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Continuação

Predições de Nossa Senhora...

tratar um assunto no Arcebispado, e levou consigo o Pe. Aladel. Este aproveitou a oca sião para expor ao Arcebispo os prodígios ocorridos na Rue du Bac.

O Arcebispo, Mons. de Quélen, escutou a narração e se interessou pelo caso. Ele não viu nenhum inconveniente em que a Medalha fosse cunhada, pois tudo nela era conforme à Fé da Igreja e à piedade corrente dos fiéis. Ademais, a Medalha de si não empenhava a autoridade eclesiástica quanto ao reconhecimento das Aparições. O Arcebispo não via pois, na Medalha, senão um novo modo de honrar a Mãe de Deus, e encorajava o irresoluto Pe. Aladel a levar adiante o empreendimento. Mons. de Quélen quis, ele próprio, receber as primeiras medalhas que se fizessem.

O Pe. Aladel mudou, assim, de atitude. E começou por divulgar as Aparições no âmbito das duas famílias religiosas de São Vicente de Paulo, sem, entretanto, revelar o nome da predileta de Nossa Senhora.

Ao que parece, apenas uma freira soube penetrar o seu segredo. Foi a Irmã Séjolles, a primeira professora de Catarina em Chatillon-sur-Seine. Chegando a Paris para seu retiro anual, a Irmã Séjolles soube dos grandes acontecimentos que se haviam desenrolado na Rue du Bac perante uma jovem noviça de 1830.

— "Em 1830? Uma jovem irmã do Seminário? Minhas irmãs, neste caso não pode ser outra senão nossa Irmã Catarina Labouré. Estejam certas de que esta jovem está destinada a receber os maiores favores de Deus".

Mesmo antes disso, a Irmã Séjolles nunca ia a Paris sem passar pelo Asilo d'Enghien, em Reuilly, para onde a Irmã Catarina fora transferida, a fim de rever sua antiga aluna. Desta feita, ela a procurou com uma alegria toda especial. Elas se saudaram com um sorriso inefável. Elas se entreolharam e se compreenderam. A Irmã Séjolles teve vontade de se ajoelhar diante daqueles olhos límpidos que haviam contemplado a Santíssima Virgem...

Mas o segredo devia ser respeitado. Os olhos espessos das demais freiras jamais penetrariam esse mistério!

Primeiros prodígios

Em maio de 1832, o Pe. Aladel se decidiu, por fim, encomendar na Maison Vachette, de Paris, vinte mil medalhas.

No dia 30 de junho de 1832 ficaram prontas duas mil, das quais algumas foram remetidas ao Papa Gregório XVI, que colocou uma delas ao pé de seu crucifixo e distribuiu as outras, com particular empenho, às pessoas que o visitavam. Outras foram enviadas a Mons. de Quélen, que obteria logo uma graça extraordinária com uma delas.

No dia da distribuição às freiras do Asilo d'Enghien, a Irmã Catarina a recebeu modestamente como sempre, mas com palavras de grande devoção a Nossa Senhora.

- "Agora é preciso propagar esta Medalha" — comentou a Santa.

A Medalha ia assim fazendo o seu caminho. Curas extraordinárias — verdadeiramente miraculosas — se produziam, tanto do corpo quanto da alma.

Mons. de Quélen, ardoroso propagador da Medalha, soube da morte iminente de Mons. Pradt, ex-capelão de Napoleão Bonaparte, ex-Arcebispo de Malines (Bélgica), cargo para o qual fora nomeado por vontade do imperador, sem o assentimento de Roma. Ele estava, pois, em rebelião contra a Santa Sé. O Arcebispo de Paris procurou o moribundo com a Medalha. Mons. de Quélen foi recebido pelo Prelado rebelde, que aceitou uma conversa banal, mas recusou violentamente tratar do assunto essencial. Repelido, Mons. de Quélen retirou-se, rezando a jaculatória: "O Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós". Mal o Arcebispo de Paris acabava de chegar à rua, o criado de Mons. Pradt correu atrás, pedindo desculpas da parte de seu amo, e rogando-lhe que voltasse. Tocado pela graça, o moribundo retratou-se de seus erros, reconciliou-se com Deus e com a Igreja, e faleceu na noite seguinte com sentimentos da mais sincera penitência.

Esse e outros fatos corriam o mundo, justificando o nome de Milagrosa logo dado à Medalha. De 1832 a 1836, a Casa Vachette de Paris havia vendido 2.200.000 medalhas em ouro, prata e cobre. Onze outros fabricantes, na capital francesa, venderam juntos outro tanto. Em Lyon foram fabricadas seis milhões. Assim, no total, mais de dez milhões de medalhas somente na França. E ela já se espalhara por vários países da Europa.

Santa Catarina e o Dogma da Imaculada Conceição

Apenas é possível acenar aqui muito de passagem para os múltiplos e grandiosos efeitos da difusão da Medalha.

As Pias Uniões das Filhas de Maria, também pedidas por Nossa Senhora numa das Aparições a Santa Catarina Labouré, espalharam-se por todo o mundo, preservando incontáveis gerações de moças dos efeitos deletérios da revolução dos costumes.

Não é possível falar das Aparições da Rue du Bac e da Medalha Milagrosa sem uma menção, ainda que rápida, ao profundo movimento de renovação religiosa que a Providência desencadeou a partir da devoção a Nossa Senhora das Vitórias, tendo como protagonista o Pároco dessa célebre igreja de Paris, Pe. Defriche-Desgenette, de piedosa memória. De tal maneira este se considerava ligado espiritualmente às Aparições da Rue du Bac, que vendo as Irmãs de Caridade afluírem à sua Paróquia — tornada centro de atração religiosa — ele sempre dizia:

- "Que fazeis aqui, minhas Irmãs? Vós abandonais a fonte para vir abastecer-vos no regato?"

O Pe. Aladel, entretanto, considerava que franquear a Capela da Rue du Bac ao público, como decorria obviamente das palavras de Nossa Senhora, iria transtornar a vida da comunidade...

Em 1854, Pio IX proclamava o Dogma da Imaculada Conceição. Na preparação das almas para esse histórico acontecimento, a Medalha Milagrosa, com sua inscrição — "Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós" — desempenhara papel relevante.

Em 1858, Nossa Senhora aparecia a Bernadette Soubirous declarando: "Eu sou a Imaculada Conceição". A Irmã Catarina Labouré ficou vivamente impressionada. Ninguém falou de Lourdes com tanto calor como ela. Pois compreendia que era o último elo de uma cadeia que tivera início na Rue du Bac, em 1830.

Última decepção

Entretanto, faltava ainda um pedido da Mãe de Deus a ser cumprido. Era desejo de Nossa Senhora que se fizesse uma imagem representando-A com a esfera nas mãos, os olhos voltados para o Céu, rezando pelo mundo, conforme apareceu na primeira parte da visão da Medalha Milagrosa. Santa Catarina Labouré caminhava para o desfecho de sua vida sem ter conseguido que o Pe. Aladel e os sucessivos confessores a tivessem atendido nesse ponto.

A Superiora da Santa era então a Irmã Dufès. Esta não escondia sua implicância com a Serva de Deus, a quem repreendia por faltas que não havia cometido.

Não obstante, foi esta religiosa que colheu diretamente dos lábios da Vidente um novo e último relato completo das Aparições. Guiada pela Voz interior que a dirigia, a Vidente expôs à sua Superiora atônita e confusa, o pedido de Nossa Senhora que faltava atender. A Superiora caiu de joelhos diante da Vidente, pediu-lhe perdão e se humilhou diante dela.

A primeira imagem da Virgem com o globo ficou pronta ainda em vida da Irmã Labouré, que a pôde ver e contemplar... sem esconder no rosto sua decepção: "Era bem mais bela do que isto" — comentou.

Não se sabe que expressão faria ela diante da imagem que afinal se colocou sobre o altar direito da Capela da Rue du Bac, no lugar exato em que Nossa Senhora revelou pela primeira vez a Medalha Milagrosa.

Graças reservadas... para quem pedir!

Santa Catarina Labouré entregou sua alma a Deus no dia 31 de dezembro de 1876: eram 46 anos de vida religiosa passados em total obscuridade.

Nossa Senhora, porém, incumbiu-Se de glorificar sua serva diante dos homens. No dia 11 de fevereiro de 1907, a causa de beatificação da Irmã Catarina foi introduzida. No dia 11 de dezembro do mesmo ano, São Pio X a declarou Venerável. No dia 21 de março de 1933, procedendo-se à exumação canônica, o corpo da Venerável foi encontrado incorrupto e flexível, como se tivesse acabado de morrer. Esse precioso corpo encontra-se atualmente sob o altar da grande Aparição do dia 27 de novembro. Beatificada no dia 28 de maio de 1933 por Pio XI, foi ela canonizada no dia 27 de julho de 1947 por Pio XII.

Do alto dos Céus, Santa Catarina Labouré olha para a Terra neste sesquicentenário da grande Aparição da Medalha Milagrosa, e certamente inquire o que é feito desse grande dom que, por seu intermédio, Nossa Senhora deu à Igreja.

Estarão de pé as promessas de Nossa Senhora feitas em 1830? A Medalha Milagrosa conserva ainda o seu poder?

Para os católicos que permanecem fiéis no meio da borrasca de nosso século, a resposta só pode ser: sim! Para eles estão reservadas as graças que os demais homens não quiserem receber. Essas graças estão reservadas também a ti, caro leitor.

Irmã Catarina Labouré viveu na obscuridade dos afazeres do convento. Ei-la costurando. Apenas seu confessor sabia que ela vira Nossa Senhora.

O corpo incorrupto de Santa Catarina Labouré permanece exposto à veneração pública no Santuário da Rue du Bac, em Paris, onde se deram as revelações sobre a Medalha Milagrosa.

BIBLIOGRAFIA

O relato das Aparições apresentado neste artigo corresponde fundamentalmente aos manuscritos da própria Vidente, completados em alguns pormenores por outras declarações da mesma Vidente citadas entre aspas pelos diversos autores.

Para este artigo foram compulsadas e amplamente utilizadas as seguintes obras:

• Pe. Henrique Machado, "A Medalha Milagrosa, sua história, simbolismo e lições", Tip. Fonseca, Porto, 1930.

• Colette Yver, "La vie secrète de Catherine Labouré", Editions Spes, Paris, 40e. mille, 1935.

• Edmond Crapez, "Le Message du Coeur de Marie à Sainte Catherine Labouré", Editions Spes, Paris, 1947.

• M.-Th. Louis-Lefèbvre, "Le silence de Catherine Labouré", Desclée De Brouwer, 2e. ed., 1955.


Escrevem os leitores

D. Neyda Esper Kallás, Passos (MG): "A Administração de CATOLICISMO imprimiu um artigo sobre o comunismo muito bom. Isto serve de um sinal de alerta contra o comunismo, que na realidade muita gente desconhece".

D. Helena Neves da Silva, Lavras (MG): "Leio com muito interesse o CATOLICISMO para saber sobre a Igreja, a Religião e o mundo. Considero a única leitura puramente verdadeira e instrutiva".

Sr. Antonio Gilberto Oliveira Cesar, Piracicaba (SP): "Só tenho que agradecer pela boa orientação dada por este mensário, devido ao bom nível com que as matérias publicadas são expostas e analisadas. E pediria que fosse atacado com mais ênfase o problema da imoralidade, tão difundida pelas revistas e cinemas, causando grande prejuízo à moral da sociedade".

Prof. Francisco de Figueiredo, Salvador (BA): "No último número de CATOLICISMO (n.° 357) na seção "Escrevem os Leitores"; a Sra. Zuleika da Veiga Oliveira critica o "elitismo" deste jornal. Acha ela que o mesmo deveria adotar uma temática "mais simples e acessível a leitores de menos cultura". Ela cai num erro muito comum na cultura moderna. Ora, a solução está, não em tornar vulgar o mensário mas em elevar, se possível, o nível cultural dos menos cultos.

Como o espaço desta seção é curto, reduzo-me a esta breve refutação que espero seja entendida como uma crítica construtiva. Para maiores esclarecimentos a leitora pode dispor de meu endereço se quiser: R. Castanheda, 63 (Nazaré) - 40000 - Salvador, BA".

E.G., São Paulo (SP): "Relendo CATOLICISMO n.° 348, de dezembro de 1979, observei um pequeno engano. No artigo "Um peregrino em Belém de Judá" lê-se: "... Raquel, esposa de Jacó, mãe de 12 filhos que deram origem às tribos de Israel. Mãe, portanto, de Judá..." O redator cometeu aí um equívoco, pois, de fato, Jacó casou-se quatro vezes. A primeira, com Lia, da qual teve Rubens, Simeão, Levi, Judá, Issacar, Zabulão e uma filha, Dina. Do segundo casamento, com Raquel, teve apenas dois filhos, José e Benjamim. De terceiras núpcias nasceram Dan e Neftali. Finalmente, do quarto matrimônio vieram à luz Gad e Aser, como se vê no Cap. 35 do Gênesis".

• N. R. — O leitor tem razão e agradecemos a precisão.


RECIFE E O ENCANTO DAS ÁGUAS

Quando os povos escrevem no pergaminho da História, são as grandes cidades de tradição secular que ornam, como iluminuras variadas, as iniciais maiúsculas de cada capítulo dos códigos imemoriais.

A paisagem natural as emoldura e marca com um selo primeiro e perene. Assim, em certos casos as montanhas conferem à cidade um ar hierático e solene. Outras vezes ela emerge cheia de garbo, dominando a imensidão da planície. Ou ainda refletindo-se serena e majestosamente nas águas de um rio ou de um lago.

O espírito humano poderia estabelecer mil correlações entre cidades célebres e a paisagem que as distingue: Jerusalém e os montes... Roma e as sete colinas... Paris e o Sena... Veneza e o mar... Mas estas são urbes que a presença augusta do sobrenatural ou a beleza excelsa imprimida pela civilização cristã tornaram paradigmas.

Voltemos então nosso olhar para exemplos mais próximos, embora menos ricos, como é natural que o sejam em um país jovem de apenas quatro séculos.

Não cogitemos, no entanto, das cidades marcadas pelo cosmopolitismo trazido pelo progresso dos últimos anos. Os arranha-céus de São Paulo praticamente não se diferenciam daqueles erguidos em Tóquio, Nova York, Sydney ou mesmo nas partes modernas de Paris ou Frankfurt.

Temos em vista o aspecto autêntico, orgânico e peculiar de nossas cidades. Assim, poderíamos considerar os charmes do Rio de Janeiro, no meio das maravilhas naturais que lhe servem de esplêndido cenário, o colorido esfuziante de Salvador, a serena grandeza do conjunto arquitetônico barroco de Ouro Preto... e tantos outros exemplos dos mais variados Estados brasileiros. Cada uma dessas cidades reflete um aspecto, um matiz específico da alma brasileira. Entre elas, Recife, rodeada de abundantes águas refletindo um céu aberto aos horizontes e aos ventos.

* * *

Recife já ornamenta um capítulo de nossa História. Foi ali junto a ela que se travaram as batalhas decisivas para a expulsão dos holandeses calvinistas. A apenas alguns quilômetros da cidade, a secular igreja erguida por Francisco Barreto de Meneses no alto dos montes Guararapes, evoca a milagrosa intervenção de Nossa Senhora das Vitórias, incutindo terror nos hereges invasores.

Na recordação dessa epopeia, Recife cresceu junto ao mar, deste se resguardando apenas pelos arrecifes que dão nome à cidade. O encontro de dois rios — o Capibaribe e o Beberibe — a divide em três partes. Seu movimento cresceu com a presença batava. Mas só em 1705 D. João V a elevaria à categoria de vila e em 1823 D. Pedro I a chamaria de cidade. Pouco depois, em 1827, o Conselho da Província de Pernambuco a escolhia para capital. Recife suplantava então, definitivamente, a bela e senhorial vizinha — Olinda. A essa primazia não é alheia a beleza natural de sua posição geográfica.

O escritor pernambucano Mário Sette (1886-1950) reuniu em "Arruar" (Liv.-Ed. Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1952) a "História Pitoresca do Recife Antigo". Com autorização gentilmente concedida pelo Sr. Wilton Sette, filho do Autor, reproduzimos aqui algumas descrições sobre a cidade que constam dessa evocativa obra.

* * *

Em 1816 o comerciante francês Tollenare descrevia a bordo uma cena ainda hoje familiar aos recifenses. O mar luminoso coberto de pequenos barcos ou jangadas, nas quais pescadores se aventuram mar adentro com uma audácia assombrosa.

Mais além o visitante pinta outro recanto da cidade:

"A ponte que conduz de Santo Antônio à Boa Vista serve de passeio durante as belas noites deste clima; é guarnecida de bancos; o panorama que dali se descortina é encantador: ao Norte vê-se a cidade e os pitorescos outeiros de Olinda; ao Sul o rio Capibaribe, o aterro dos Afogados e também o Oceano. Canoas [...] cruzam-se em todos os sentidos sobre as águas mansas do rio; no horizonte, as ligeiras jangadas, com suas velas triangulares, são o joguete das ondas agitadas".

Ponto ideal para agradáveis serões, dali se divisavam mastros de veleiros, evocativos de aventuras e terras longínquas.

* * *

As águas do rio Capibaribe deslizam rumo ao bairro de Madalena, em cujas margens flanqueadas por palmeiras imperiais, as casas apalaciadas abarrotavam seus empórios.

Do cais da Aurora na rua do Sol ao cais da Lingüeta, na velha entrada para Recife, as águas deslizam placidamente. Do antigo ancoradouro interno, avista-se o Forte do Picão, outrora chamado o Castelo do Mar. Ali o oceano próximo parece mais familiar, banhando os recifes que guarnecem a cidade com suas ilhas. E depois, as águas do mar se espraiam até o horizonte, que parece próximo. O céu, ao contrário, parece mais amplo e aberto que em outros lugares.

* * *

E a vida na cidade, como seria? Eis como um trecho de Mário Sette a retrata:

"O "mato" era a frescura no verão, as fruteiras pejadas, os chalés de azulejos, os solares de sótãos e terraços de pedra de lioz, os caramanchões perto dos muros para ver quem passa, as figuras de louça do Porto, a vida regalada da mesa farta, do leito macio e das palestras convidativas. Sem falar na dança, nos jogos de víspora ou gamão, nas músicas e nos cantos ao piano. As famílias dos comerciantes, afeitas à moradia nos sobrados, por cima das lojas, embora com o prazer dos mirantes e dos torreões, gostavam do verão nos arrabaldes. Os mirantes preponderam em muitos dos prédios dos antigos bairros do Recife: eram as sotéias, de excelente vista para o mar e para os campos. Ponto de reunião, à noite, para palestras e sonecas. Jardins de inverno... Noites estreladas ou de luar. As vizinhas mais íntimas subiam até lá. Chá com sequilhos e tortinhas, licor de jenipapo, garapas de maracujás... E a paisagem do alto. Tudo chão, tudo visível, tudo amplo. A planura interrompida de quando em quando pelo enxerimento potâmico. As pontes acolchetando os bairros. Massas verdejantes de cajueiros, de mangueiras, de coqueirais. Distantes colinas. Os próprios mangues alimentavam motivos de encanto nas subidas das marés em largos espelhos d'água. E mais praias, jangadas, velhos fortes, matas, debaixo de um céu sem fiapo de nuvem. Mirantes..."

Mesmo nos arrabaldes, quadros pitorescos:

"Caxangá não era nem o poético Apipucos, nem o aristocrático Jaboatão, nem o suntuoso Poço, nem a gentil Olinda, nem a europeia Passagem, nem a orgulhosa Ponte de Uchoa, mas é o humilde Caxangá onde as famílias parecem ser uma só família".

* * *

Nesse ambiente desenvolveram-se inteligências ágeis como os rápidos e elegantes veleiros; espíritos lógicos e firmes como os fortes e arrecifes, mas ao mesmo tempo versáteis e matizados como o movimento das ondas do mar ("maré me leva, maré me traz", dizia-se); plácidos como as águas do rio; altaneiros como as palmeiras imperiais.

"Cada qual é um literato,

cada qual é um escritor,

cada qual é um poeta,

cada qual é um orador",

asseguravam antigos versos pernambucanos. Nas conversas ao cair da tarde, saboreando, como era frequente, o delicioso e refrescante abacaxi da região, o recifense enriquecia seu espírito criativo e imaginoso. Desde o jangadeiro, em sua solitária contemplação do mar, até o prestigioso senhor de engenho, habituado ao rude exercício do mando como às amenidades dos salões, ninguém negaria o papel benéfico das águas marítimas ou fluviais que tornam suave o clima e arejam as mentes.

Barcaças e jangadas perto do Recife - quadro de Telles Junior.

Na Rua da Aurora ainda se veem edifícios aristocráticos de outrora, como os da atual Assembleia Estadual e do Ginásio Pernambucano.

Recife em princípios do século XIX (bico de pena da época).

Recife, visto da torre da Igreja do Espírito Santo — litogravura de 1855, feita em Paris, a partir de desenho de Frederick Hagedorn (coleção do Museu do Estado de Pernambuco).