Nunes Pires
A 25 de fevereiro de 1551, em Roma, o Papa Júlio II assinava e selava um pergaminho que, segundo as praxes da Cúria Romana, seria copiado, arquivado e remetido a quem de direito. Tratava-se da Bula "Super Specula Militantis Ecclesiae", um documento aparentemente rotineiro.
Para a História do Brasil, entretanto, esse pergaminho tem um significado especialíssimo, pois através dele foi criado o primeiro Bispado na Terra de Santa Cruz, erigindo como sede a recém-fundada cidade de São Salvador da Bahia. Hoje, transcorridos quatro séculos, a suposta ilha descoberta por Pedro Álvares Cabral constitui o país de maior população católica da Terra, apresentando para os autênticos fiéis esperanças de vitalidade para o futuro, apesar da imensa crise que assola atualmente a Igreja em todo o mundo.
A primitiva Catedral da Bahia, entretanto, aquela que primeiro abrigou a Cátedra Episcopal, e que poderia ser chamada a "pia batismal da nacionalidade", não mais existe. Arrasou-a a fúria modernizadora de alguns homens que, no início deste século, entregaram-se à faina de amoldar a histórica cidade aos critérios urbanísticos da era do automóvel, que então se iniciava.
Em Salvador, diversas igrejas, dentre as mais antigas, foram sendo, uma a uma, deformadas, mutiladas ou simplesmente demolidas. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário teve a nave seccionada transversalmente; a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, também conhecida como a "Sé de Palha", edificada nos primórdios da cidade, foi demolida, sendo reconstruída em outro estilo. Na área hoje conhecida como "Relógio de São Pedro" localizava-se a Igreja de São Pedro, derrubada para alargamento da rua, sendo instalado no local um relógio sobre uma coluna. Até mesmo o majestoso Mosteiro de São Bento esteve prestes a ser arrasado, mas o plano não chegou a concretizar-se porque o Abade publicou um oportuno apelo à população, que acorreu prontamente em seu apoio.
A demolição que, entretanto, suscitou maior número de protestos - baldados, infelizmente - foi a da antiga Sé, em 1933, quando, mediante explosão de cargas de dinamite e golpes de picaretas, suas veneráveis paredes vieram abaixo.
D. Pero Fernandes Sardinha, o primeiro Bispo do Brasil, fez construir a Sé na parte alta da cidade, considerando sua privilegiada posição defensiva, em caso de ataques invasores. Situava-se ao lado da Santa Casa de Misericórdia, tendo sua fachada voltada para a baía de Todos os Santos, na direção em que se avista ao longe a ilha de Itaparica. Seu adro terminava, por conseguinte, próximo à muralha natural formada pelo precipício junto ao mar, enquanto o presbitério situava-se na área hoje denominada Praça da Sé. Este, juntamente com uma parte da nave do templo, não estavam em alinhamento com a rua da Misericórdia. Havia um traçado irregular, tão cheio de encanto e poesia, que em nada prejudicava a pacata faina dos antigos moradores da cidade, mas se afiguraria um pesadelo para o diretor de trânsito de alguma megalópole hodierna.
Já em 1551 estavam formadas as ruas do Rosário, de São Pedro, de São Bento, da Ajuda, da Misericórdia, a Ladeira da Praça, bem como a rua do Colégio, contando a "Cidade d'El Rei e Corte do Brasil — no dizer do Jesuíta Pe. Fernão Cardim — mais ou menos oitocentos vizinhos".
A manutenção da Sé sempre exigiu cuidados, conforme registram as crônicas. Danificada pela ação do tempo, esta passou por uma substancial reforma a partir de 1618, tomando a feição da Igreja do Espírito Santo, existente na cidade de Évora, Portugal.
Paradoxalmente, os lusos-brasileiros que com tanto empenho haviam antes se dedicado ao soerguimento daquele templo, voltaram contra ele os canhões de seus navios ancorados na baía.
Eram circunstâncias dolorosas. Salvador encontrava-se em poder dos invasores holandeses, ali chegados em 1624, e que, tal como fizeram com outras igrejas da cidade, após destruírem altares e imagens, transformaram a Sé em lugar de culto protestante e abrigo de soldados heréticos. Nas torres ainda inacabadas tremulava não a bandeira de Portugal, mas a dos Estados Gerais Holandeses, dominados já naquela época pela heresia calvinista.
Reconquistada a cidade, e com a ascensão da dinastia de Bragança ao trono português, os trabalhos de recuperação da Sé tomaram novo impulso.
Um magnífico órgão foi doado pelo Rei de Portugal D. João V juntamente com um relógio para a torre. No entanto, ambos tiveram que ser retirados pouco depois de instalados, em vista de rachaduras surgidas nas paredes e nas torres, causadas por desmoronamentos de terra para o lado do mar.
Contudo, mais nociva do que os deslizamentos de terra, que punham em risco o templo — catástrofe de caráter material —, foi a disseminação de uma mentalidade carregada de igualitarismo, naturalismo e indiferença religiosa. Tal espírito, fruto da impiedade típica do enciclopedismo, preparava terreno para a eclosão da Revolução Francesa, e em Portugal e colônias manifestou-se principalmente pela atuação do Marquês de Pombal, ministro do Rei D. José I.
Salvador se ressentia desses efeitos desastrosos. Quem ali chegasse em 1760 encontraria já em estado de abandono o Colégio e a Igreja dos Jesuítas, os quais haviam sido expulsos do Brasil em consequência da ímpia política de Pombal. Toda a biblioteca, inclusive manuscritos inéditos, foi entulhada num depósito do Colégio, segundo narração do viajante Lindley, que o visitou no início do século passado (1).
Em 1840, devido ao caráter restritivo e anticlerical da Regência, durante a minoridade de D. Pedro II, que vetava às Ordens Religiosas a admissão de noviços, o majestoso Convento de Santa Teresa não contava com mais nenhum religioso. O último deles acabava de falecer, e por isso, com um simples decreto, e externando certo comprazimento, o Governo Provincial da Bahia, declarava extinta a Ordem Carmelita Descalça, naquela província.
Em tal ambiente, não é de se estranhar que, já em 1815, circulasse em Salvador proposta para que fosse demolida a Sé, medida contra a qual se manifestou o Cabido Diocesano, dirigindo uma petição ao Rei D. João VI.
A partir de 1907 começou a funcionar na cidade o serviço de bondes, os quais, para entrar na Praça da Sé, deviam fazer uma curva, mais lentamente, pois a rua junto ao templo era relativamente estreita.
Isso foi suficiente para que, numa orquestração crescente, começassem a aparecer nas páginas dos jornais da época insinuações e referências sarcásticas, advogando a demolição da Sé, chamada pejorativamente de "trambolho" e comparada à fortaleza de Bastilha, em Paris... (2)
Não faltaram, felizmente, vozes que, em nome do bom senso e da tradição católica, fizessem ouvir seus argumentos e apelos.
Diversas personalidades do magistério baiano, em 1928, dentre as quais o Cônego José Francisco Correia e o Prof. Edgard dos Santos, subscreveram um "Protesto contra a demolição da Sé". Nele se realçava a série de atentados perpetrados contra o patrimônio artístico e cultural da Bahia, tais como o incêndio da capela particular dos Jesuítas, o incêndio da Biblioteca Pública, a destruição da Igreja da Ajuda, e, finalmente, a propalada demolição da Sé. — "Antes que o camartelo comece a obra de destruição dessa odiada Cartago imaginária, a velha Sé da Bahia, contra a qual vociferam os Catões de um urbanismo ilógico, seja-nos lícito levantar nosso protesto contra a negregada empresa, que assinalará uma fase de inominável desprezo às tradições da Pátria e retrocesso na história. de nossa civilização", afirmavam os subscritores (3).
O Prof. Bernardino José de Sousa, por sua vez, que ocupava o cargo de Secretário do Instituto Histórico da Bahia, assim se manifestou, em artigo publicado no mês de junho de 1933:
"A Sé está por dias, dizem os jornais. Quero recordar o meu voto em momento como este de agora. Quando vejo, dia sobre dia, repetidos atentados do aluvião de modernizadores, levando de arrancada os nossos monumentos de tradição, confrange-se-me a alma diante da impenitência dessa volúpia do ideal vermelho da destruição do passado, em prol de um pretenso conforto do presente.
Por isso é que sou contra a derrubada da "mãe das igrejas brasileiras", a velha e tisnada Sé metro politana de outrora, em cuja nave se marcam 375 anos de existência, aureolada pelo amicto da nossa religião" (4).
No Rio de Janeiro, a Associação dos Artistas Brasileiros publicou em todos os jornais um comunicado intitulado "Defesa do Patrimônio Tradicional Brasileiro", solicitando às autoridades e povo baianos que empregassem todos os meios legais para impedir a demolição da Sé, salvando parte do valioso patrimônio nacional ligado às origens do Brasil (5).
Todas essas manifestações, contudo, não foram levadas em consideração, consumando-se a demolição. Na verdade, esta já estava previamente acertada nos mais altos escalões eclesiásticos e civis. Em 1919, o então Arcebispo D. Jerônimo Thomé obtivera da Santa Sé as devidas licenças para a entrega do templo à prefeitura de Salvador. Seu sucessor, D. Augusto Álvaro da Silva, concluiu as tratativas com as autoridades municipais.
Em meados de 1933 tiveram início as medidas para o esvaziamento da Sé. O povo foi convocado para retirar as imagens, que ainda hoje permanecem guardadas nas dependências do antigo Colégio dos Jesuítas. De uma das sacadas do Palácio, D. Augusto assistiu ao estranho cortejo, o qual, segundo o jornal arquidiocesano "Nova Era", deveria constituir "mais uma bela e tocante manifestação de religiosidade de nosso povo" (6). Abriram-se os túmulos da série de Bispos da Bahia que jaziam sob o piso da Catedral. Um engenheiro publicou na imprensa carta muito sintomática, endereçada ao "Sr. Arcebispo, ao Prefeito da Capital e à irmandade da Sé", aplaudindo a derrubada, "obra meritória, feita em nome do progresso" (7). Em plena Belle époque, o mito deste era avassalador e atraía grande número de pessoas.
A partir dessa data, a igreja do antigo Colégio dos Jesuítas passou a ser Catedral Basílica da cidade.
Cinquenta anos transcorreram.
Os bondes tornaram-se obsoletos e os trilhos foram abandonados. As repartições administrativas foram transferidas da área central para fora do perímetro urbano, e o espaço da antiga Sé permanece vazio...
* * *
Uma velha lenda francesa refere-se a uma catedral submersa nos mares da Bretanha, cujas torres, por vezes, ao se aproximarem os marinheiros, vinham à tona, e os sinos repicavam.
A velha Sé da Bahia faz lembrar essa lenda.
Do templo restam apenas os alicerces soterrados, o altar cinzelado em prata e algumas peças expostas em museus de Salvador. Entretanto, em todos que folheiem com admiração e enlevo as páginas que contam sua história, um sentimento de respeito e nostalgia aflora naturalmente.
Os sinos da antiga Sé não mais repicam, mas sua história faz vibrar as cordas das almas verdadeiramente católicas...
Notas
(1) "Thomas Lindley, "Narrativa de uma viagem ao Brasil", Ed. Brasiliana, 1969, p. 161.
(2) Artigo "Rendeu-se a Bastilha", em "A Tarde", Salvador, 27-6-33.
(3) Valentin Calderón, "Remanescentes da Sé da Bahia", Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1976, p. 2. - Apostila informativa da exposição de fotos da Sé e sua demolição, apresentada no Museu de Arte Sacra, em julho de 1976.
(4) Artigo "O meu voto contra a demolição da Sé", em "A Tarde", Salvador, 22-6-33.
(5) Notícias sob títulos: "Contra a demolição da Sé" e "Contra a consumação do atentado", em "Nova Era", Salvador, 27-6-33 c 29-6-33, respectivamente.
(6) Artigo "Depois de quatro séculos", em "Nova Era", Salvador, 6-8-33.
(7) "A Tarde", Salvador, 11-8-33.
Depois da retirada solene das imagens...
...a antiga Sé da Bahia foi reduzida a escombros, para dar lugar a um estacionamento.
Em 1933, para facilitar o contorno da linha de bonde por três pequenos quarteirões no centro de Salvador, o prefeito municipal, Sr. Americano da Costa, efetivou a demolição da primeira catedral do Brasil
Fachada da antiga Sé da Bahia
Plinio Corrêa de Oliveira
Circunstâncias diversas — e quão involuntárias — me impediram até o momento de escrever sobre a visita de João Paulo II ao Brasil. Ponho-me a fazê-lo hoje, com a esperança de concluir em artigo posterior.
Esta tarefa é, para mim, muito querida. Vejo na Santa Igreja a alma de minha alma. E na minha devoção ao Papado, por assim dizer, a alma de minha devoção à Igreja. Nada mais preciso dizer para exprimir o sentimento profundo com que trato do assunto.
Esquematizando, a história dos doze dias que João Paulo II aqui passou se divide em duas partes: a) o que ele disse e fez aqui; b) o modo por que os brasileiros acolheram os ensinamentos e as atitudes dele. O normal seria que eu começasse pela "a". Mas suas alocuções ocupam um volume de 277 páginas, na edição brasileira que tenho em mãos. Aliás, não me contentarei com essa edição, e pretendo estudar a matéria no próprio texto de "L'Osservatore Romano", órgão oficioso da Santa Sé. Ora, é fácil calcular o tempo necessário para o estudo — palavra por palavra —, desses importantes textos. Enquanto de cá e de lá vou encontrando interstícios para tal estudo, não posso entretanto delongar ainda mais meu silêncio nas colunas hospitaleiras da "Folha".
* * *
Começo pois pela parte "b", isto é, a reação do povo brasileiro.
Durante a permanência de João Paulo II, o Brasil viveu em "suspense". Na televisão, no rádio e na imprensa, por assim dizer só se cogitou dele. O público absorveu avidamente todo este noticiário, e mesmo quando, entregue aos afazeres diários, o brasileiro não podia pensar no ilustre visitante, tinha-o entretanto no subconsciente.
Encerrada a visita, durou ainda este fenômeno uns dois ou três dias.
Depois, grande parte do povo voltou, a cem por cento, para as atividades de cada dia, tão emproblemadas, tão carregadas de grandes ou pequenas ameaças, tão tiranicamente absorventes. E uma muito grande parcela da opinião nacional "desligou" daqueles dias, Para ela, a visita já pertence ao passado, nestes duros dias de imediatismo nos quais só o futuro conta.
Mas isto, que ocorreu a uma incontestável maioria, não engloba uma muito ponderável minoria de brasileiros, que continuou a guardar na alma os ecos e as lembranças da visita pontifícia. Nessa faixa de saudosos há matizes. Uns — a maioria dentre esta minoria — ficaram marcados até o fundo da alma pela presença de João Paulo II. Bem certo, por verem nele o Vigário de Jesus Cristo. Mas também, e muito notavelmente, por se encantarem com alguns predicados personalíssimos de Karol Wojtyla. A saúde pletórica, a atividade heroica (e tão bem humorada), a segurança comunicativa, a propensão esfuziante para o diálogo e a concórdia deram a muitos a impressão de que o Pontífice tem em mente uma fórmula toda sua para fazer cessar o dilúvio de apreensões, riscos e tormentos que se abate sobre o Brasil e o mundo. A par dessa fórmula, insinuada pelo sorriso afavelmente malicioso dos olhos e dos lábios, pela despreocupação da fisionomia otimista, e pelo implícito convite feito a todos para que esperem e se alegrem, delineava-se um método inconfundivelmente pessoal para aplicar a fórmula. Dotes de Karol Wojtyla, carismas de João Paulo II pareciam entremear-se para, num só todo, transmitir a certeza, por assim dizer telepática, do êxito que ele alcançará.
E quem o olhasse teria a impressão de estar saboreando de antemão esse êxito que o ilustre visitante "promete". A força da persuasão de que esse êxito virá tinha mais efeito do que a sua palavra oral ou escrita. Essa tática, só um Wojtyla teria os dotes, por assim dizer transpsicológicos, para levar a cabo. E sem lutas: obra de reconciliação de todos os direitos emaranhados e conflitantes, de todos os interesses abespinhados e irredutíveis, um doce paraíso na terra, enfim.
Ora, esta mensagem foi "captada" a fundo por nossa população, cujo feitio psicológico me parece feito para isto. O brasileiro gosta mais de compreender ouvindo do que lendo. E vendo, mais ainda do que ouvindo: tão intuitivos somos.
Creio que a delícia de receber, em contato pessoal, esta mensagem otimista, explica, em larguíssima medida, a alegria — que eu chamaria frenética, se neste adjetivo não houvesse qualquer coisa de pejorativo — em que muitas pessoas entraram tão-só ao ver o Pontífice entrar, sair, sorrir, agradar, ou também orar.
* * *
Tenho a impressão de que, na ampla minoria, a qual ainda vive os dias da visita, esta alegria, longe de ir morrendo, se vai quintessenciando. No povo mais afetivo do mundo — pois não somos menos afetivos do que intuitivos — há pessoas que julgam sentir-se entrando no Reino, no milênio, no paraíso terrestre recuperado. Nunca mais desinteligências, nem conflitos de interesse, nem lutas, nem carências: o misterioso mas irresistível "know-how" wojtyliano acabará com tudo isto para todo o sempre.
O mais curioso é que o Pontífice nada disto afirmou. Mas na alma de seus saudosistas se vai tornando certeza.
Generosa, tonificante e apaziguadora certeza, dirão muitos. Utopia, receio eu. Pois não vejo como justificar, ante a doutrina católica, essa esperança que em alguns me parece ir se formando.
Com efeito, ensina-nos a Igreja que esta terra é um lugar de exílio, um vale de lágrimas, um campo de batalha, e não um lugar de delícias. Sobretudo esta perfeita e definitiva concórdia entre os homens jamais existirá. Nosso Senhor Jesus Cristo foi o Príncipe da Paz. E, sem Ele, toda paz não é senão um embuste. Mas dEle foi predito que seria "posto para a ruína e a ressurreição de muitos em Israel, e como um sinal de contradição [...] a fim de que se revelassem os pensamentos nos corações de muitos" (Lc. 2, 34-35). E Ele mesmo disse de Si: "Não julgueis que vim trazer a paz à terra: não vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra" (Mt. 10, 34-35).
Imaginar, pois, um mundo sem lutas e sem reveses é o mesmo que conceber um mundo sem Jesus Cristo.
Fazendo estas afirmações, tenho a impressão de ver, à distância, contorcer-se, exasperada, a seita mais furibunda, mais agressiva, mais intolerante e mais destemperada. É ela constituída pela família de almas dos que sonharam com um mundo sem ideologias, sem hierarquias, sem fronteiras, sem divisas, sem cercas, sem "privacy" nem direitos individuais. A família de almas que prega tolerância para com todos, mas odeia de morte os que ousam discordar da amplitude exagerada que ela dá a essa tolerância. Dos que querem a liberdade de palavra e de opinião para todo o mundo, exceto para quem quer fazer o uso do verbo a fim de discordar dela.
A efervescência desta raiva não me assusta. Ouço-a rugir desde que comecei a pensar. À medida que fui multiplicando meus passos ao longo da vida senti que seu olhar de ódio, suas ciladas, o silvar de suas calúnias me seguiam sem cessar, num implacável "crescendo".
Como posso concordar em que João Paulo II seja visto, enquanto Papa, como o doutor dessa utopia, e enquanto Karol Wojtyla o posto condensador e tele-transmissor, em nível mundial, desses eflúvios sentimentais?
É impossível. Pelo contrário, alegro-me em anunciar, antes mesmo de ter lido todas as suas alocuções feitas no Brasil, que nenhuma delas ergue diante do mundo o pendão dessa utopia.
E como nada me autoriza a esperança de ter terminado a leitura das alocuções de João Paulo II durante a próxima semana, conto comparecer ante os meus leitores utopistas apresentando-lhes uma mensagem que me justifique. Augusta, esplendorosa e sonora mensagem que se levantou entre os homens no longínquo século XVII, e que hoje baixa do Céu, do mais alto dos Céus, bem de junto do trono de Nossa Senhora.
Oh mensagem! Quanto agradará as inteligências ponderadas, as vontades heroicas e os corações puros. Até a próxima semana, leitor.
Analisei em meu último artigo um aspecto da reação do público brasileiro ante a personalidade de João Paulo II. Reação esta muito abrangente, pois, à maneira de imensas vibrações, perpassou extensas massas humanas em todos os setores da opinião pública. Homens de esquerda, como de centro ou de direita, católicos, protestantes, cismáticos, judeus, budistas, maometanos, espíritas, ateus: afluíram eles em quantidade para ovacionar João Paulo II, num tumultuoso movimento de alegria. Deixava isto entrever, nessas multidões sobressaltadas, politorturadas de nossos dias, a esperança de que, em contato com os dotes pessoais — personalíssimos — do Papa Wojtyla, receberiam, juntamente com eflúvios de otimismo, de alegria, de simplicidade e de saúde, um peculiar "knowhow" para resolver, segundo fórmulas inéditas, os problemas de cada indivíduo, de cada família, da nação inteira.
Por certo, no ânimo dos católicos não havia só esta esperança, mas também a convicção de que Karol Wojtyla é o sucessor de Pedro. Mas esta nobre convicção, baseada na Fé, era um denominador comum peculiar aos católicos. Entre católicos e não católicos, o denominador era, o mais das vezes, Karol Wojtyla, como pessoa resplandecente de específicos dotes individuais. E o anseio de receber, no fundo abismo da aflição em que se acham, algo que lhes sacie o desejo de despreocupação, paz e fartura. Transes de aflição — anseios de felicidade: a alternativa é muito tensionante. Do fundo desses anseios de bem-estar, de paz, de despreocupação que faziam arfar milhões de peitos humanos reunidos junto a João Paulo II, pareceu-me exalar-se, pelo próprio jogo dessa tensão, o sonho utópico de inteira felicidade terrena que tantos dos presentes esperavam obter, menos de João Paulo II, do que de Wojtyla.
Tal anseio me deixou, assim, preocupado, pois se apresenta com um potencial de ingenuidade e uma precariedade emocional de que algum demagogo poderá tirar, a qualquer momento, sinistro partido.
Não é deste mundo a concórdia sem, jaça, a paz perfeita e eterna entre todos os homens, todas as nações e todas as doutrinas, a felicidade total. Nesta terra de exílio, as carências, as dissenções, as catástrofes são inevitáveis. E uma visão cristã da vida leva, ao mesmo tempo, a circunscrevê-la quanto possível, e a resignar-se a elas porque inevitáveis.
Esta dura lição, tão ingrata ao neopagão de nossos dias, lembro-a num texto áureo de São Luís Maria Grignion de Montfort, o incomparável apóstolo da devoção a Nossa Senhora.
Dissertando sobre a eterna luta entre a Virgem e a serpente, mostra-nos ele a vida dos povos antes de tudo como uma grandiosa, trágica e incessante guerra entre a Verdade e o erro, o Bem e o mal, o belo e o feio. Batalha esta sem a qual a existência terrena do homem, desfalcada do seu significado sobrenatural, perderia sua dignidade.
Comentando as palavras do Gênesis (3, 15): "Porei inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela. Ela te pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar", observa com profundidade o grande Santo: "Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável, que não só há de durar, mas aumentar até o fim: a inimizade entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer; de modo que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou contra o demônio" (cfr. "Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem", Vozes, Petrópolis, 6.a ed., 1961, pp. 54-55).
E ele passa em seguida a descrever a grande guerra que divide o homem inexoravelmente, até o fim da História. Tal guerra não é senão um prolongamento da oposição entre a Virgem e a serpente, entre a progenitura espiritual dAquela, e a progenitura espiritual desta: "Ele lhe deu até, desde o paraíso, tanto ódio a esse amaldiçoado inimigo de Deus, tanta clarividência para descobrir a malícia dessa velha serpente, tanta força para vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso, que o temor que Maria inspira ao demônio é maior que o que lhe inspiram todos os anjos e homens e, em certo sentido, o próprio Deus" (op. cit., p. 55).
Dentro deste quadro, a "clemens, pia, dulcis Virgo Maria" que o doutor melífluo, São Bernardo, cantou com tal suavidade no "Salve Regina", nos é apresentada por São Luís Grignion como uma verdadeira torre de combate ("Turris davidica", exclama a ladainha lauretana).
Ao longo da História, os filhos de Nossa Senhora batalharão até o fim do mundo contra os filhos de Satã. E a vitória final será dos primeiros, pela interferência da Mãe de Deus: "Deus não pôs somente inimizade, mas inimizades, e não somente entre Maria e o demônio, mas também entre a posteridade da Santíssima Virgem e a posteridade do demônio. Quer dizer, Deus estabeleceu inimizades, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e escravos do demônio. Não há entre eles a menor sombra de amor, nem correspondência íntima existe entre uns e outros. Os filhos de Belial, os escravos de Satã, os amigos do mundo (pois é a mesma coisa) sempre perseguiram até hoje e perseguirão no futuro aqueles que pertencem à Santíssima Virgem, como outrora Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú, seu irmão Jacob, figurando os réprobos e os predestinados. Mas a humilde Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final, que ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela descobrirá sempre sua malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus conselhos diabólicos, e até ao fim dos tempos garantirá seus fiéis servidores contra as garras de tão cruel inimigo" (op. cit., pp. 56-57).
* * *
Bem entendido, nossos dias também têm sido, são e serão sacudidos por esse entrechoque terrível, que não se confunde necessariamente com as guerras do século, mas tem alguma relação com elas. E sobretudo tem uma relação óbvia com as incontáveis revoluções que têm abalado o Ocidente, como fora predito por Nossa Senhora em Fátima.
A supressão dessa luta por uma reconciliação ecumênica entre a Virgem e a serpente, entre a raça da Virgem e a raça da serpente, rumo a uma era na qual a cessação utópica do entrechoque acarrete uma composição entre todos os direitos, todos os interesses, uma interpenetração de todas as línguas sob um governo universal que será tão-só fartura e despreocupação: eis a grande utopia contra a qual as massas se devem precaver. Eis o regresso (ou antes, o retrocesso) à orgulhosa torre de Babel, que de todos os modos o neopaganismo procura reerguer. Eis a bandeira toda tecida de ilusão e de mentira com que, em todas as épocas, os demagogos procuram arrastar as massas insurrectas.
Eis também o que me pareceu ser o perigo no qual podem descambar muitos daqueles que, vendo em nosso ilustre visitante de há pouco, não (ou pelo menos não tanto) o Augusto Vigário de Cristo, mas um atleta ou um demiurgo em matérias socioeconômicas, à força de porem sua confiança no homem, acabarem por subestimar ou esquecer que ele é o Vigário de Deus.
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