G. Bordonove
("LES TEMPLERS" FAYARD, PARIS, CAP. XII)
NADA na história das Cruzadas é mais emocionante que o doloroso reinado de Balduíno IV.
Nada, entre vários exemplos famosos, pode atestar melhor o império de um espírito de ferro sobre uma carne débil. Foi um Rei sublime do qual os historiadores tratam só de passagem, o que faz perguntar por que até aqui nenhum escritor nele se inspirou, com exceção do velho poeta alemão Wolfram Von Eschenbach. Nem o Romance, nem o Teatro o evocam, e no entanto sua breve existência cheia de acontecimentos capitais, coloridos, forma uma apaixonante e dilacerante tragédia.
O DESTINO sorria à sua infância. Robusto e belo, ele era dotado da inteligência aguçada de sua raça angevina (de Anjou). Tinha-lhe sido dado por preceptor Guilherme de Tiro, cujo espírito se deixou possuir por "grande preocupação e dedicação, como é conveniente a um filho de Rei".
O pequeno Balduíno "tinha muito boa memória, conhecia suficientemente as letras, retinha muitas histórias e as contava com prazer". Um dia em que brincava de batalha com os filhos dos barões de Jerusalém, descobriu-se que tinha os membros insensíveis: "Os outros meninos gritavam quando eram feridos; Balduíno porém não dizia palavra. Esse fato se repetiu em muitas ocasiões, a tal ponto que seu mestre, o Arquidiácono Guilherme se alarmou. Primeiro pensou que o menino fazia uma proeza desprezando queixar-se de si. Então, dirigindo-lhe a palavra, perguntou por que sofria aqueles ferimentos sem se queixar. O pequeno respondeu que as crianças não o feriam, que ele não sentia os arranhões. Examinando o mestre seu braço e sua mão, certificou-se de que estavam adormecidos..." Era o sinal evidente da lepra, doença terrível e incurável naquele tempo!
Os médicos aos quais foi confiado não podiam sustar a infecção, nem mesmo retardar a lenta decomposição que afetaria suas carnes. Toda sua vida não foi senão uma luta contra o mal irremissível, e mais ainda, muito mais: foi testemunha do domínio de um homem sobre si mesmo, e a encarnação assombrosa dos mais altos deveres. Balduíno IV foi um Rei digno de São Luís, um santo, um homem enfim — e é isso sobretudo que importa à nossa admiração sem reticências — a quem nenhuma desgraça chegou a destruir, o vigor de alma, as convicções, as qualidades de coração, o senso das responsabilidades, dos quais ele hauria o revigoramento da coragem.
Em fins de 1174, Saladino, Senhor do Egito e de Damasco, foi sitiar Alepo. Os descendentes de Nur-ed-Din pediram socorro aos francos. Raimundo de Trípoli atacou a praça forte de Homs. Balduíno IV empreendeu uma investida vitoriosa sobre Damasco. Essas iniciativas fizeram com que Saladino abandonasse seu desejo inicial.
Em 1176, o Sultão voltou à carga e a mesma manobra frustrou seus planos. Balduíno derrotou seu exército de Damasco em Andjar e trouxe um belo troféu da expedição. Tinha nessa ocasião apenas quinze anos.
Apesar de sua doença, cavalgava como um homem de armas, empunhando eximiamente a lança. Nenhum de seus predecessores teve tão cedo semelhante noção da dignidade real de que estava investido e de sua própria utilidade. Percebendo bem as rivalidades existentes entre os seus, ele compreendeu quão necessária era sua presença à testa dos exércitos católicos. Mas que calvário deveria ser o seu! Aos sofrimentos físicos juntava-se a angústia moral: seu estado o impedia de se casar, de ter um descendente. Ele não era senão um morto-vivo, um morto coroado cujas chagas purulentas se disfarçavam, sob o ferro e as sedas, mas que se mantinha de pé, que se lançava à ação, movido não se sabe por que sopro milagroso, por que alta e devoradora chama de sacrifício!
Um novo cruzado, Filipe de Alsácia, Conde de Flandres e parente de Balduíno IV, acabava de desembarcar em Jerusalém. O pequeno Rei esperava muito desse apoio. Estava claro que era necessário ferir Saladino no coração de seu poderio, isto é, no Egito, se se quisesse abalar a unidade muçulmana. Era isso precisamente o que propunha o Basileus (Imperador de Bizâncio). Uma vez conquistado o Egito, Damasco não poderia deixar de se subtrair ao poder cambaleante de Saladino. Mas Filipe de Alsácia opinava de outra forma. Ninguém lhe poderia impedir de ir guerrear na Síria do Norte e, o que era mais grave, de levar consigo parte do exército franco. Saladino respondeu invadindo a Síria do Sul.
Balduíno reuniu o que lhe restava das tropas, desguarneceu audaciosamente Jerusalém e partiu para Ascalon, onde Saladino atacava. Este, logo que foi informado, subestimou seu adversário. Acreditava que a queda de Ascalon era uma questão de dias e marchou sobre Jerusalém com o grosso de seu exército. Balduíno compreendeu suas intenções. Saiu de Ascalon, fez um longo périplo e caiu repentinamente sobre as colunas de Saladino, em Montgisard.
O efeito da surpresa não compensou a desproporção dos efetivos em luta. Balduíno sentiu a hesitação dos seus. Desceu então do cavalo, prosternou-se com o rosto na areia diante do madeiro da Verdadeira Cruz, que era levado pelo Bispo de Belém, e orou com a voz embargada pelas lágrimas. Com o coração contrito, seus soldados juraram não recuar e considerar traidor quem voltasse atrás. Rodeando o Santo Lenho, o esquadrão de trezentos cavaleiros lançou-se impetuosamente: "O vale entulhava-se com a bagagem do exército de Saladino, diz o Livre des Deux Jardins, os cavaleiros francos surgiam ágeis como lobos, a ladrar como cães; atacavam em massa, ardentes como uma chama". E puseram em fuga o invencível Saladino que, se pôde salvar a pele, foi graças à rapidez de seu cavalo e ao devotamento de sua guarda. O sultão retornou ao Egito abandonando milhares de prisioneiros. Balduíno logrou uma vitória sem precedentes.
O ano seguinte, Balduíno edificou o Gué-de-Jacob, fortaleza destinada a defender a Galileia dos ataques de Damasco. Guilherme de Tiro admite que tenha sido construída pelas prementes solicitações de Odon de Saint-Amand, Grão Mestre do Templo. Em todo caso, qualquer que tenha sido o inspirador da idéia, não há dúvida quanto a importância estratégica de Gué-de-Jacob.
Em 1179 Saladino invadiu a Galiléia. Balduíno foi a seu encontro tentando surpreendê-lo, como tinha feito em Montgisard. Mas como os muçulmanos não se deixaram surpreender, o jovem Rei foi cercado. Muitos foram mortos e presos nesse dia.
Pouco tempo depois, Saladino tomou Gué-de-Jacob e mandou executar todos os cavaleiros do Templo que a defendiam.
Sybilla, irmã do Rei, acabava de se casar — contrariamente aos interesses do Estado — com Guy de Lusignan, homem de beleza discutível, sem fortuna e sem talento. Balduíno, pressionado pelos seus, minado pela doença, havia consentido nessa união e doado a Lusignan os condados de Jaffa e Ascalon. Tão logo se manifestou a insignificância do marido de Sybilla, aguçaram-se as cobiças dos senhores feudais. Conta-se que o irmão de Lusignan, comentando o casamento, disse: "Se Guy for Rei, eu deveria ser deus". De tal maneira os seus o julgavam medíocre.
Sua mãe — que por certo não era muito virtuosa - e a roda dos cortesãos ambiciosos e imorais manobravam para envolver e ludibriar tanto o Rei, quanto Raimundo de Trípoli, o único homem capaz de o aconselhar sabiamente.
Nesse momento reapareceu, libertado dos cárceres muçulmanos, o antigo príncipe de Antioquia, Renaud de Châtillon. [...]. Este logo começou suas aventuras, assaltando uma importante caravana de peregrinos com destino a Meca. Tal ato rompia a trégua assinada por Balduíno IV e Saladino, ofendia as convicções religiosas dos muçulmanos, a cujos olhos o atentado afigurava-se monstruoso. Intimado pelo Rei a devolver os prisioneiros e o produto da pilhagem, o príncipe recusou-se com arrogância, tornando assim evidente a incapacidade do doente de se fazer obedecer.
Imediatamente Saladino acorreu do Egito, invadiu a Galileia incendiando e devastando as colheitas, capturando rebanhos e semeando pânico por toda parte. Renaud de Châtillon suplicou ao Rei que salvasse seus feudos. Balduíno acedeu, vencendo Saladino em julho de 1182.
Em agosto, porém, o infatigável maometano tentou tomar Beirute por uma ação combinada por terra e mar. Uma vez mais Balduíno afastou o perigo. Impediu Saladino de se apoderar de Alepo e conduziu uma expedição até os subúrbios de Damasco. Assim, por toda parte, graças à sua energia sobre-humana e, ainda que daí em diante ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heróico leproso levava vantagem sobre o genial muçulmano.
Balduíno começava entretanto a perder a vista, a não poder mais se servir de seus membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar os negócios do Reino ou pelo menos passar parte de suas responsabilidades a Guy de Lusignan. Pode-se bem imaginar o drama interior desse Rei de 22 anos corroído por úlceras, semi-paralisado e quase cego, cercado pelas sombras da desconfiança e dos maus pressentimentos, atormentado entre as insinuações e sugestões pérfidas dos que o cercavam, de um lado, e a alta ideia que ele fazia de sua missão de Rei, de outro. Apesar de enfraquecido pela lepra, ele — que não podia ter esperanças de se curar — sempre encontrava novas forças e resistia da melhor forma às ciladas da camarilha. Como a doença entrasse numa fase evolutiva, ele devia lutar contra a mesma e, principalmente, contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz.
Foi num desses períodos que ele consentiu, embora a contra-gosto, em investir Guy de Lusignan na regência do Reino. No primeiro encontro com Saladino, Lusignan deixou o exército franco ser massacrado. Recusou com altivez prestar contas a Balduíno IV, que o destituiu de seu cargo e, para evitar que pela complacência de Sybilla, Lusignan se tornasse Rei de Jerusalém após sua morte, designou seu sucessor o pequeno Balduíno V, filho de Guilherme "Longue Epée" (Espada longa). Como a situação da Terra Santa estivesse desesperadora, enviou uma embaixada ao Ocidente, composta pelo Patriarca de Jerusalém, pelo Grão-Mestre da Ordem dos Hospitalários e pelo Grão-Mestre da Ordem dos Templários, o velho Arnaud de Torrage.
Renaud de Châtillon, que indiretamente tinha ajudado o Rei a se desembaraçar de Lusignan, julgou-se autorizado a retomar suas pilhagens, mas agora, então, na mais alta escala. Armou uma frota que foi transportada ao Mar Vermelho, em dorso de camelo. Essa frota, devastando portos, interceptando comboios, ameaçou por algum tempo o caminho para Meca. Saladino, exaltado até o cúmulo do furor, destruiu os navios de Renaud e depois sitiou-o em sua própria fortaleza, o Krac de Moab. Balduíno IV apareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino, talvez por respeito, retirou-se.
O último ato de Balduíno IV foi o de reunir em São João d'Acre o Parlamento de seus barões. Guy de Lusignan, incapaz e rebelde, foi então oficialmente afastado do trono e a regência foi confiada a Raimundo de Trípoli.
Mais tarde, a 16 de março de 1185, com 24 anos, o mártir rendeu a alma a Deus, em presença de seus vassalos, dignitários e bons companheiros de guerra. Até os infiéis lhe tributaram homenagens.
Luiz Sergio Solimeo
Por ocasião da morte de Chu En-lai, o Bispo marxista de Cuernavaca, Mons. Sérgio Mendez Arceo, declarou não estranhar que o dirigente comunista chinês fosse canonizado.
À primeira vista (para quem não conhece o Prelado, que há anos vem pregando — sem ser incomodado — a revolução marxista, não só em sua Diocese, mas um pouco pelo mundo inteiro), poderia parecer que ele não se tenha expressado bem. Na realidade o Bispo-vermelho mexicano apenas exprimiu o que os adeptos da Igreja-Nova progressista realmente pensam a respeito do comunismo chinês (ou russo).
Isto ficou patente no colóquio ecumênico realizado em Louvain, em fins de 1974, sobre "a fé cristã e a experiência chinesa". Nele, Bispos, Padres, Freiras e pastores protestantes reconheceram em Mao Tse-tung um novo Moisés, que retirou seu país da opressão do feudalismo e do capitalismo, como outrora o povo eleito foi retirado do cativeiro do Egito...
Esse encontro foi promovido pelo centro católico internacional de pesquisa e informação Pro Mundi Vita, de Bruxelas e pelo Departamento de Estudos da Federação Luterana Mundial, com sede em Genebra. Recebeu a colaboração da Action Populaire (dos Jesuítas de Paris) e do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs, organização protestante dos Estados Unidos.
Participaram 97 pessoas (a metade das quais católicas) — teólogos, sociólogos, sinólogos, antigos missionários, Prelados, Padres e Freiras, pastores protestantes, historiadores, jornalistas, "marxistas cristãos" e ativistas de esquerda — convidados de acordo com sua experiência a respeito da China comunista e de seus conhecimentos de teologia e marxismo, como nos informa Marlène Tuininga, repórter das "Informations Catholiques Internationales", que esteve presente ao colóquio.
Prestigiaram a assembleia com sua presença duas vedettes do progressismo mundial, o Cardeal Leo Suenens, Arcebispo de Bruxelas, e Mons. Ângelo Fernandes, Arcebispo de Nova Delhi. Tomaram parte nos trabalhos Mons. Bernard Jacqueline, vice-secretário do Secretariado para os Não Crentes (ateus), do Vaticano, e os Bispos Mons. Charles Joseph van Melekebeke, Visitador Apostólico para os chineses que estão fora da cortina de bambu e Mons. Paul Tep-Im Sotha Samath, Prelado no Cambodge.
A finalidade do encontro era — segundo seus organizadores — "explorar o significado da experiência chinesa para a teologia cristã e a vida da Igreja" (cf. "Christian Faith and the Chinese experience — Papers and Reports from an Ecumenical Colloquium held in Louvain, Belgium, September 9 to 14, 1974" - Lutheran World Federation/Pro Mundi Vita, Geneva and Brussels, 1974).
Conquanto estivessem todos unidos numa mesma fé em Marx e num mesmo entusiasmo pela China de Mao, os participantes não quiseram comprometer-se com um texto preciso e preferiram não votar uma moção final. Por isso, baseamos nossos comentários nos textos submetidos à apreciação dos congressistas e nos relatórios das comissões de trabalho, reunidos no volume anteriormente citado.
Costuma-se atribuir a Lenine uma frase (que, se ele não a proferiu, na verdade define bem a mentalidade comunista) que é mais ou menos assim: "Se os fatos não correspondem à teoria, tanto pior para os fatos". Da mesma forma os progressistas costumam votar um desprezo completo à realidade. Vivem num contínuo raciocinar abstrato, que nunca desce aos fatos concretos. Pelo contrário, procuram adaptar a realidade a suas teorias pré-concebidas.
Não é só a realidade cotidiana que sofre essa deformação cerebrina, mas a própria Sagrada Escritura perde sua significação natural para ser interpretada conforme lhes convém e a História é reescrita "ad usum Delphini".
Assim, os teólogos interconfessionais do Colóquio de Louvain deformaram inteiramente a História atual e recente da China para adaptá-la a seus desígnios. Minimalizando os massacres, as "sessões de reeducação", a coletivização brutal, que conduziram o país à miséria, à opressão e ao infame dirigismo estatal (que chega ao ponto de controlar o número de filhos que um casal pode ter), esses "peritos" apresentam a Revolução chinesa como uma admirável epopeia durante a qual — como disse o Pe. Joachim Pillai — Mao Tse-tung, "como um novo Moisés, libertou seu povo da escravidão, do arcaísmo, do imperialismo, do feudalismo e do capitalismo" (p. 82). E uma das comissões de trabalho chega a dizer: "A transformação política e social levada a efeito na China pela aplicação do pensamento de Mao Tse-tung, unificou e consolidou um quarto da população do mundo numa forma de sociedade e num estilo de vida imediatamente relacionados a algumas das características do Reino de Deus, mesmo rejeitando conscientemente Deus como fonte da real esperança e força do homem" (anexo, p. 20).
A perseguição aos missionários e a destruição da florescente Igreja chinesa, é também explicada de modo singular por esses "especialistas": os missionários não foram — tomados em seu conjunto e até que a atual crise dominasse a Igreja — aqueles abnegados Religiosos e Religiosas que abandonavam tudo, família, pátria, conforto, movidos unicamente pelo zelo das almas, pela glória de Deus, mas antes pessoas que iam praticar uma "agressão cultural" contra os nativos e impor-lhes a "dominação capitalista". Essa falta de tacto, fruto de um modelo errado de Cristianismo, teria levado os missionários a se identificarem com Chang Cai-chec em sua luta contra os comunistas de Mao. De onde se seguiu a perseguição, após a tomada do poder pelos comunistas, pois a intransigência dos missionários "forçou a mão" do regime para oprimir os cristãos. Tanto mais que "sob a pressão da Guerra Fria, — afirma o trabalho do Pro Mundi Vita — o Cristianismo tinha toda a aparência de cristalizar-se numa ideologia, procurando, pelo menos temporariamente, defesa no campo dos capitalistas e imperialistas" (p. 23).
Mas a destruição da obra dos missionários não é considerada pelos tecnocratas teológicos de Pro Mundi Vita como um mal. Pelo contrário, acham eles que, destruindo o que consideravam, um pseudo-Cristianismo, a China construiu o verdadeiro Reino de Deus! É o que está afirmado textualmente em duas citações, endossadas pelo relatório apresentado no colóquio de Louvain. A primeira é de um jovem católico australiano, professor durante um ano na China comunista, e a segunda de um historiador:
"A rejeição de um pseudocristianismo não é necessariamente uma rejeição do próprio Cristo. [...] Pareceria que a China [...] aceitou o espírito de Cristo de outra fonte [...], ou seja, do marxismo. [...] Se os chineses tivessem, de fato, criado uma sociedade com mais fé, mais esperança e mais amor do que o Ocidente "cristão", eles mereceriam não apenas atenção, mas fidelidade. Como os Apóstolos de Cristo, precisamos seguir para onde o espírito sopra".
"A sociedade chinesa de hoje [...] está, penso eu, mais adiantada do que a nossa no caminho para a verdadeira sociedade humana, o Reino de Deus, se quiserem. Acredito que a China é a única nação verdadeiramente cristã no mundo em nossos dias, não obstante sua rejeição absoluta de toda religião [...] Onde procurar Cristo? [...] Onde estão os bons e onde são feitas as coisas boas [...] Quer dizer, vendo o que está acontecendo na China nos dias de hoje".
Nada mais lógico, então, do que buscar na China de Mao o fermento para a renovação do Cristianismo. O relatório do Pro Mundi Vita cita a esse propósito a seguinte passagem de um discurso de Paulo VI, pronunciado em 1967 (durante a "Revolução Cultural" chinesa), bem como um despacho da Agência Fides da Congregação para a Evangelização dos Povos (antiga Congregação De Propaganda Fide). Eis as palavras de Paulo VI:
"A Igreja reconhece e favorece a justa expressão da atual fase histórica da China e a transformação de antigas formas de cultura estática em novas formas inevitáveis que surgem das estruturas social e industrial da vida moderna. [...] Gostaríamos de tomar contato novamente com a China, a fim de manifestar com que interesse e com que simpatia vemos seus atuais e entusiásticos esforços pelos ideais de vida diligente, plena e pacifica".
É o seguinte o despacho da Agência Fides, de 4 de abril de 1973:
"Através do Marxismo, chegaram à China as ideias cristãs, que eram novas para ela. [...] Uma mística de trabalho desinteressado a serviço dos outros; uma aspiração para a justiça; a exaltação de uma vida simples e frugal; a elevação das massas camponesas e o desaparecimento das classes sociais — tais são os ideais para os quais a China de hoje está orientada. Mas não são esses os ideais incomparavelmente expressos nas Encíclicas "Pacem in Terris" e "Populorum Progressio" e no documento sinodal "Justiça no Mundo"? As crianças chinesas estão sendo hoje ensinadas a ter um senso de responsabilidade para com a comunidade. Mas não é exatamente isso o que o Segundo Concílio do Vaticano tem pedido tão insistentemente do Povo de Deus?"
(pp. 29-30).
A partir de outra ordem de ideias, o Assistente do Geral da Companhia de Jesus para o Leste da Ásia, Pe. Herbert Dargan, S. J. chega à mesma conclusão de que a Igreja tem que se adaptar ao comunismo chinês e aprender com ele.
Contrariando o mandamento de Nosso Senhor — "Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura. O que crer e for batizado será salvo; o que não crer será condenado" (Marc. 16, 15-16) — acha o Pe. Dargan, que para três quartos da humanidade a salvação não exige o batismo nem o pertencer à Igreja. Ao contrário, a Igreja deverá ser sempre composta de uma pequena minoria, de um "pequeno rebanho".
Vejamos suas palavras: "O Segundo Concílio do Vaticano lançou as sementes de uma rica ideia que pode tirar-nos do APARENTE IMPASSE causado pela presença de um governo totalitário na China. Ele nos apresentou a Igreja como um sacramento universal de salvação, ideia essa que, penso, não foi ainda decifrada até suas últimas consequências. Trata-se de uma ideia que tira a discussão dos limites da "filiação" à Igreja Católica Romana, para a área mais ampla do papel da Igreja na salvação universal. Precisamos começar a aceitar que a Igreja Católica Romana provavelmente será sempre uma minoria, um "pequeno rebanho" e que TALVEZ PARA TRÊS QUARTOS DA RAÇA HUMANA, A DÁDIVA DA GRAÇA NÃO ENVOLVA UM CHAMADO PARA EXPLICITAR A FÉ CRISTÃ, OU PARA TORNAR-SE MEMBROS DA IGREJA PELO BATISMO. Esta ideia é, sem dúvida, uma ideia fecunda.
Provavelmente muitos de nós, educados na teologia do Vaticano I, baseamos nosso apostolado na convicção de que o que Deus deseja mais para o povo chinês é a existência de uma instituição hierárquica ativa em seu meio; de que Ele quer Núncios, Bispos, MISSAS DOMINICAIS, casamentos católicos, etc., de que Ele quer Dioceses e Paróquias bem organizadas e tudo o que vai na mesma linha. Se esta é de fato a vontade salvífica de Deus, então a perspectiva para a China — como para a maioria das grandes nações da Ásia — está banhada nas trevas do Estige" (o Estige era o rio que atravessava o Inferno, na mitologia grega) (p. 128, destaque nosso).
Cardeal Suenens e Mons. Angelo Fernandes no Colóquio de Louvain.
Pe. Herbert Dargan S.J.
Jovens chinesas em exercício militar na praia. Elas "estão sendo hoje ensinadas a ter um senso de responsabilidade para com a comunidade"?