Onde progressistas e marxistas se encontram

A RELIGIÃO COMUNO-PROGRESSISTA DE GARAUDY

Luís Dufaur

Está circulando em Paris o mais recente livro de Roger Garaudy, Parole d'Homme (Palavra de Homem), editado por Robert Laffont. Nela, o conhecido teórico comunista afirma ter encontrado o ponto de união do comunismo com o cristianismo. Bem entendido, com o progressismo mais avançado.

Intercalando episódios de sua vida com as teses que estes lhe inspiraram, o autor traça sua fisionomia moral, especialmente no auto-retrato que corresponde ao primeiro capítulo da obra.

Militante comunista desde sua juventude, passou três anos preso na África, durante a Segunda Guerra Mundial. Terminada a guerra, foi libertado e retornou à militância política, não sem problemas com a polícia. Isso não impediu que, de simples funcionário burocrático, chegasse a ideólogo oficial do Partido Comunista Francês. Sua vida, porém, não se limitava à ação partidária. Era também nudista, vangloriando-se de "uma experiência de um quarto de século" nos campos naturistas (p. 41).

Inspirado pela revolução da Sorbonne de 1968, e em nome da ortodoxia marxista, Roger Garaudy lançaria suas novas teorias durante o XIX Congresso do PCF, em fevereiro de 1970. Sua propagandística expulsão do PC francês, um ano depois, em vez de sepultá-lo no esquecimento, foi ocasião para lhe granjear maior renome. Todos os grandes meios de informação passaram a focalizar a sua figura e as editoras a disputar suas obras. Garaudy estava no centro das atenções.

Após seu distanciamento do PCF, Roger Garaudy foi à África fazer filmes, nos quais exprimiria suas concepções sobre as relações do homem com a natureza, sob inspiração das tribos africanas.

A influência de eclesiásticos no pensamento de um marxista

Ao longo de seu livro, R. Garaudy reflete o desejo que, segundo ele, sempre o moveu: procurar o ponto de encontro entre o comunismo e o cristianismo, entendido à sua maneira, é claro, o que equivale ao progressismo que hoje devasta a Igreja.

Na busca de uma justificação para essa síntese, Garaudy descreve a profunda influência que sobre ele exerceram personalidades religiosas como o Cardeal Duval, Arcebispo de Argel, o Cardeal König, Arcebispo de Viena, Dom Helder Câmara, o Pe. Teilhard de Chardin, o Pe. Karl Rahner, o Pe. Leclerc (que o ensinou a "amar um Cristo poeta, subversivo e militante"), os Padres operários e, por fim, a teologia da libertação, do Pe. Gutiérrez.

Eis um exemplo do estreitamento dessas relações: "Meus encontros com Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, e suas cartas fraternais, foram para mim um fermento indispensável para superar meus dogmatismos e meus sectarismos antigos, especialmente quando ele me pôs este problema fundamental: "Para nós cristãos, o próximo passo a dar é que se proclame publicamente que não é o socialismo, mas sim o capitalismo que é "intrinsecamente perverso", e que o socialismo não é condenável senão em suas perversões. E para V., Roger, o próximo passo a dar é mostrar que a revolução não está ligada por um vínculo essencial, mas somente histórico, com o materialismo filosófico e o ateísmo, e que ela é, pelo contrário, consubstancial ao cristianismo". Dom Helder abriu-me este. programa há seis anos e não cessou de ajudar-me a cumpri-lo" (p. 118).

Igualitarismo radical que detesta a noção de individualidade

Garaudy parte da noção do que chama "transcendência" ou "alma", significando com isso um movimento que obrigaria todo o universo a transformar-se. Seria uma imensa massa amorfa sem individualidades e em contínua convulsão.

Desse modo os seres individuais — e portanto o homem — não existem enquanto tais: "Nós não formamos mais que um só homem, que não morre conosco. A natureza inteira é meu corpo" (p. 58).

Mas o homem nasce carregado da noção de sua própria individualidade. Por isso, Garaudy considera que o homem nasce velho e pode chegar a ser jovem, ou seja, pode conseguir aniquilar a noção de sua própria individualidade, renunciando passo a passo à noção de possuir: "A vida se desenvolve no sentido inverso daquele que se acredita comumente: nós nascemos muito velhos e nos acontece por vezes conquistar, de despojamento em despoja-mento, uma verdadeira juventude [...].

Como é velha essa criança que nasce: madura como um belo fruto de milhões de anos de, história da terra e do homem, ela leva em si todo o passado da vida e da espécie. Do ventre materno ao vendaval da natureza, seus instintos, reflexos, alegrias ou cóleras foram formados fora dela e sem ela, vindos de muito alto e de muito longe [...].

Como era velho aquele escolar que fui: exemplar, razoável, preso daí em diante não mais nas redes da natureza, mas da cultura, educado segundo sua família, sua raça, sua classe, mais ainda quando entra na engrenagem da escola, essa máquina de nos tornar velhos" (pp. 12-13).

A renúncia paulatina à noção do possuir é um processo de despojamento que chega a sua culminância com a morte (ou dissolução aparente, segundo Garaudy). O teórico comunista francês deixa bem claro que essa renúncia ao possuir não é só uma renúncia à propriedade privada, mas muito mais que isso: é a renúncia à noção de individualidade, ao eu.

Esse conceito assim explicitado, considerando a influência que personalidades progressistas exerceram sobre o pensamento de Garaudy, levanta uma pergunta: até que ponto os teólogos progressistas compartilham essa concepção quando falam do homem novo e do homem velho?

O fim do processo de autodespojamento encontra-se na morte, a qual, na doutrina de Garaudy, representa uma simples mudança de estado aparente, dentro de um enorme magma panteísta. Mais ainda. Deve-se aspirar à morte, considerando-a como "a plenitude do homem", ou seja, a fórmula última de aniquilação. Por isso, Garaudy não só considera desejável dar a mais completa liberdade de se aplicarem quaisquer métodos de controle da natalidade, como também de praticar a eutanásia. Diz textualmente: "É perfeitamente justo dar liberdade para a aplicação de todos os métodos de controle da natalidade, a fim de que o dar a vida seja um ato consciente, livre, verdadeiramente criador. Mas é também justo dar a cada um, diante de uma decadência irremediável, o direito à morte, escolhida, voluntária, propriamente humana" (pp. 59-60).

Acelerar a desintegração do homem: a "teologia" do ódio ao ser individual

Garaudy dedica numerosas páginas ao que chama amor, que outra coisa não é senão o desejo que impulsionaria o homem à autodestruição, movido por um ódio contra si mesmo.

O ato sexual seria o modo pelo qual — dentro dessa concepção — o homem entraria em contacto com o pan coletivo, destruindo a noção de ser individual.

O amor nos levaria por esse meio a "identificarmo-nos com os demais". Negar-se a esse amor seria o inferno, pois impediria a comunicação cósmica de todos, fonte de todo prazer: "o inferno é fechar-se ao outro" (p. 143).

A esta altura, as concepções do escritor comunista atingem o seu auge. Utilizando uma linguagem quase idêntica ao palavreado progressista, R. Garaudy afirma que a missão da é provocar essa revolução interior do amor, que colocará os homens autoaniquilados em uma comunhão gnóstica com o magma universal.

Comunidades de base, fator de aceleração do processo de autodestruição

As comunidades de base, os grupos proféticos, são, segundo o autor, células que, acelerando em si mesmas esse processo de autodestruição interior, convertem-se em sinal de mudança, num apelo à superação que indica o rumo da Igreja.

Surge aqui um conceito de Ressurreição, que nada tem que ver com esse mistério da Fé católica. Ele não é — para Garaudy —um milagre, nem sequer um fato histórico e científico, mas sim a presença de Cristo em todas as coisas, depois de sua dissolução no magma universal. Cristo estaria presente em tudo e tudo estaria em comunhão contínua com ele. E, entrando em comunhão com esse todo, o homem se divinizaria. É a isso que o autor chama Ressurreição, a qual considera da mais alta importância (pp. 242 ss.).

Socialismo marxista, dimensão político-social do progressismo religioso

Se o papel dessa ou dessa Igreja Nova, como se queira chamá-la, é fazer eclodir essa revolução interior, o papel do comunismo não é outro senão o prolongamento da mencionada revolução interior no campo político-social: "A revolução e a fé podem operar sua junção, depois de séculos de antagonismo" (p. 241). Assim, o comunismo e o cristianismo seriam reversíveis um no outro.

"O problema das relações entre a fé e o socialismo — escreve Garaudy — é um problema de fecundação recíproca: a fé fornecendo ao socialismo sua dimensão transcendente, profética, impedindo-o de fechar-se na suficiência e abrindo-lhe um futuro de renovação sem fim; o socialismo fornecendo à fé sua dimensão histórica, militante, impedindo-a de evadir-se do mundo das lutas humanas e obrigando-a a encarnar nele sua promessa, sua esperança, a fim de não ser o ópio mas o fermento.

[...] libertação interior do pecado e "salvação", libertação histórica e política, são aspectos de um mesmo combate que deve ser conduzido ao mesmo tempo em todos os planos, para ser eficaz e vitorioso [...].

Essa fé que é um outro nome da liberdade, do amor, da criação. Essa fé eu não a possuo: ela me possui. [...] Sou cristão? Eu já reconhecia que minha esperança de militante [comunista] não teria fundamento sem essa fé [. (pp. 254-255).

"Minha vida de homem começou quando eu me tornei militante revolucionário para realizar as exigências de minha fé de cristão. Minha vida tomou todo seu sentido quando eu descobri na minha fé o fundamento de minha ação revolucionária. Esta fé não consiste em aderir a um catálogo de verdades pré-fabricadas, mas em se abrir a uma criação, a engajar sua existência num estilo de vida. A fé é aquilo que nos põe em marcha" (p. 225).

Desta maneira, a revolução comunista, embora atuando no campo social, tem, para o autor, o mesmo rumo e meta que o cristianismo: a libertação que colocaria o homem na posição de identificação com o todo coletivo. Todas as táticas e doutrinas marxistas têm esse objetivo: a luta de classes, a ruptura histórica, etc. São um processo de destruição de toda hierarquia e desigualdade, de toda manifestação de determinação e individualidade estampada na natureza dos diversos seres existentes, vindos "de muito alto" para serem transformados em um pan coletivo. Quer dizer, regredindo a um estado de diluição e de indeterminação.

Onde aparece a arte moderna

A ação criadora do homem ocupa um papel de relevância no conjunto das doutrinas de Garaudy; porém — já se vê — não se trata de um criar afirmativo, que manifeste ou insinue aspectos determinantes ou característicos dos seres e realidades, mas de um criar autoaniquilante em que o homem entra em contacto com algo à maneira de um ente coletivo e noturno... Assim, para o autor, a ação artística ou criadora exige, para a sua realização, não que o homem afirme ou defina, mas que renuncie, pelo menos em algo, a sua noção de possuir ou de ego, que é o inimigo a ser destruído. Um pintor que pintasse um quadro irracional estaria nesse caso, pois mutilaria sua razão, e portanto avançaria em seu processo de libertação e despojamento, ou seja, de destruição de sua própria individualidade.

Segundo essa concepção, todas as ciências clássicas foram completamente inúteis ao homem (elas falam de leis, raciocínios, definições, classificações) pois não foram orientadas para estimular a ação criadora... Isso não impede que possa existir uma cibernética avançadíssima.

"Cada vez que somos capazes de romper com nossas rotinas, nossas resignações, nossas complacências, nossas alienações com relação à ordem estabelecida ou nossa individualidade estreita, e que; a partir desta ruptura cumprimos um ato criador nas artes, nas ciências, na revolução ou no amor, cada vez que nós trazemos qualquer coisa de novo à forma humana, o Cristo está vivo, a criação continua em nós, para nós, por meio de nós" (p. 247).

"Eu me aproximo assim da afirmação central de minha vida: a política [revolução marxista], a criação artística e a fé são uma só coisa" (p. 259 — grifo do autor).

O modelo ideal para a união cristã-marxista: comunidades africanas primitivas

Roger Garaudy não se contenta em exprimir sua doutrina em termos meramente especulativos e tem um modelo surpreendente para oferecer à humanidade em seu atual estado de evolução coletivista: "Torna-se cada vez mais claro que os fins de nossa sociedade não podem mais ser procurados no interior de nosso sistema ocidental, mas no exterior" (p. 227 — grifo do autor).

"Desse modo foi-me revelada uma relação possível e, para mim acidental, maravilhosamente nova, com a natureza, com o outro homem, com o sagrado" (p. 26).

A revolução mágico-comuno-progressista de Garaudy nos conduz à tribo africana pela regressão autodestruidora: "Na refeição da noite, numa verdadeira comunhão eucarística, nessas choças onde descobri tantos irmãos depois de quatro meses, nós compartimos o milho e vivemos uma relação com o próximo que há muito tempo havíamos perdido na Europa: para além da selva individualista e da turba totalitária de trabalhadores forçados, aí está a comunidade [...]. Todas estas dimensões perdidas do homem branco eu as reencontro ainda a milhares de quilômetros, num país gouro, na Costa do Marfim, onde eu aprendo a desconcertaste lição da máscara esculpida. É coisa bem diferente de uma obra de arte: um condensador de energia. O escultor anônimo, como se trabalhasse com todas as mãos de sua aldeia, concentra na máscara as energias da terra e da vegetação, dos ancestrais e de seus deuses; e quando o dançarino, vestido de fibras e com o rosto sob a máscara, faz vibrar o solo debaixo de seus pés nus que parecem voar na poeira, ele irradia na comunidade todas essas forças que reúne em si. O gesto de cada mão se torna mais possante, como se ele fosse habitado por um deus. Tal é a lei da máscara, que ordena e harmoniza a vida de todos" (pp. 26-27).

No momento em que estranhos rituais pentecostalistas estão na moda entre os progressistas, quando aparecem em certos meios católicos tendências para a indigenização da Igreja e de convergência com o comunismo, o livro de Garaudy é um sinistro convite para a formação de uma Igreja Nova sem estruturas nem hierarquias, sem dogmas nem verdadeira vida sobrenatural, sem sacralidade e, por fim, sem um Deus pessoal e transcendente, infinitamente superior a todas as criaturas. Um convite, em meio à tremenda crise contemporânea, para a destruição final dos restos de Civilização Cristã e a entrada na noite de uma religião mágico-comuno-panteísta que venha a insurgir-se, num supremo ato de degradação e de soberba, após haver destruído as hierarquias religiosas, políticas e sociais, e aniquilado toda forma de propriedade, contrariando a própria ordem da Criação em seu conjunto.


Tem a Igreja o que aprender com Lutero?

Valter de Oliveira

Ano de 1967. Estávamos já na época do diálogo e do ecumenismo. Centenário da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista do Brasil, em Santo André, São Paulo. Os 21 integrantes da nova turma de pastores tinham que escolher um paraninfo para sua formatura que simbolizasse bem a nova maneira de encarar a religião e a sociedade temporal. Não foi difícil encontrar o homem adequado, então sempre nas primeiras páginas dos jornais, famoso, viajado, controvertido. Seu nome? D. Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife. Os pastores o elegeram por unanimidade, a fim de expressar o verdadeiro ecumenismo e "a perfeita identificação dos protestantes com os católicos na nova maneira de encarar a missão social dos religiosos".

No dia da cerimônia D. Helder iniciou seu discurso com a seguinte oração:

"Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai da Misericórdia e Deus de toda consolação. Bendito seja, pela alegria desta noite impensável para vós e para nós, anos atrás".

O Arcebispo vermelho finalizou seu discurso dizendo: "Se Deus permitisse que Lutero nos aparecesse agora e nos falasse, certamente nos diria que para ser digno de Cristo, para viver a responsabilidade e a alegria de ser cristã, e poder efetivamente ajudar a Humanidade, a Igreja precisa não apenas de uma Reforma, realizada de uma vez e para sempre, mas de uma Reforma permanente, de todos os dias, todas as horas e todos os instantes" (cf. "O Estado de S. Paulo" de 12 de dezembro de 1967).

Lutero, apóstata e herege, aconselhando a Igreja infalível! Palavras estranhas nos lábios de um Bispo católico e, realmente impensáveis para nós, anos atrás!... De onde essa mudança? Teria a Igreja errado ao condenar Lutero?

- "Sim, dirá um progressista, errou. Ela não soube conquistar os reformadores, pois só sabia condenar e excomungar. E Lutero, no fundo, era um bom homem, bem intencionado e humilde, que se escandalizara com o triunfalismo da Igreja e com os abusos do Clero da época. Resultado: foi mal compreendido. Se houvesse naqueles tempos homens como D. Helder, arejados, evoluídos, abertos ao diálogo, talvez tudo tivesse sido diferente. Mas agora, o que fazer? Nada. A não ser a Igreja se penitenciar de sua intolerância, rezar Missa por Lutero, como fizeram vários Bispos, por ocasião do 450.° aniversário da eclosão da Reforma e admitir os valores do protestantismo".

"A Igreja errou"; "Lutero era um homem bem intencionado". Consultemos a História, vejamos os documentos. Leiamos as próprias palavras do reformador. Julgue o leitor depois se, como diz D. Helder, o Corpo Místico de Cristo necessita aprender algo com o irriquieto ex-Monge de Wittenberg.

Um juízo humilde sobre si mesmo

- "Desde há milhares de anos, diz Lutero, Deus não deu a nenhum bispo atributos tão grandes quanto a mim. Não nos devemos sentir felizes com os favores de Deus? Também eu próprio me detesto por não ter extraído de tudo isso grande alegria" (FB 241) (*).

- "Muito embora a Igreja, Agostinho e os outros doutores, Pedro e Apolo e até um anjo do Céu ensinem o contrário, minha doutrina é tal que só ela engrandece a graça e a glória de Deus e condena a justiça de todos os homens na sua sabedoria" (LF 179).

- "Quem não crê como eu é destinado ao inferno. Minha doutrina e a doutrina de Deus são a mesma coisa. Meu juízo é o juízo de Deus". "Tenho certeza de que meus dogmas vêm do céu" (LF 179).

Livre exame, sem dúvida...

Sê pecador e peca firmemente

Para Lutero, os Mandamentos eram inúteis para a salvação. Podiam ser até nocivos: "A lei não pode dar senão a morte. Ela não é boa nem útil, mas simplesmente nociva [...]. No fundo, ela não é senão morte e veneno" (DTC 1242). "A lei foi ab-rogada [...] porque, mesmo não cumprida, ela não condena" (DTC 1249).

Por sua negação da Lei, o reformador dizia de Moisés: "Quanto a Moisés, tende-o por suspeito, como o pior dos heréticos, um homem excomugado e danado, que é pior ainda que o Papa e pior que o próprio diabo; é o inimigo do Senhor Jesus Cristo" (Rohr. 147). "Não aceitamos Moisés, ele só é bom para os judeus; não nos foi enviado por Deus" (FB 190).

E ainda: "Se te falam de Moisés para te constranger a aceitar-lhe os mandamentos, responde-lhe atrevidamente:

- Vai falar de teu Moisés aos judeus! Não sou judeu, deixa-me em paz!" (FB 190).

Compreende-se assim a vida dissoluta que o ex-Monge agostiniano levava, bem como os conselhos que dava.

Jerônimo Weller, seu amigo, era vítima de freqüentes ataques de melancolia. Em julho de 1530, recebeu do Dr. Lutero uma receita "medicinal e espiritual":

- Quando o diabo te vexar com estes pensamentos, conversa com os amigos, bebe mais largamente, joga, brinca, ou ocupa-te em alguma coisa. De quando em quando se deve beber com mais abundância, jogar, divertir-se, e mesmo fazer algum pecado em ódio e acinte ao diabo para não lhe darmos azo de perturbar a consciência com ninharias... Quando te disser o diabo: não bebas, responde-lhe: por isso mesmo que me proíbes, hei de beber e em nome de Jesus Cristo beberei mais copiosamente... Por que pensas que eu bebo, assim, com mais largueza, cavaqueio com mais liberdade e banqueteio-me com mais freqüência, senão para vexar e ridicularizar o demônio que me quer vexar e ridicularizar a mim?... Todo o decálogo se nos deve apagar dos olhos e da alma; a nós, tão perseguidos e molestados pelo diabo" (LF 187).

Veja-se ainda esta carta a Melanchton, de 1.o de agosto de 1521:

- "Sê pecador e peca firmemente, mas com mais firmeza ainda crê e alegra-te em Cristo, vencedor do pecado, da morte e do mundo. Durante a vida devemos pecar bastante. Basta que pela misericórdia de Deus conheçamos o cordeiro que tira os pecados do mundo. Dele não nos há de separar o pecado, ainda que, em um dia, cometêssemos mil fornicações e mil homicídios" (DTC 1247).

Um homem de boa-fé e coerência

Após a famosa questão das indulgências, em 1517, Lutero, ainda não excomungado, continuava protestando sua fidelidade à Igreja. Em 1519 escreve:

- "Confesso plenamente o supremo poder da Igreja Romana; fora de Jesus Cristo, Senhor Nosso, nada no céu e na terra se lhe deve preferir". "É a predileta de Deus; não pode haver razão alguma, por mais grave, que autorize a quem quer que seja apartar-se dela e, com o cisma, separar-se da sua unidade" (LF 181). Porém, no ano seguinte, dirá que a Igreja é "uma licenciosa espelunca de ladrões, o mais impudente dos lupanares, o reino do pecado, da morte e do inferno" (LF 181).

Lutero e mais alguns reformadores — Melanchton e Bucer — permitiram a bigamia ao Landgrave Filipe de Hesse, desde que o segundo casamento ficasse em segredo. Quando o caso se propagou o Landgrave quis publicar o documento de autorização do matrimônio; Lutero tentou impedir a todo transe a publicação, alegando ter sido um "conselho de confissão", Beichtrat; por sua própria natureza, o documento devia permanecer secreto. Ameaçou o Landgrave, lembrando-lhe os editos imperiais contra os bígamos.

- "Quanto a mim, saberei tirar-me do embaraço — Deus virá em meu auxílio — deixando Vossa Graça se atolar".

Filipe, amedrontado (a bigamia era punida com a morte), achou por bem guardar o "conselho de confissão", que não virá à luz senão um século mais tarde.

Aos íntimos Lutero dirá gracejando:

"Bah! que fazem os papistas? Matam as pessoas; nós criamos vida desposando duas mulheres de uma só vez" (FB 214). Afinal, "que mal haveria em um homem, para levar a cabo coisas boas e para o bem da Igreja cristã [leia-se protestante], dizer uma boa e grossa mentira?" (Espasa, Lutero, 875).

Vemos também a honestidade de Lutero na sua tradução da Bíblia. São Paulo escreve:

- "Nós, os justos, somos justificados pela Fé". Na tradução o reformador acrescentou a palavra "", o que implicava na não necessidade das boas obras. Como seus amigos se mostrassem admirados, pois essa palavra não se encontra nem no texto latino, nem no grego, Lutero escreveu a um deles:

- "Parece que vós estáveis surpresos de que eu tenha dito que nós somos justificados pela fé só, já que essa palavra não se acha no texto do apóstolo. Se vosso papista vos chicana por causa dessa palavra, dizei a ele que um papista e um asno são uma só coisa. Toda a razão que tenho a dar desta adição, é que eu quero que a palavra "só" aí esteja; eu o ordeno, minha vontade deve servir de razão" (Rohr 146-147).

E as mutilações e deturpações da Bíblia não foram poucas. Assim o queria o Dr. Lutero.

Colóquios com o diabo

As manifestações diabólicas de Wartburgo ficaram célebres na vida do ex-Monge agostiniano, mas não eram novidade. Ele mesmo dizia: "Conheço o diabo a fundo, de pensamento e de aspecto, tendo comido em sua companhia mais de uma pipa de sal". Em seus últimos anos irá declarar: "O diabo dormiu ao meu lado, em minha cama, mais vezes do que minha mulher" (FB 117).

"Às vezes — escreve o historiador protestante Funck-Brentano — o reformador tinha com o Espírito do Mal longas conversas; dava-lhe ouvidos aos argumentos. Aconteceu deixar-se convencer por eles. Por sua própria confissão, esta e aquela parte de sua doutrina, nascem dessas infernais discussões" (FB 123).

Nicola anotou, em suas Prevenções legítimas contra os calvinistas: "Nunca houve ninguém, a não ser Lutero, que se tivesse gabado, numa obra impressa, de ter tido uma longa conferência com o diabo; que se tinha convencido de suas razões de que as missas privadas eram um abuso, e que era esse o motivo que o tinha levado a aboli-las" (FB 124).

Liberdade, liberdade...

Costuma-se dizer que um dos bens que a Reforma trouxe, foi — graças ao princípio do livre exame — a tolerância. Por esta razão, Lutero, se indignara contra a Inquisição, exclamando: "Queimar os hereges é contra a vontade do Espírito Santo". "Não se deve obrigar ninguém a crer, escrevia em 1527, nem expulsá-lo pela incredulidade, por lei ou constrangimento; Cristo só quer servos benévolos" (FB 203 e 206).

Mais uma vez, consultemos a História.

Carlstadt — herege e apóstata, ex-Arcediago na colegiada de Wittenberg — que divergia de Lutero na questão da Eucaristia, foi perseguido e expulso da Saxônia por decreto obtido pelo reformador de Wittenberg. Não o readmitiu senão com a promessa de não defender em público, por palavras ou por escrito, suas opiniões. Por não cumprir a palavra, Carlstadt foi de novo perseguido e fugiu. Lutero lamentou a misericórdia dos príncipes nessa ocasião: "Em outros reinos ele evitou promover distúrbios com suas impertinências, pois poderiam fazer-lhe dançar a cabeça, como as de seus discípulos, com uma clara lâmina de aço. Os príncipes de Saxe foram demasiado pacientes com esse miolo virado. Se tivessem sabido manejar mais prontamente o gládio, o espírito de Deus sentir-se-ia melhor" (FB 206).

Naturalmente, o papa de Wittenberg restabeleceu a excomunhão. Quanto aos obstinados, diz Lutero, "que vão para o diabo". Depois de mortos serão jogados no monturo. Aqueles mesmos que não têm fé devem ser obrigados a assistir aos sermões. Monges, curas e todos os tonsurados devem ser degolados: "Eu mesmo me ocuparei da missão, bandos de patifes, que não são bons senão para desaparecer". Lutero chegou a instituir visitadores, inquisidores que penetravam nas famílias a fim de se informar se tudo se passava conforme suas prescrições (FB 204).

— "Senta-te, pois, no trono pontifício!" — grita-lhe um desses dissidentes, chamado Ickelsamer — "tu que não queres ouvir cantar senão tua própria canção!" Ao que Lutero respondia: "Nós reivindicamos o governo das consciências e não queremos deixar-nos espoliar" (FB 205).

"Não se deve obrigar ninguém a crer"... "Cristo só quer servos benévolos"...

"Amor" aos camponeses

Na Europa, a Igreja desempenhou um árduo trabalho de formação, que Lhe exigiu o sangue de inúmeros mártires, dulcificando os costumes, aproveitando as qualidades dos bárbaros e dos romanos, e extirpando os defeitos de ambos. Nascia assim a Idade Média, que Montalembert chamou "a doce primavera da Fé". Foi na Europa medieval que se conheceu, pela primeira vez na História, um continente inteiro sem escravidão.

Com a Pseudo-Reforma e a Renascença, ensinou-se que o povo era sacerdote, que o homem era o centro de tudo. A Revolução nascente prometia liberdade. Contudo, como já vimos, o que se fez foi destruí-la e restaurar a barbárie do paganismo. A este respeito Lutero dirá:

— "A servidão deve ser estabelecida tal como existia entre os judeus". "Eu sou o maior inimigo de todos os camponeses", "eles são brutos", "apenas a miséria pode impedi-los de se conduzirem como animais ferozes" (FB 164).

D. Helder aceitaria este conselho para o Nordeste?

Quando Tomás Munzer — que, conseqüente com as doutrinas luteranas, pregava um comunismo religioso — agitou o povo no campo, Lutero ficou indignado. A 6 de maio de 1525 publicou seu terrível panfleto "contra as hordas homicidas e bandoleiras dos camponeses".

"Vamos! mãos à obra! Matar um revoltado não é cometer um assassínio, mas ajudar a extinguir um incêndio. Também não se trata de ir de mãos vazias. Esmagai! Degolai! Trespassai de todo modo! Matar um revoltoso é abater um cão danado". E em outra ocasião: "Também em circunstâncias semelhantes não é

(Continua na página 6)

Lutero em 1530, por Lucas Cranach.