P.06-07
"Eu creio... EM MARX"...

Conclusão da pág. 2

Constantinopolitano, isto é, o Credo que o Celebrante reza na Missa desde o século IV

(ou antes, rezava, até 1969).

"Creer sólo en Jesucristo" — é o que professa o ex-lente da Gregoriana (já vimos quem é "Jesus" para ele).

"Alguns jovens amigos, quando lhes exponho o sentido de minha fé, me dizem: — Teu modo de viver e conceber a fé em Jesus Cristo parece-nos de todo positivo. Mas, se esta é a tua fé, como podes permanecer na Igreja Católica?" — escreve o Pe. Díez-Alegría (p. 141).

Pergunta mais do que lógica, que o Padre responde de modo dialético (no sentido hegeliano e marxista do termo):

"A expressão "permanecer na Igreja" tem uma certa ambiguidade, porque a própria palavra Igreja tem uma polivalência dialética (poderíamos dizer), que faz com que os contornos de sua significação se revelem necessariamente algo fluidos. Posso até dizer isto: eu permaneço na Igreja permanecendo na Igreja Católica Romana, mas isto não significa que as expressões "permanecer na Igreja" e, "permanecer na Igreja Católica Romana" sejam estrita e adequadamente intercambiáveis.

A Igreja de Cristo é mais do que a Igreja Católica Romana. E a Igreja Católica Romana não é em tudo e para todo o sempre Igreja de Cristo.

[...] a pequena comunidade apostólica de Jerusalém, no dia de Pentecostes, era a Igreja de Cristo. Mas a igreja Católica Romana atual, as Igrejas ortodoxas orientais separadas de Roma e as Igrejas protestantes (umas mais, outras menos, umas de um modo, outras de outro, Cristo o julgará no seu dia) estão qualitativamente muito longe daquela primígena comunidade apostólica. Por isso, todas elas (em diversos modos) "SÃO" e "NÃO SÃO" Igreja de Cristo. E pertencer a uma delas não é, só por isso, pertencer à igreja de Cristo" (pp. 141-142).

"Pois bem, se a Igreja visível É e NÃO É a verdadeira Igreja de Cristo (É e NÃO É, AO MESMO TEMPO), e se deve (a cada instante), chegar a sê-lo, mas não o conseguirá com plenitude até a parusia, parece-me que o que Cristo pede a todos os que creem nEle são duas coisas: permanecer na Igreja visível (enquanto depender de cada um), mas permanência ativa e crítica (autocrítica e eclésio-crítica), com uma liberdade cristã irrenunciável de consciência e de expressão: de "diálogo" (pp. 145-146).

Mas, "se for dado a alguém escolher entre renunciar à "atitude ativa" [...] ou ser excluído da Igreja Católica por um mecanismo jurídico de excomunhão anatemática [...], esse alguém, se crê em Jesus Cristo com fé genuína, tem que escolher a "atitude ativa" [...]. A responsabilidade de sua exclusão da Igreja Católica seria daqueles que o excluem. Não dele" (p. 142). (Note-se nas entrelinhas a ameaça à Autoridade de "entregá-la às feras" se ela quiser tomar alguma atitude...).

Nas últimas páginas do livro o Padre explicita mais claramente o porquê de sua permanência na Igreja Católica: contribuir "com minha atividade de professor [da Universidade Gregoriana, não esqueçamos!] e conferencista, para POR EM MARCHA UMA REVOLUÇÃO CULTURAL NA IGREJA, a fim de que o cristianismo dos cristãos se converta em ético-profético, e sua atitude em face do processo revolucionário de libertação dos oprimidos chegue a ser um dia a que corresponderia a uma genuína fé em Jesus Cristo" (p. 195).

Permanecer na Igreja, para transformá-La de dentro dEla. Não é essa a estratégia do IDOC e dos "grupos proféticos", para transformar a Santa Igreja em uma Igreja-Nova panteísta, desmitificada, dessacralizada, desalienada e igualitária, a serviço do comunismo? (Ver "Catolicismo", n.° 220-221, de abril-maio de 1969).

O "pecado social" da Igreja

No afã de pôr em marcha a sua "revolução cultural" dentro da Igreja, o sociólogo da Universidade Gregoriana não se cansa de acusá-La. Em conferência pronunciada em Oviedo, em 1970, afirmou: "A Igreja cometeu um grande pecado social e histórico nos últimos dois séculos. A aceitação acrítica e a colaboração com referência ao sistema capitalista moderno, que corresponde a uma concepção anticristã do homem e da sociedade, e que criou uma sociedade demasiado injusta, perante a qual a Igreja tem sido e é demasiado conservadora" (p. 56).

E mais além: "O pecado histórico do cristianismo do século XIX foi o de ter aceito a filosofia econômica e social do capitalismo (aceitou-a de fato), ao mesmo tempo que rejeitava os aspectos positivos do liberalismo político. Esta aceitação dos pressupostos do capitalismo acentuou-se a partir de 1848, pela reação totalmente negativa dos cristãos da época (com poucas exceções) perante a revolução socialista. A oposição demasiado monolítica e acrítica ao fenômeno histórico do socialismo moderno é outra face do pecado histórico e social da Igreja no século XIX, que ainda hoje constitui uma pesada hipoteca" (p. 58).

Em suma, o grande pecado da Igreja foi opor-Se ao socialismo, ao invés de colaborar com ele, como quer o Pe. Díez-Alegría, e com ele o IDOC e os "grupos proféticos", os "Padres do Terceiro-Mundo", os "cristãos para o socialismo".

"Profeta" da sociedade sem classes

Linhas acima, vimos como o Pe. Díez-Alegría se refere a Sofonias como o "profeta messiânico da "sociedade sem classes". Não sabemos em que o douto Jesuíta baseia essa qualificação. Se algum qualificativo cabe a Sofonias, este será, parece-nos, o de Profeta do Dies irae (cf. Sof. 1, 15-16).

Na realidade, já o sabemos, o mestre do nosso Padre não é Sofonias, mas Karl Marx, este sim, "profeta" da sociedade sem classes. Seguindo seus passos, o ex-professor da Gregoriana considera um "tremendo equívoco" apresentar como ideal cristão a colaboração das classes. "A colaboração das classes — escreve — supõe a aceitação de um sistema de classes fortemente discriminatórias. Não. O IDEAL CRISTÃO É O DE UMA SOCIEDADE SEM CLASSES" (p. 50). Em lugar destas, deve haver tão só "grupos sociais funcionais", cujas diferenças não são "discriminatórias" nem baseadas nos "privilégios", mantendo-se numa "linha horizontal".

Ora, "a aceitação deste ideal orientador supõe uma revolução de estruturas em nossas sociedades capitalistas burguesas". É verdade que "nas sociedades socialistas podem surgir novas contradições de "classe", que será preciso esforçar-se por superar. Mas, de fato, COM RELAÇÃO AO PROBLEMA DA ELIMINAÇÃO DE DISCRIMINAÇÕES DE CLASSE, a meu ver, AS SOCIEDADES SOCIALISTAS MARCAM UM PROGRESSO EFETIVO" (p. 50).

Agora, se é necessário procurar passar de nossa sociedade (liberal, burguesa, capitalista) para uma sociedade que se aproxime do ideal da sociedade sem classes (socialista), "poder-se-á chegar a isso sem luta, não NECESSARIAMENTE armada?" — pergunta o Pe. Díez-Alegría (p. 51). "E se esta luta é NECESSÁRIA, com que fatores sociais da realidade podemos contar para ela? Com as classes privilegiadas e superiores ou com as classes inferiores que sofrem discriminação?" — torna a perguntar o Jesuíta. E responde: "Evidentemente, em seu conjunto, uma luta como esta, quando tomada a sério, apresenta-se como luta das classes exploradas e dominadas (com todos os que se somam à sua luta) contra as classes privilegiadas, que, em conjunto, defendem seus privilégios (com quanta força e violência, temo-lo diante dos olhos)". Por isso, "sejam benvindos todos os que queiram somar-se na luta por uma sociedade sem classes" — exclama ele (ibid.).

Na referência a tal luta, "não necessariamente armada", não há um convite implícito à guerrilha e ao terrorismo? "Na situação atual do mundo, está acontecendo que um número crescente de cristãos chegam à convicção de que têm o dever de fazer causa comum com quantos se comprometem na causa revolucionária pelo socialismo" (p. 54). Portanto, também com os guerrilheiros e terroristas.

"As condições objetivas da sociedade histórica são tais — prossegue — que seria um grave pecado contra o Evangelho tentar impedir esses cristãos de fazerem as suas opções, neste ponto, seguindo livremente o ditame de sua consciência.

Há duzentos anos a comunidade católica e suas estruturas de poder e de cultura querem opor-se, em nome da fé, a qualquer mudança revolucionária de estruturas. Este fato brutal, desde João XXIII e do Concílio Vaticano II está começando a perder o seu monolitismo" (ibid.).

Abolição da propriedade privada

"A teoria comunista pode ser resumida em um simples princípio: abolição da propriedade privada", reza o Manifesto Comunista, de Marx e Engels.

"Não há cristianismo sem comunidade de corações, e não há comunidade de corações sem EFETIVA COMUNIDADE DE BENS", proclama o Pe. Díez-Alegría numa conferência pronunciada em Assis, a 30 de dezembro de 1967 (p. 93).

Se em 1947 o Padre-sociólogo, em suas aulas na Faculdade de Filosofia dos Jesuítas em Madrid, já interpretava em sentido "relativamente aberto" as teses da "chamada doutrina social da Igreja" (p. 27), suas "reservas" quanto à doutrina a respeito do direito de propriedade — inclusive a propriedade dos meios de produção — como sendo de direito natural, vinham de bem antes, do tempo em que cursava Filosofia, nos anos de 1936-1937.

"Havia em mim — escreve ele — já desde então, uma confusa intuição de que a doutrina do Magistério sobre a propriedade privada dos meios de produção ligava poderosamente a Igreja ao capitalismo, opunha-a radicalmente ao socialismo (sobre um tema que nada tinha que ver com a fé), e fazia a Igreja servir à causa do conservantismo social, levando-a de encontro aos anseios de libertação dos oprimidos" (p. 88).

O Pe. Díez-Alegría descreve como procurou livrar-se "da tremenda hipoteca que para minha consciência de católico representava a afirmação do magistério dos Papas de que a propriedade privada dos meios de produção é "direito natural". Uma afirmação que PROCEDIA DO LIBERALISMO BURGUÊS DO SÉCULO XIX, e não da genuína tradição cristã. Uma afirmação, em última análise, e falando sem eufemismo, "FALSA" (pp. 101-102). Nem mais, nem menos: para o Padre, é falsa a doutrina dos Papas a respeito da propriedade privada, que para ele nada tem que haver com a Fé (como se não tivesse muito que ver com a Moral, já que existem o 7.° e o 10.° Mandamentos: Não roubarás e Não cobiçarás as coisas alheias). Mais ainda: essa "doutrina do Magistério sobre a propriedade privada [...] e sua atitude na dialética histórica entre capitalismo e socialismo, comparadas com os valores evangélicos referentes aos bens deste mundo, SÃO UMA DEGENERAÇÃO" (pp. 105-106).

Socialismo, a única opção evangélica

"A promulgação pelo Concílio Vaticano II da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, na qual (finalmente!) se abandonava a INFELIZ AFIRMAÇÃO DE QUE A PROPRIEDADE PRIVADA DOS MEIOS DE PRODUÇÃO SEJA DE "DIREITO NATURAL" (p. 102), permitiu-lhe ir mais longe nas suas conclusões.

"No presente momento de evolução da História, a "via para o socialismo" [...] representa uma possibilidade de organizar a "cidade humana" de maneira que não esteja em contradição com os grandes valores evangélicos [...]. O capitalismo [...] não dá uma tal possibilidade" (p. 103). Por isso, "é preciso convir em que A ESTRUTURA DA SOCIEDADE DEVE SER FUNDAMENTALMENTE SOCIALISTA, no sentido explicado de um socialismo "de face humana". [...] Creio que um cristão sincero [...] está muito disponível para uma guinada para o socialismo" (p. 105).

Apenas para "completar a ficha"

Não pretendemos transcrever aqui tudo o que o Padre diz sobre o celibato e o sexo (como também não o fizemos com relação aos demais pontos por ele abordados). Apresentaremos algumas amostras, apenas — como ele escreveu — "para completar sua ficha".

"Vou fazer 61 anos e não tive nenhuma aventura de amor. Digo-o sem nenhuma vaidade [...]. Completarei minha "ficha" dizendo que, se não me equivoco, sou nitidamente heterossexual. E inteiramente o contrário de um misógeno" (p. 165). "A primeira coisa que quero dizer é que não sou um "herói" da castidade. [...] não tem muito sentido, pelo menos falando em geral, um "heroísmo" da castidade" (p. 166).

Quanto à "moral sexual ensinada oficialmente na Igreja", esta moral, "EM SI MESMA e na maneira como concretamente tem sido entendida e praticada, conduz a indescritíveis torturas de escrúpulos, a inibições insanas, a tensões insuportáveis. Isto vi os outros sofrerem, e eu mesmo sofri, até que consegui livrar-me de certos enfoques e de certos aspectos da moral tradicional, [...] aquelas normas condicionadas pela falsa ideia de que o sexo, fora do matrimônio e, além disso, de alguma forma de ordenação à procriação, é mau em todo o âmbito de suas manifestações" (p. 170).

Santo Agostinho "em sua concepção do sexo nunca chegou a livrar-se vitalmente do maniqueísmo e exerceu um influxo muito negativo na teologia moral cristã" (p. 178). "Mesmo São Paulo [...] parece ter uma visão algo parcial e negativa do matrimônio" (p. 182).

* * *

Acha-se reunida em Roma, desde o Primeiro Domingo do Advento (1.° de dezembro), a XXXII Congregação Geral da Companhia de Jesus. Acontecimento de si notável, que se reveste agora de especial importância, "entre outras causas pelo momento histórico que atravessam a Igreja e o mundo", conforme observou o M. R. Geral, Padre Pedro Arrupe, na carta de convocação da assembleia, datada de 8 de setembro de 1973.

Importante também porque essa Congregação, ao reexaminar o serviço apostólico da Companhia (um dos objetivos que lhe foram mais claramente traçados), deverá concentrar sua atenção sobre qual foi o cumprimento dado à missão especial que Paulo VI confiou aos Jesuítas, na alocução aos Eleitores da Congregação Geral anterior, a 7 de maio de 1965: opor uma frente à invasão do ateísmo (cf. "Jesuítas / Anuário da Companhia de Jesus / 1974-1975", Edições da Cúria Generalícia, p. 130).

Ora, a invasão do ateísmo, em nossos dias, dá-se sobretudo através da influência marxista sobre o pensamento e a atuação dos católicos, inclusive Padres e Bispos, como bem o demonstrou o Pe. Poradowski, no seu trabalho anteriormente referido. Assim, é de se esperar que a Congregação Geral, ao ocupar-se do desempenho dado ao encargo recebido de Paulo VI, examine a invasão do ateísmo, através do marxismo, no seio da própria Companhia de Jesus. E que elimine todos os Díez-Alegría que a infiltram.

Esse é o "postulatum" (pedido) que, despretensiosamente, queremos somar aos 934 outros já submetidos à apreciação dos RR. PP. Jesuítas, reunidos na sua XXXII Congregação Geral.


Calicem Domini Biberunt.

ABADES SANTOS GOVERNAM CLUNY QUASE 200 ANOS

Fernando Furquim de Almeida

A fim de evitar confusões, é conveniente explicar desde já que a palavra cluny tem, em geral, dois significados. Um deles diz respeito à Abadia de Cluny, fundada em 910 pelo Bemaventurado Bernon, e que desapareceu na Revolução Francesa, quando seus últimos monges pereceram nas mãos dos revolucionários. Sua igreja, a célebre Igreja de São Pedro de Cluny, foi a maior do mundo até a construção da Basílica de São Pedro do Vaticano, edificada propositadamente com alguns metros a mais do que a abacial de Cluny. Adornado de riquezas artísticas sem número, esse monumento de arte e resumo de um glorioso passado de vários séculos foi dinamitado pela prefeitura da pequena cidade de Cluny, no tempo de Napoleão. Esse crime tão patente forçou a Revolução a inventar uma lenda que pelo menos excluísse Bonaparte desse vergonhoso episódio. Reza essa lenda que certo dia, em que dava audiência às prefeituras de várias cidades, ao ser anunciada a delegação de Cluny, o Imperador voltoulhe as costas, dizendo que não recebia bárbaros.

O outro significado de Cluny corresponde ao que poderíamos chamar de Congregação de Cluny, embora esse nome não seja completamente adaptável à realidade histórica. Ele designa o conjunto de mosteiros governados pelo abade de Cluny, e que seguiam o mesmo "Ordo", ou seja, tinham os mesmos usos e costumes. Esse conjunto constituía como que uma única abadia beneditina, e tinha por cabeça o mosteiro fundado pelo Beato Bernon. Será neste último sentido que usaremos a palavra Cluny. Quando tivermos que nos referir à abadia propriamente dita, declaráloemos explicitamente.

* * *

Há uma diferença enorme entre a Cluny dos dois primeiros séculos e a dos tempos posteriores. Foi nos primeiros duzentos anos que Cluny chegou à perfeição que tanto entusiasma os que estudam a sua história. Neles é que a grande Abadia foi a luz do mundo, a segunda Roma, procurada pelos peregrinos de toda a Cristandade quando as guerras e epidemias não lhes permitiam ir à Cidade Eterna. Atingindo um alto grau de sabedoria e santidade, Cluny foi então não só o modelo do monacato e de toda a Cristandade, como também o modelador da alma da Idade Média. Nesse período, os seus monges e abades eram venerados pelo povo fiel, que neles via o exemplo que deveria imitar.

Estavam eles por toda parte. Nos mosteiros, cantavam os louvores de Deus em horas determinadas, na medida do possível as mesmas para todos, para que todos juntos, até os que estivessem viajando, pudessem participar das mesmas orações, de modo que todo o imenso império de Cluny se prosternava ao mesmo tempo, para adorar o Criador de todas as coisas. E todo o mundo sabia que naquelas horas podia contar com as preces dos cluniacenses e tomar parte nestas, a elas se associando na adoração e nas súplicas a Deus. Era também nos mosteiros que esses filhos de São Bento se preparavam para formar a sociedade medieval, sacralizando todas as instituições e atividades humanas, procurando a perfeição em tudo, para que tudo fosse perfeito e belo, pois não compreendiam nada do que faziam sem a beleza, porque Deus é belo em tudo o que fez.

Quando se fala de Cluny, entendese esse período de tal forma grandioso, que ofusca todo o resto da história cluniacense. Não é que Cluny tenha deixado de ser grande. Pelo contrário, por muito mais tempo ainda, não só na Idade Média, mas mesmo no início da Idade Moderna, a Abadia conservou o seu prestígio. Foi pouco a pouco que ela decaiu. O brilho que manteve ainda depois desses dois séculos deixase ver nitidamente pela condição social de muitos de seus abades: vários príncipes da casa de Lorena e muitos grandes nobres da França e da Inglaterra.

No fim do século XVI, porém, a Abadia já não era senão uma sombra do que fora. O abaciato caíra sob o fatal regime da comenda. Mas era tão glorioso o passado de Cluny, que ainda nessas tristes condições Richelieu e Mazarino quiseram ser seus abades, porque o título de Abade de Cluny acrescentava alguma coisa ao prestígio desses homens postos no pináculo de todas as grandezas humanas.

De 910 a 1109, Cluny teve seis abades: o Bemaventurado Bernon (910926), Santo Odon (926944), Aymard (944954), São Maïeul (954994), Santo Odilon (9941049) e São Hugo (10491109). Os próprios cluniacenses consideravam Santo Odon como o verdadeiro fundador da Abadia, e realmente foi ele que deu a Cluny a sua fisionomia definitiva. Além disso, logo depois da fundação Santo Odon foi auxiliar direto do Bemaventurado Bernon, e pôde já desde o início trabalhar nessa grande obra. O terceiro abade, Aymard, governou pouco tempo, porque ficou logo cego e passou a direção efetiva a São Maïeul, seu coadjutor. Na realidade, nesses duzentos anos Cluny foi governada pelos quatro abades santos: Santo Odon, São Maïeul, Santo Odilon e São Hugo.

Esses prelados eram varões extraordinários. Todos refletiam no exterior a luz peculiar da formação cluniacense. O homem medieval sabia reconhecer o maravilhoso e ver a Deus em seus eleitos, de modo que a mera presença dos abades de Cluny provocava entusiasmo, conversões súbitas e desejo de colaborar com eles. É o caso, por exemplo, de um bandido italiano que, à simples vista de Santo Odon, pediu para entrar em Cluny, indo lá morrer pouco depois em odor de santidade. Ou o de Hugo de Arles, Rei da Itália, que nada recusava aos monges porque conhecera Santo Odon. Não era só a presença de algum dos abades cluniacenses que provocava movimentos de piedade popular. Muitas vezes o povo queria ao menos ver algo que os tivesse tocado. Durante uma visita de Santo Odilon a Pavia, onde fora encontrarse com o Imperador, as cidades vizinhas o obrigaram a mandar o seu cavalo percorrêlas, para que vissem pelo menos a montaria que ele usava.

Os quatro abades tinham esse fundo comum cluniacense, reconhecido até pelo povo, embora fossem muito diferentes entre si. É esse fundo comum que é o cerne da personalidade de cada um deles. Foi o que viu muito bem D. Jacques Hourlier em seu estudo sobre Santo Odilon: "O que há de mais notável na história de Cluny é que sempre revelaram em suas atitudes a permanência de "alguma coisa" própria de Cluny — uma unidade de pensamento, de orientação, de estilo, apesar da evidente diversidade de caracteres e temperamentos, apesar das mais profundas transformações da sociedade" (D. Jacques Hourlier, "Saint Odilon, Abbé de Cluny", Bibliothèque de l’Université, Louvain, p. 50).

* * *

Essa "alguma coisa" podese encontrar no pensamento, nos princípios que orientaram os quatro santos abades na formação de Cluny. É o que fazem os historiadores, ao pesquisar os poucos documentos que chegaram até nós, sobretudo as obras de Santo Odon e Santo Odilon. Resumindo as conclusões a que chegaram, acreditamos poder dar aos nossos leitores uma ideia clara de quais foram os princípios que nortearam os quatro abades que construíram Cluny.


NOVA ET VETERA

NO BANCO DOS RÉUS, A SOCIEDADE DE CONSUMO

Péricles Capanema

Ainda há poucos anos a civilização de consumo imperava em escala planetária. As contestações a tal modo de viver e de ser provinham de círculos minoritários, constituídos — por razões opostas — por movimentos tradicionalistas católicos ou por cenáculos da esquerda intelectualizada.

Os idólatras da sociedade de consumo não se sentiam incomodados por essas discrepâncias. Em primeiro lugar, porque eram ideófobos. O ídolo prescrevia-lhes tal fobia como um ato de culto. Em segundo lugar, a sociedade de consumo mostrava-se tão saudável, tão pujante, tão cheia de recursos, que fatalmente absorveria os germes de destruição porventura existentes em seu seio.

Os adoradores do ídolo tinham na ponta da língua a resposta para qualquer objeção. Se se acenava com o problema do "hippismo", diziam: "Fenômeno fruto da abundância. Os "hippies" nunca constituirão uma epidemia social, pois as responsabilidades da idade madura e as condições aliciantes da vida moderna farão a maior parte deles entrar nos eixos. Os restantes não passarão de minoria inexpressiva". E voltavam a pensar no último modelo de automóvel.

Quando os inconvenientes da poluição ambiental se faziam sentir, a resposta saltava: "Os técnicos já estão estudando o assunto. Nos Estados Unidos surgirão logo novos filtros que, colocados como carapuças nos escapamentos de gás e nas chaminés, acabarão com o problema".

Se alguém arriscasse uma palavra sobre as doenças psíquicas geradas pela civilização contemporânea, retrucavam: "Males Passageiros. Já há estudos e pesquisas a respeito. No total, a vida pacata também é insuportável".

Se o Interlocutor, já intimidado, tentasse colocar o tema da corrupção moral, alentada e promovida por tal sociedade, receberia como resposta uma estrepitosa gargalhada.

Enfim, o mito infantil da redenção pela técnica dominava como senhor absoluto. Acreditava-se piamente que o progresso econômico indefinido e os níveis de consumo cada vez mais altos levariam os homens a um estado edênico.

Em 1972, o Club de Roma, entidade formada por importantes homens de negócios e cientistas, publicou o conhecido relatório "Crescimento Zero", no qual advertia o mundo sobre os perigos do crescimento econômico desordenado.

Daí para frente, a maré montante das acusações contra a sociedade de consumo acelerou-se. Os problemas da destruição da qualidade da vida tomaram atualidade. À noção de produção contrapôs-se a de felicidade. Até então, andavam sempre de mãos dadas, numa união idílica.

Entretanto, o debate não ganhava o grande público por uma razão simples: a sociedade de consumo ainda era saudável — ao menos na aparência — no que tinha de mais tangível, a economia.

Para o homem prático, voluptuosamente assoberbado de preocupações na procura de riquezas e delicias, as discussões assemelhavam-se a elucubrações de diletantes.

Além do mais, no cenário internacional irrompia a "détente", prometendo o fim das tensões, O desarmamento, a paz.

Repentinamente, porém, o sol da prosperidade econômica toldou-se. Personagens ainda um tanto imersos na atmosfera das Mil e uma noites fecharam a torneira do petróleo e depois elevaram desmedidamente os preços do produto.

A convulsão foi geral. A depressão econômica apareceu no horizonte, a perspectiva de um "crack" passou a ser francamente admitida.

Concomitantemente, a "détente" começou a fazer água.

Seus propugnadores colocavam-na como elemento axial da liberalização interna da Rússia e do desarmamento. Utilizando a pitoresca expressão do Embaixador Roberto Campos — usada a propósito da economia brasileira — passou-se, a respeito, do "otimismo esfusiante" para o "realismo agastante".

E o "realismo agastante" indica que a Rússia não vai liberalizar-se, não freará a corrida armamentista e não permitirá a livre circulação de homens e idéias através da cortina de ferro. Em suma, a paz "kissingeriana" não passa de uma ilusão.

O Club de Roma voltou à carga com outro estudo intitulado "Mankind at the Turning Point", apresentado em Berlim no dia 10 de outubro, na convenção anual da entidade. A tese é a mesma: nos padrões atuais, a sociedade de consumo tornou-se inviável.

Premido pelos seus próprios apertos financeiros, bombardeado pelas notícias de crise econômica do Ocidente, o adorador da sociedade de consumo vê seu ídolo ser submetido ao fogo cerrado da crítica.

De uma parte, fulminam-no os tradicionalistas, que nunca pactuaram com ele, porque sempre defenderam os ideais da civilização cristã.

De outra, os estruturalistas e afins, que desejam a volta ao período neolítico e a substituição da cultura baseada na razão, pela magia. Do mesmo lado esquerdo situam-se os que desejam a ação autoritária de um organismo mundial, criado para impedir a catástrofe. "Autrement dit", desejam dar um grande passo na direção da república universal socialista.

Também nesse campo, há os retardatários: os progressistas. Até há pouco partidários fervorosos do progresso contemporâneo, viraram-lhe as costas tão logo perceberam que o ídolo rachara.

O júri começou. Curiosamente, há vários promotores, muitos deles adversários irreconciliáveis entre si. Durante as sessões, os espectadores na sala cada vez mais cheia observam aturdidos o progressivo desfalecimento do réu — a sociedade de consumo.