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DENUNCIADO MARXISMO EM ÓRGÃO FUNDADO PELO EPISCOPADO CANADENSE

Católicos "progressistas" e tradicionalistas entraram em polêmica pelos jornais canadenses, a propósito da publicação do livro "Desenvolvimento e Paz: um socialismo multicolor a serviço do comunismo".

Trata-se de uma obra destinada a alertar a opinião pública dó Canadá contra as atividades da "Organização Católica Canadense pelo Desenvolvimento e Paz". Escrito e divulgado pela entidade "Jovens Canadenses por uma Civilização Cristã" — entidade civil anticomunista constituída de católicos militantes — o livro vem suscitando pronunciamentos de católicos do país através da imprensa, ora procurando defender a posição do organismo "Desenvolvimento e Paz", ora — neste caso encontra-se a maioria — manifestando o acerto da denúncia contida no opúsculo dos "Jovens Canadenses".

Considerando-se que na maioria dos países do Ocidente o fator mais dinâmico da conquista marxista encontra-se mais na ajuda que lhe prestam os chamados "católicos de esquerda" ou "progressistas", do que nos próprios partidos comunistas, o livro publicado no Canadá oferece especial interesse também aos brasileiros.

A síntese dessa obra, que oferecemos a seguir, proporcionará a nossos leitores interessantes elementos para o conhecimento de problemas chaves na luta comunismo-anticomunismo no Canadá, um dos mais vastos e ricos países do hemisfério setentrional.

Um organismo fundado pelo Episcopado: esperanças e decepções

"Desenvolvimento e Paz" foi fundado em 1967 pelo Episcopado canadense.

Seu principal objetivo era ajudar os países pobres ou menos industrializados a fim de promover seu desenvolvimento. Para um fim tão louvável "Desenvolvimento e Paz" solicitou o apoio financeiro dos fiéis e do Governo Federal. Este apoio foi concedido com abundância.

No início os católicos canadenses acolheram com simpatia esta iniciativa. Todavia, com o tempo "Desenvolvimento e Paz" começou a provocar desconfiança. E finalmente um profundo mal-estar se fez sentir em muitos fiéis, à medida que as atitudes esquerdistas do organismo tornavam-se mais notórias e caracterizadas.

À vista disso, os "Jovens Canadenses por uma Civilização Cristã" estudaram minuciosamente o espírito e a doutrina que esse organismo realmente difunde. Tendo analisado mais de cem documentos, o problema apresentou-se mais grave do que se imaginava.

O leitor preocupado em conhecer as provas devidamente fundadas das conclusões sobre esse organismo, encontrá-las-á ordenadas, matizadas e completas no livro intitulado: "Desenvolvimento e Paz: um socialismo multicolor a serviço do comunismo".

Eis seu resumo.

Nem desenvolvimento nem paz

"Desenvolvimento e Paz" reconhece ter mudado nos últimos anos suas prioridades de ação. "Educar" a opinião pública canadense é atualmente mais importante que a realização dos projetos de ajuda concreta aos países subdesenvolvidos.

1. Técnicas para mudar sub-repticiamente as mentalidades

Esta propaganda educativa tem um método, mesmo quando não expresso abertamente.

a) Sob uma torrente de informações pouco documentadas, e que simplificam demagogicamente a natureza dos problemas, "Desenvolvimento e Paz" deforma a realidade do subdesenvolvimento econômico e social no mundo. Esta visão assim deformada é desmesuradamente aumentada de maneira a fazer esquecer outro aspecto positivo da situação contemporânea.

b) A pessoa influenciada por esta "visão-impacto" é convidada a buscar a causa dos males que lhe foram descritos. O organismo lhe dirá que há um único culpado, direto e universal do subdesenvolvimento no mundo. Este culpado seria o sistema que teria produzido a prosperidade das nações industrializadas do Ocidente. Este progresso teria sido obtido pela opressão, pelo empobrecimento e pelo atraso de todas as nações do assim chamado "Terceiro Mundo".

c) Este sistema tem um nome: ele se chama capitalismo. Segundo "Desenvolvimento e Paz", é contra ele como um todo, e não somente contra seus abusos, que se devem dirigir as hostilidades de todos os que amam a justiça.

d) De outro lado, "Desenvolvimento e Paz" mostra existir nações no "Terceiro Mundo" que teriam conseguido vencer com eficácia o capitalismo por novas vias de "progresso" socioeconômico. Seriam os países socialistas como a Argélia de Bounédienne, ou a Tanzânia coletivista; ou mesmo países abertamente comunistas, como o Vietnã, Cuba ou a China vermelha.

e) Concluindo, "Desenvolvimento e Paz" defende que se o cristianismo não quiser fazer-se cúmplice da opressão e da miséria, deverá solidarizar-se com todos os que lutam pela "justiça" e a "libertação" do "Terceiro Mundo", sem excluir os marxistas, que se teriam mostrado os mais eficazes nessa luta.

Ante o método descrito acima, é fácil ver que se um católico canadense se deixar conduzir por tal propaganda, pouco a pouco e sem dar-se conta, abandonará a concepção católica da sociedade e renunciará à solução mesma dos verdadeiros males do subdesenvolvimento. Ele se engajará numa luta anticapitalista, fora da verdadeira doutrina social da Igreja; ele começará a ver nos marxistas colaboradores aceitáveis e, finalmente, modelos de eficácia e de justiça, que devem ser aplaudidos e seguidos. Para um organismo oficialmente católico, que conta com o prestigioso apoio do Episcopado, seria difícil prestar maior serviço à causa comunista.

2. Premissas doutrinárias marxistas

"Desenvolvimento e Paz" não se limita a canalizar as simpatias e o apoio dos fiéis aos movimentos marxistas de "libertação". O organismo analisa também a realidade segundo as premissas doutrinárias de Marx e de Lenine. Com efeito, ele busca no comunismo os seguintes critérios:

a) "Desenvolvimento e Paz" considera a vida econômica como o principal fator que determina a organização social e o desenvolvimento humano.

b) "Desenvolvimento e Paz" explica o desenrolar da História pela oposição dialética ou a luta de classes. Propõe que o poder econômico e político da burguesia capitalista passe às mãos dos operários, dos camponeses e dos consumidores. A maneira proposta para fazê-lo não se distingue claramente do que os comunistas chamam "a ditadura do proletariado", que conduz ao Estado socialista.

c) "Desenvolvimento e Paz" deixa entrever que não aceita princípios morais absolutos para reger uma verdadeira ordem social. Segundo esta visão relativista, o cristão deve acompanhar a evolução da História "libertando-se" dos sistemas ideológicos caducos que até o presente o fizeram recusar os modelos de "desenvolvimento" sócio-marxistas.

d) Uma tarefa fundamental para "Desenvolvimento e Paz" é "conscientizar" a opinião pública por uma propaganda que acentua o que é descrito como "contradições" do capitalismo. Ele opõe de uma maneira equívoca o caráter social da produção ao sistema privado de apropriação. Apresenta, ao mesmo tempo, os regimes socialistas como sendo capazes de "superar" estas contradições.

3. O objetivo: uma reforma geral das estruturas no Canadá e no mundo ocidental

"Desenvolvimento e Paz" deseja uma transformação radical das estruturas do Canadá e de todo o Ocidente segundo as exigências dos movimentos de "libertação" do "Terceiro Mundo".

Na propaganda do organismo encontram-se duas táticas convergentes: consistem elas em criar condições psicológicas a fim de produzir as mudanças de estruturas mencionadas acima.

a) Primeira tática: fomentar uma espécie de guerra econômica dos países "libertados" do "Terceiro Mundo", produtores de matérias primas, contra as nações industrializadas do Ocidente, o capitalismo e as multinacionais.

b) Segunda tática: no interior das nações desenvolvidas — como é caso do Canadá — dar prestígio aos líderes. "engajados" do "Terceiro Mundo" e "conscientizar" a opinião pública a respeito da "falência moral e prática do capitalismo".

O povo canadense seria assim convidado a jogar por terra esse sistema, apoiando do interior do país as pressões e as reivindicações revolucionárias estrangeiras. O governo, os dirigentes políticos e os chefes de empresas sofreriam então pressões para aceitar reformas drásticas de caráter socialista.

Um argumento que não se pode alegar

Lendo as observações dos "Jovens Canadenses por uma Civilização Cristã" sobre "Desenvolvimento e Paz", alguns talvez procurarão justificar este organismo, alegando que o socialismo proposto encontra-se dentro dos limites permitidos pela doutrina católica.

Tal argumento não procede.

Com efeito, o termo socialismo, tal como utilizam os "Jovens Canadenses", significa um regime no qual as atividades próprias à iniciativa privada são transferidas ao Estado, de tal modo ou em tais proporções, que esta iniciativa seja parcial ou totalmente aniquilada. O socialismo marxista atinge este fim pela eliminação completa da propriedade privada dos meios de produção. Esta forma de socialismo e mesmo outras mais mitigadas foram já energicamente condenadas pelo Magistério da Igreja (cf. Pio XI, "Quadragesimo Anno", A.A.S., vol. XVIII).

Ora, não se pode dizer que o socialismo desejado por "Desenvolvimento e Paz" permaneça nos limites permitidos pela doutrina católica, porque não existe nenhuma definição doutrinária que estabeleça esses limites. Quem assim quisesse argumentar, deveria primeiramente fazer conhecer tal definição, até agora desconhecida.

A alegação de um socialismo supostamente católico, nunca definido, não pode, portanto, servir a "Desenvolvimento e Paz" como escudo para negar a validade das acusações que lhe foram feitas.

Um silêncio que cria perplexidade

Os "Jovens Canadenses por uma Civilização Cristã" concluem sua obra tecendo considerações sobre a posição assumida pela Hierarquia de seu país a respeito da organização "Desenvolvimento e Paz" e invocando a proteção de São José, patrono do Canadá:

"Considerando não somente os efeitos funestos das atividades de "Desenvolvimento e Paz", mas também o fato bastante desconcertante do prestigioso e contínuo apoio do Episcopado canadense àquele organismo, todos os católicos canadenses têm a obrigação e o direito de manifestar publicamente sua profunda preocupação.

Por este motivo, com a veneração devida à Hierarquia eclesiástica, da qual respeitamos a autoridade em toda a medida prescrita pelas leis canônicas, formulamos um pedido aos Bispos canadenses: que eles a dotem uma posição pública capaz de sustar e de corrigir os efeitos da ação desenvolvida por "Desenvolvimento e Paz". Tais efeitos são gravemente prejudiciais para a Igreja e para o Canadá.

Com a publicação do livro "Desenvolvimento e Paz: um socialismo multicolor a serviço do comunismo" cremos ter cumprido a este respeito nosso dever de jovens católicos canadenses. Temos a firme esperança de não sermos os únicos a tomar essa posição e que os teólogos e outras personalidades eclesiásticas e leigas, fiéis aos ensinamentos tradicionais dos Pontífices romanos, pronunciem logo, em benefício da opinião pública do Canadá inteiro, uma palavra ditada por seu zelo apostólico e sua cultura.

Finalmente nosso olhar se volta para o glorioso Patriarca São José, protetor da Santa Igreja e patrono do Canadá.

São José, modelo de ortodoxia e de amor humilde pela ordem e pela hierarquia, símbolo da harmonia entre ricos e pobres, que reunis em Vós uma ascendência principesca e a vida modesta de carpinteiro, intercedei junto à Santíssima Virgem, Medianeira universal de todas as graças, para que Ela extirpe completamente dos meios católicos o erro anticristão de Marx, que pretende suplantar traiçoeiramente a verdadeira e luminosa doutrina do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo".

Montreal: os "Jovens Canadenses por uma Civilização Cristã" organizam anualmente Missas pelas vitimas do comunismo

"Encontro com o Terceiro Mundo" ou "Magoshan" é o nome das reuniões anuais organizadas por "Développement et Paix", acusado de favorecer a penetração comunista no Canadá


UTOPIA E IV REVOLUÇÃO

Gregório V. Lopes

Na segunda parte de seu inigualável livro "Revolução e Contra-Revolução", o grande pensador católico, Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, aborda um tema cuja importância para o futuro da humanidade é capital: a IV Revolução, ou seja, "o aspecto mais quintessenciado, mais dinâmico da Revolução universal".

A atualidade premente do assunto vem sendo realçada pela propaganda que hoje se faz do movimento "punk", pela volta ao estado tribal preconizada por missionários "aggiornati", pela atuação de movimentos terroristas como as "Brigadas Vermelhas" italianas. Por isso, quisemos dedicar aqui um breve comentário ao modo pelo qual a alma do homem médio — excluídos, portanto, o revolucionário e o contra-revolucionário categóricos — vem sendo preparada, desde a Revolução Francesa a nossos dias, para aderir à IV Revolução. Extrapola nosso tema tratar das mudanças político-sociais ocorridas nesse período. A elas nos referiremos apenas na medida indispensável, tendo em vista o objetivo específico deste artigo.

O comentário que faremos a seguir é todo ele inspirado e baseado na admirável produção intelectual, escrita e falada, do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.

O ferrete revolucionário

Ateando o fogo da revolta e do ódio, a Revolução Francesa consistiu num terrível ferrete revolucionário que se imprimiu na alma do homem ocidental e cristão. As chispas que daquele braseiro se desprenderam voaram por todas as nações, queimando os espíritos, modificando os hábitos e a vida quotidiana dos homens, transformando a cultura dos povos, mudando as mentalidades e os modos de ser, ver e julgar.

Na formidável rotação dos espíritos que se efetuou, naquela fase histórica, o fator mais dinâmico, mais incandescente, e, por isso mesmo, a ponta de lança de todos os outros, foi a produção, em meio às convulsões dos anos revolucionários, de uma alteração das concepções até então vigentes entre os homens.

A antiga aspiração por uma ordem perfeita, onde a harmonia das classes sociais era o paradigma, foi relegada, e em seu lugar surgiu o desejo de uma igualdade quimérica, de um estado de coisas onde toda desigualdade passou a ser considerada um mal, toda superioridade, uma injustiça.

De outro lado, os veneráveis e nobres ideais de honra, de respeito, de serviço - que faziam do súdito como que um filho enlevado, e do superior um protetor solícito em relação àquele — também foram abandonados. E em lugar desta concepção produziu-se o anseio de uma liberdade concebida como revolta contra toda dependência legítima ou ilegítima, que procurava sacudir qualquer forma de sujeição, ainda quando fosse o jugo leve e suave de que nos fala o Evangelho.

A grande rotação consistiu, pois, na passagem das mentes de uma concepção ideal do homem e da sociedade - tendo por modelo a realidade como Deus a criou - para a visualização de um homem e uma sociedade forjados pela Revolução. O ideal de perfeição foi substituído pela utopia.

A partir dessa transformação desagregadora, levada a cabo no íntimo mesmo dos espíritos, pôde a Revolução dar-se ao luxo de efetuar, nos campos político e social, enormes recuos estratégicos, sem desviar-se fundamentalmente do caminho encetado. Foi assim que, no início do século XIX, a antiga ordem, no que tinha de exterior, chegou a ser quase totalmente restaurada. Mas no interior das almas a utopia fermentava, inclusive naqueles mesmos que haviam obrigado a Revolução a recuar.

A história da Revolução, de então para cá, é sobretudo o processo dessa utopia caminhando nas mentes — muito mais importante do que o histórico das mudanças políticas, sociais ou econômicas que se vêm operando nos fatos.

Um tipo humano contraditório

Cabe aqui considerar um outro fator psicológico de grande importância.

Os morticínios provocados pela Revolução Francesa, o caos social, o desvario das mentes, o clima generalizado de instabilidade e medo, aos quais se sucederam as fortes emoções e decepções da era bonapartista, tudo isso levou os espíritos a desejarem, na primeira metade do século XIX, a tranqüila estabilidade de uma sociedade burguesa. Era o pêndulo da psicologia social que, levado a um extremo do quadrante pelo frenesi revolucionário, procurava agora, com avidez, o outro extremo.

O ferrete revolucionário havia marcado as almas no que elas têm de mais profundo, desatando aspirações efervescentes de igualdade e liberdade quiméricas. Foi assim que, no decorrer do século XIX, formou-se um dos tipos humanos mais contraditórios da História. O homem-padrão, ao menos de boa parte deste período histórico, levado pelo movimento pendular de que falamos, era sedento de conforto, segurança e estabilidade; mas, ao mesmo tempo, em seu interior crepitavam aspirações igualitárias e libertárias frequentemente inconfessadas. Sentado em sua poltrona, ao pé da lareira, fumando seu cachimbo, gozando de todos os benefícios da propriedade à qual estava literalmente agarrado, este tipo humano contraditório sonhava com uma igualdade total, em que ninguém possuísse nada de próprio; que vivesse à maneira do homem-selvagem de Rousseau, fruindo uma liberdade total, como preconizava aquele autor. Sem querer mudar nada em sua vida, este homem-padrão aparecido no século XIX acalentava, no âmago de sua alma, a serpente revolucionária que haveria de dar-lhe a picada mortal.

Enquanto isso, na realidade objetiva dos fatos, a Revolução era quase impotente para mover aquela massa humana. Esta, por seu tamanho, era para o movimento revolucionário como um enorme paquiderme, deitado ao longo da estrada da História, dormindo um sono pesado, povoado de sonhos em que se afigurava como um colibri. O que a Revolução podia fazer, ela o fez, com seu habitual maquiavelismo: alimentar o mais possível o sonho do paquiderme, a utopia igualitária, na qual se encontrava o cerne de sua própria filosofia. Quanto ao mais, tratava-se de ir cutucando o paquiderme, até que chegasse o momento propício para colocá-lo em marcha.

A utopia foi alimentada por uma corrente de socialistas, da qual faziam parte Proudhon, Saint-Simon (o do século passado) e outros. Para um observador superficial, eles foram homens completamente deslocados de seu tempo, pois pregavam ideias para as quais a sociedade burguesa parecia inteiramente infensa. Foram até cognominados socialistas utópicos. Na verdade, eles alimentavam, no fundo das almas burguesas, o sonho revolucionário. Alimentando-o, fortaleciam-no. E fortalecendo-o, acentuavam a contradição interna do burguês que via com isso sua alma rachar-se ao meio, e com ela, a própria estabilidade social.

O canal de ligação

O processo, entretanto, era muito lento. O paquiderme movia-se pouco e a Revolução tinha pressa. Se, de um lado, o homem do século XIX amava demasiadamente seus devaneios socialistas e recusava abandoná-los, de outro, estava suficientemente convencido de que eles eram utópicos para crer em sua concretização. Fazia-se necessário, pois, da parte da Revolução, abrir na mente do burguês um canal psicológico, através do qual ele alimentasse a esperança de conduzir o conteúdo do sonho para o terreno da realidade; algo que lhe desse a ilusão de que utopia e vida não eram reservatórios estanques, mas comunicantes. Tudo, evidentemente, na tentativa de movê-lo no caminho do processo revolucionário.

Foi então que Marx, em meados do século XIX, lançou no mercado das ideias seu tipo de socialismo, ao qual teve o cuidado de colar a etiqueta "científico". O mais eficiente do novo produto residia no rótulo, o que se explica facilmente.

Fazia parte da mentalidade da sociedade burguesa do século XIX cultuar de tal modo a ciência, que lhe atribuía ingenuamente a capacidade de resolver, com segurança e eficácia, todos os problemas da vida. Dizer que se havia descoberto um "socialismo científico" correspondia a afirmar que a ciência operara mais um "milagre", e que fora inventado, por fim, o modo de realizar o sonho do paquiderme.

Evidentemente, a maioria esmagadora das pessoas não leu as indigestas obras de Marx, e este, presumivelmente, não escreveu matéria tão maçuda e complicada para ser lida. A jogada era outra. Tratava-se simplesmente de propagar, mediante uma publicidade bem-feita, que havia sido, afinal, encontrada a fórmula para pôr em prática o socialismo. Se o homem médio disto se convencesse, ainda que não entendesse nada do que Marx escrevera, estaria maduro para dar, efetivamente, os primeiros passos, guiado pelos líderes da Revolução. Mais ainda: quanto mais complicado fosse o método, mais docilmente ele se deixaria conduzir, como um paciente que, desconhecendo completamente a fórmula de um remédio, deposita toda sua confiança no farmacêutico que o vai preparar.

Mas a tarefa revolucionária não era fácil. Na hora de começar a desfazer-se de seus legítimos bens, de abandonar uma vida de conforto e de estabilidade, o burguês não se moveu. Para condimentar a fórmula e dar-lhe mais eficácia, a Revolução lançou então o anarquismo, agitando com suas bombas o final do século. Os anarquistas fizeram explodir a Câmara dos Deputados e o Café Terminus, em Paris; o Presidente da República, Sadi Carnot, foi assassinado a golpes de punhal. A imprensa deu grande destaque a esses acontecimentos. As estruturas sociais pareciam tremer, contribuindo para isso também os episódios do "affaire Dreyfus".

O homem médio, porém, em lugar de entregar-se, assustou-se e recuou. Foi preciso deter a anarquia para não assustá-lo ainda mais, transformando-o numa fera acuada.

Foi só durante a primeira grande guerra, que a Revolução lançou um golpe ousado. Fazendo tabula rasa das "profecias" de Marx sobre o breve advento do socialismo nos países industrializados, o Estado escolhido para vítima ou, em outros termos, laboratório de experiência, foi a Rússia tzarista, essencialmente agrícola. Lenine organizou rigidamente seu partido e, aproveitando um momento delicado pelo qual passava aquele país, desencadeou a subversão armada em outubro de 1917, e encarapitou-se no poder. Formou logo um exército, e, muito ajudado a partir do exterior, conseguiu equilibrar-se com dificuldade. As teorias de Marx, que advogavam o poder para a classe operária, foram "momentaneamente" relegadas. Também os ideais de igualdade e liberdade não puderam ser "logo" realizados. Mas, nos quatro cantos da terra trombeteou-se que, pela primeira vez na História, um país inteiro — e de dimensões continentais — tornara-se socialista.

Passaram-se os anos e as décadas, e com eles tornou-se palpável a inexequibilidade — porque contrários à natureza humana — dos mitos socialistas da total igualdade e liberdade. Agarrados ao poder como as ostras aderem aos rochedos marinhos, e impondo-se por meio de um Estado — ele sim socialista e antinatural — os comunistas russos até hoje mantêm o domínio político. Por que meios? Através do exercício da força, dentro de suas fronteiras, como também, através de abundante ajuda externa, que a jato contínuo, lhes é proporcionada pelos países capitalistas.

O Ocidente trabalhado hoje

Desde 1917, enquanto as Lubiankas, os campos de concentração e, mais recentemente, as clínicas psiquiátricas, iam eliminando suas vítimas na Rússia e nos países por ela subjugados, o Ocidente veio sendo trabalhado no sentido de aspirar, cada vez mais, a utopia socialista. E diante do fracasso claro da "experiência" russa, cujo "modelo" cada vez menos se engole no Ocidente, a utopia começou a ser apresentada, nos últimos 10 ou 15 anos, como igualmente contrária ao comunismo russo e ao capitalismo burguês. Foi este o modo que a Revolução encontrou para não libertar a Rússia e satélites de suas garras e, ao mesmo tempo, não destruir os devaneios utópicos nas almas dos ocidentais.

Para isso, a propaganda anti-russa de origem revolucionária (não nos referimos, portanto, ao verdadeiro anticomunismo) tomou todo cuidado em atacar apenas o aspecto totalitário e opressor do regime soviético, salvando, a todo custo, as aspirações utópicas do comunismo.

Em vista disso, explicam-se inúmeras manobras levadas a efeito no Ocidente, como por exemplo, no campo político, a do eurocomunismo, o qual se apresenta como um comunismo democrático e liberal, contrário, portanto, ao de Moscou. Outra manobra, ainda mais espetacular, consistiu em levar toda uma corrente do Clero católico a apresentar a utopia socialista como sendo a mais alta realização do Cristianismo. Constituem exemplos disso o movimento "Cristãos pelo socialismo", a "Teologia da libertação" e outras iniciativas do gênero, algumas delas menos radicais e, por isso mesmo, mais enganosas.

Sobretudo, a Revolução vem procurando explorar o cansaço que o conforto e a segurança sem Deus e a visão do sobrenatural produziu nos

No século XIX o pêndulo da psicologia social inclinava-se para outro extremo: adoração do conforto, como revela esta cena de um Café de Paris. No interior das almas a utopia continuava a fermentar.

Cena dos "massacres de setembro" durante a Revolução Francesa. A utopia revolucionária gerava então seu mais alto grau de exacerbação.

Continua