na Igreja, orientados na direção de uma reconquista plena da religiosidade ético-profética" (p. 62).
Leia-se: assim como Jesus foi perseguido e entregue à morte pela "casta sacerdotal politicante e antiprofética", acumpliciada com os "romanos" (isto é, os poderosos, os "imperialistas" da época), assim também os que hoje querem "libertar" a Igreja da "opressão dos poderosos" (as "estruturas capitalistas") são perseguidos pelo "aparelho" eclesiástico... (são deveras?).
Não. O nosso sociólogo não esquece um só artigo em seu antiCredo. — "Credo in Unam Sanctam Catholicam et Apostolicarn Ecclesiam" — diz o Símbolo Niceno-
Plinio Corrêa de Oliveira
Em uma sala junto à Igreja da Piedade, em Salvador, Religiosos capuchinhos permitiram que se instalasse uma "boutique", na qual se vendem objetos "unissex", entre os quais biquínis.
Como bem se pode imaginar, a iniciativa causou escândalo a muitos frequentadores do templo.
Frei Benjamin Capelli explicou que o aluguel da loja garantirá maior disponibilidade de renda para as obras assistenciais da paróquia.
Sentindo talvez a inconsistência da alegação — pois a imoralidade do meio não se justifica pela liceidade do fim — Frei Bruno Rossi aduziu outro argumento: "Só lamento — disse ele — que alguns dos nossos irmãos, certamente firmes e radicados na fé, se escandalizem com tanta facilidade e alimentem preconceitos tão pueris. É interessante e sintomático que Frades tradicionalmente austeros como os Capuchinhos não tenham percebido a inconveniência do negócio. Será que não chegou a hora de derrubar falsos preconceitos?" Esses dados são extraídos de uma notícia do "Jornal do Brasil", de 5 de dezembro passado. Ou seja, de exatamente há dois meses.
* * *
Que eu saiba, a informação não teve desmentido. Sentir-me-ei muito alegre se alguém me escrever que o fato noticiado é inverídico. Comprometo-me desde já a inteirar do desmentido os leitores.
Duvido, porém, de que ele venha. E assim vou adiantando meu comentário.
Quando, há alguns meses atrás, publiquei uma notícia de um convento de Religiosas da Espanha que fabricava biquínis, causei entre os leitores explicável sensação. E, se bem que ninguém ousasse desmentir tão insólita notícia, não faltou quem a julgasse duvidosa: tanto escândalo não podia acontecer...
Agora caso análogo estoura em Salvador. Pois não há tanta diferença entre fabricar biquínis e vendê-los.
Contudo, nem do caso espanhol, nem do baiano, a imensa maioria das pessoas tira as conclusões devidas.
Uma destas, entretanto, salta aos olhos. Se desde sua fundação até nossos dias, a Igreja considerou com horror o nudismo — do qual o biquíni é uma das manifestações mais agressivas — e se, em nossos dias, entidades eclesiásticas fabricam e vendem biquínis, de duas uma:
1 — ou a Moral católica mudou totalmente, e então a Igreja não é infalível nem divina;
2 — ou essas entidades eclesiásticas — ao afirmarem, implícita mas ostensivamente, a legitimidade do biquíni — adulteram o ensino da Igreja, e por si mesmas se excluem desta.
Ora, como a primeira hipótese é de todo em todo inaceitável, a segunda se impõe.
* * *
Não tenhamos medo de ver a verdade de frente. Este tema — do nudismo — levanta uma pergunta que vai muito além do caso dos dois conventos "biquinistas".
É absolutamente impossível que o uso do biquíni e de outras formas de rombuda agressão sexual se tenha generalizado tanto, sem que haja muitos diretores espirituais que concedam absolvição a pessoas que, por seu modo de trajar, não poderiam recebê-la. A eles, também, a pergunta deve ser feita. — Se acreditam que a Moral da Igreja mudou, como ainda se dizem católicos? E se permitem às suas penitentes que usem biquíni, com que direito se inculcam como Padres católicos?
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Obviamente, a pergunta vai ainda mais longe. Das pessoas de sexo feminino que participam da agressão sexual, inúmeras aprenderam, no Catecismo, que a Moral católica não muda.
- Se elas acham que mudou, como podem admitir a infalibilidade e a divindade da Igreja?
- E se acham que não mudou, como querem ser tomadas como católicas?
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Mas — dirá alguém — usar biquíni é pecado contra o 6.° ou 9.° Mandamento, conforme o caso. Contudo, uma pessoa não peca contra a Fé por violar um desses Mandamentos. Logo, minha argumentação é sem base.
Evidentemente, não digo que quem fabrica ou vende biquínis, ou os usa, peca contra a Fé. Mas quem afirma, implícita ou explicitamente, que a Moral da Igreja mudou, este sim, peca contra a Fé.
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E daí uma pergunta que, também a propósito da conduta face ao comunismo e de diversos outros assuntos, pode ser feita: quem ainda é católico apostólico romano dentro desse imenso magma de 600 milhões de pessoas — Cardeais, Bispos, Sacerdotes, Religiosos e leigos — habitualmente tidos como membros da única e imperecível Igreja de Deus?
Escreve-me um leitor: "Entre outros títulos de glória, o Sr. atribuiu a Frei Galvão, em artigo recente, o de "escravo de Maria". O fato me choca. Este título não traz glória nem para Frei Galvão nem para Maria. A escravidão é a sujeição de um ente a outro, pela força. Ela resulta de que o mais forte tenha roubado ao mais fraco (pela superioridade física ou pela pressão econômica, pouco importa) o atributo essencial da dignidade pessoal, isto é, o direito de cada um a dispor de si segundo seu exclusivo entendimento e interesse. A palavra "escravidão" lembra o chicote, o açoite, as algemas, a subnutrição e as perseguições policiais. Como pode ter escravos Maria, a quem os católicos cultuam como rainha da bondade? E como pode alguém ter por honra ser escravo, ainda que seja de Maria? Convenhamos, tudo isto é absurdo".
Tal estilo de relacionamento entre Maria e um seu devoto seria efetivamente absurdo. Ora, sempre que uma pessoa sensata faz algo que parece absurdo, deve-se logicamente procurar para seu ato uma interpretação que o faça ver em seu verdadeiro aspecto, explicável e sensato. Se o grande Frei Galvão, tão obviamente sensato e virtuoso, julgou honrar seu burel de Franciscano e seu sacerdócio fazendo-se escravo de Maria, ao missivista tocaria o dever de presumir que há para isto uma explicação razoável e elevada. Tal explicação pode ser encontrada facilmente na sua melhor fonte, o "Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge" de São Luís Maria Grignion de Montfort, livro aprovado pela Igreja Católica e tido geralmente como uma das obras mais eminentes da Mariologia.
Tentarei explicar aqui, com vistas ao leitor, o que é essa escravidão marial, à qual São Luís Maria chama "esclavage d'amour" e — note-se —não da força bruta, da coerção.
* * *
Ainda não há muitos anos, um dos mais belos elogios que se poderia fazer de alguém — Chefe de Estado, pai de família, Sacerdote, magistrado ou militar — era qualificá-lo de "escravo do dever". Afirmava-se, assim, que ele era capaz de arcar com quaisquer riscos ou prejuízos para não transgredir os deveres inerentes a seu cargo. Ou, até, para fazer tudo quanto fosse simplesmente aconselhável no sentido do mais esmerado cumprimento de sua missão.
Análogo significado tinha a afirmação de que um Chefe de Estado ou de família, um magistrado ou militar fazia de sua missão "um verdadeiro sacerdócio".
A palavra "escravo" tinha pois, aí, um sentido absolutamente distinto do mencionado pelo leitor. Qualificava alguém que, livremente persuadido da nobreza e elevação de seus deveres e de sua missão, resolvera, também livremente, imolar, a bem dela, se fosse o caso, até mesmo seus legítimos direitos e seus mais caros interesses.
Nessa "escravidão" cheia de amor ao dever, ao ideal, à missão, o homem nem de longe é escravo à maneira dos prisioneiros de guerra romanos ou dos negros embarcados à força para o Brasil. Pelo contrário, ele exerce racionalmente, e no mais alto grau, a sua liberdade, e faz um uso absolutamente lúcido e nobilitante, de si e de tudo quanto é seu.
Assim é o sentido que São Luís Grignion de Montfort dá à consagração de alguém como "escravo de Maria".
É escravo de amor, de Maria Santíssima, quem, persuadido sem qualquer coação, das prerrogativas excelsas que a Ela tocam como Mãe de Deus, e das perfeições morais de que Ela é modelo, a Ela consagra livremente e por amor "seu corpo e sua alma, seus bens interiores e exteriores, e até o valor de suas obras boas passadas, presentes e futuras, deixando a Ela o direito pleno e inteiro de dispor de si e de tudo o que lhe pertence, sem exceção, segundo o gosto dEla, para a maior glória de Deus, no tempo e na eternidade": as palavras são do Santo. E em troca dessa lúcida e libérrima consagração, Maria, Mãe de misericórdia, não trata seu escravo nem de longe com o egoísmo baixo e violento do romano ou do negreiro, mas com o amor materno, cheio de afeto e consideração, da mais generosa, afável e indulgente das mães.
E passo aqui a outra analogia elucidativa. Essa posição do "esclave d'amour" de Nossa Senhora — considerada enquanto abnegada imolação dos direitos e interesses de alguém, em benefício de um ideal sacrossanto, como é o serviço da Virgem-Mãe — tem muito de comum com o ato pelo qual um Frade ou uma Freira se integra em uma Ordem religiosa, renunciando, num gesto supremamente lúcido e livre, à disposição de si e ao próprio patrimônio, pelos votos de obediência, pobreza e castidade.
Só que quem se consagra como escravo de Maria, sob certo aspecto ainda é mais livre, pois ao contrário do Frade ou da Freira, não faz votos, e assim conserva a faculdade de desligar-se, a qualquer momento, dessa sublime consagração.
Em todos os países da terra, a faculdade de agir assim se considera liberdade. Exceto, é claro, nos países comunistas. Mas nestes, o que é ser livre? — É ser escravo, ao pé da letra.
— E por sinal: o autor da carta é anticomunista?