P.02-03

Paixão de Cristo, Paixão da Igreja

MEU DEUS, meu Deus, por que Me abandonas-te?" (Mt. 27, 46) — bradou Nosso Senhor do alto da Cruz. Ele proferiu aquele brado lancinante devido ao extremo desamparo em que o próprio Deus parece haver deixado o Verbo Encarnado. A Alma do Redentor sofria a terrível aflição espiritual causada pela ausência das consolações divinas. Contudo, sua dor, no que tinha de mais pungente, era ocasionada pela consideração dos pecados que Ele tinha diante de Si. Pecados, sem dúvida, daquele povo que O abandonava. Mas também ofensas a Deus que se cometeriam em todos os séculos, pois o Verbo Encarnado teve conhecimento de tudo e sofreu isto em sua via dolorosa. Toda a História passou diante de seu olhar exausto e inundado de Sangue, num Corpo do qual a vida se ia retirando. Certamente, o Divino Salvador foi acabrunhado pela visão da imensa e universal conturbação dos dias que correm. E além de outros horrores, tal visão levou-O a proferir aquela angustiosa exclamação: "Deus meu, Deus meu, por que Me abandonaste?"

Realmente, a Santa Igreja e a ordem temporal encontram-se hoje em grande desolação. Olha-se para a Igreja; Ela está submetida a um misterioso "processo de autodemolição" e invadida pela "fumaça de satanás", conforme constatou Paulo VI (cfr. Alocuções de 7-12-68 e 29-6-72, respectivamente), cujas manifestações desconcertam e estarrecem os corações genuinamente católicos. Se analisamos o estado da sociedade temporal, a visão que se nos depara é confrangedora. Subjugadas muitas nações pelo comunismo, ameaçadas outras pela versão mais recente deste — o socialismo autogestionário minadas profundamente, de um modo geral, por uma impureza avassaladora! Terras que heróis católicos levaram no passado à vitória vacilam hoje sem dar sinais de uma vitalidade e reatividade proporcionadas ao perigo que as ameaça. Pelo contrário, não se importam com o perigo e desprezam quem procura libertá-las.

Aos católicos a quem a Providência concedeu presenciar o trágico panorama, o Redentor da humanidade convida a que abram os olhos e examinem a situação de frente, como Ele, no Horto das Oliveiras, mediu todos os horrores de sua Paixão.

* * *

Tal convite para o sofrimento — pois é disso que, em última análise, se trata — o Divino Mestre certamente fez àqueles que O seguiam. Algo semelhante pode ter-se passado, por exemplo, com Verônica, que enxugou o santo rosto no caminho do Calvário. Com São Pedro, a quem o Redentor olhou após sua tríplice negação.

É razoável supor que a Verônica Nosso Senhor Se tenha mostrado no horror de seus sofrimentos físicos e morais. Ela, então, lancinada por uma dor indizível, correu a seu encontro, enfrentando tudo, e enxugou-Lhe o sagrado rosto com uma toalha, onde a Face divina ficou estampada. Poderia ter sido uma confidência do Mestre, que se exprimiu assim a ela: "Não tens pena desta dor?" Talvez esse pensamento comunicado à santa mulher tenha lhe dado a coragem de ver de frente o sofrimento.

A cena com São Pedro é bem conhecida. Após ter negado o Divino Mestre por três vezes, o galo cantou e o Salvador apenas lançou um olhar ao Apóstolo que O renegara. Naquele olhar, que imensidade de dor moral Ele terá comunicado! Como São Pedro terá sentido e entendido melhor, nessa ocasião, inclusive as sacratíssimas dores físicas de Jesus! Era como uma confidência iluminadíssima que lhe dizia: "Vem e segue-Me". E ele chorou amargamente.

Seguiram-se depois a glória e o martírio. Mas São Pedro, na hora de morrer, ainda pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, porque não se julgou digno de ser martirizado como Aquele que ele negara. É ainda o mesmo olhar que o acompanhou até a morte. Foi a ação salvífica exercida por ele que levou São Pedro a se converter e transformar-se em outro homem. E como seria belo imaginá-lo a cerrar os olhos, após a última visão terrena, sentindo sobre si o olhar afetuoso do inesquecível. Mestre.

* * *

Ora, em face do sofrimento insondável da Igreja em sua triste condição atual, a nós, católicos, em graus, medidas e formas diversas, também Nosso Senhor pergunta afetuosamente: "A ti, a quem escolhi como filho, ouve em meu Coração o pulsar de uma imensa dor. Mede-a e participa dela. Para quem o fizer, Eu pagarei com todas as minhas suavidades, meus sorrisos, minhas bênçãos e minha recompensa. Meu filho, queres ouvir o meu Coração?"

Peçamos a Nossa Senhora que nos dê a determinação de olhar e medir por inteiro o panorama de desolação que nos cerca. Mas roguemos também a Ela a certeza sobrenatural de que a vitória virá e que toda a catástrofe atual não servirá senão para realçar sua glória. Dessa certeza nascem, na alma do varão que vê, se indigna e tem um pranto proporcionado a tal panorama, alegrias, amenidades, sorrisos, que já são o começo do triunfo do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria.

Visão grandiosa e trágica, de um lado, mas, de outro, já prenunciativo de primaveras de belezas inexcogitáveis. É tão normal que ao extremo da desolação e da justiça punitiva suceda depois a reconciliação bondosa, o banquete para o filho pródigo que volta à casa paterna, o arco-íris que aparece, o homem que sai de dentro da arca... Após participar das dores incomensuráveis da Paixão, os verdadeiros católicos são convidados a partilhar do júbilo da gloriosa Ressurreição de nosso Redentor.

SÃO PEDRO ARREPENDIDO — Excelente trabalho de Frei Agostinho da Piedade, em barro cozido (1640). A imagem é considerada como autorretrato do artista e pertence à igrejinha de Montesserrate, de Salvador, Bahia. Exprime com vigor o abatimento do Apóstolo após negar por três vezes o Divino Mestre.


Imagem tridimensional: nova comprovação da autenticidade do Santo Sudário

A autenticidade do sagrado lençol de linho que envolveu o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo após a descida da Cruz — designado universalmente por Santo Sudário — vem recebendo confirmações as mais espetaculares da técnica moderna.

Sucessivas pesquisas, realizadas desde o século passado, chegaram sempre a resultados comprobatórios da autenticidade do Santo Sudário. Já em, 1904, o francês Delage efetuou o cálculo, de 83 milhões de probabilidades contra uma, de haver o precioso tecido realmente envolto o Corpo de Jesus. O referido cálculo foi endossado, em 1978, por 40 especialistas da NASA. Estes, dispondo dos recursos mais avançados de nossos dias, elaboraram eletronicamente a imagem tridimensional do Sudário pela primeira vez, prova irrefutável de que, pelos relevos que a foto apresenta, o tecido envolveu um corpo. Se a imagem impressa no Sudário fosse uma pintura, os cálculos efetuados por computador não apresentariam o efeito da "corporeidade".

"Catolicismo" de março de 1978, no artigo intitulado "Incomparável tema de meditação para a Semana Santa", levou ao conhecimento de seus leitores um histórico do Santo Sudário e os resultados de várias importantes pesquisas até então realizadas. E em seu número de abril de 1980 divulgou as conclusões dos estudiosos da NASA.

* * *

No ano passado, fotos tridimensionais mais perfeitas que as da NASA foram obtidas pelo Prof. Giovanni Tamburelli, engenheiro e docente de telecomunicações da Universidade de Turim.

Tais fotos, bem como declarações do próprio pesquisador italiano, foram publicadas pela revista "Gente" de Milão, de outubro de 1981, em artigo de Maurizio Blondet. Transcrevemos a seguir as palavras do Prof. Tamburelli, explicando sumariamente o processo utilizado para a obtenção das fotos e os pontos capitais das descobertas efetuadas.

Testemunhos da Paixão

"Deixo de lado os detalhes técnicos. Bastará dizer que um finíssimo raio laser primeiramente "explorou" um slide do Sudário, assinalando um "valor de luminosidade" referente a cada ponto da imagem. O computador, depois dessa operação, elaborou tais valores. O resultado foi, mesmo para mim, inesperado e comovente.

"Comovente? Sim, precisamente. O efeito de relevo da imagem tridimensional não depende de efeitos fotográficos ou, por exemplo, das características do tecido do Sudário. A rugosidade, as sombras (que aí se veem) são, entretanto, sinais da Paixão: filetes de sangue, feridas, tumefações. Existem pelo menos uns 20 pormenores, jamais revelados antes, que confirmam ponto por ponto a narração evangélica.

"A elaboração eletrônica da face do Sudário faz aparecer em relevo os filetes e pontos de sangue coagulado. Mas revela também que o sangue estava presente, em alguma medida, em toda a face — em cada poro, por assim dizer. A explicação mais provável é que aquele rosto tenha verdadeiramente suado sangue.

"O Homem do Sudário teve o septo nasal fraturado, e a foto tridimensional mostra que o sangue verteu abundantemente do nariz, com um filete gotejando sobre os bigodes até formar um coágulo no lábio inferior. A face direita (à esquerda de quem olha) aparece, ademais, tumefata por um soco e, mais acima, por um golpe de bastão.

"A tradição oral diz que Cristo caiu várias vezes no trajeto do Gólgota. O Evangelho limita-se a dizer que, em dado momento, os soldados romanos obrigaram um passante a levar a Cruz, porque Jesus, evidentemente, não estava mais em condições de fazê-lo. A imagem tridimensional revela na face esquerda várias escoriações pequenas, que poderiam ser devidas ao impacto, nas quedas, contra as pedras do caminho".

"A descoberta mais impressionante que fiz com a foto tridimensional - acrescenta o pesquisador — talvez seja a seguinte: na maçã esquerda do rosto, ao lado do nariz, a foto revela uma incisão em linha reta e, logo abaixo, outra incisão curva. Poderia ser a marca de uma lança pontiaguda, em forma de pequena foice. O soldado que deu de beber a Cristo provavelmente O feriu.

"A parte esquerda da face apresenta um longo filete de sangue, que desce verticalmente pela fronte, a partir da ferida causada por um espinho até quase o queixo. É sinal de que o Homem do Sudário ficou, durante algum tempo, com a cabeça erguida. Mas depois, "inclinou a cabeça" (cfr. Jo. 19, 30): e o sangue escorreu para o lado, invadindo a parte direita do rosto. Uma grande gota, bastante visível, formou-se sob o bigode direito. A morte deve ter sobrevindo pouco depois; também a queda de sangue da narina direita deu-se de modo transversal, mas ostenta uma peculiar forma em ponta. O sangue não mais saia senão lentamente do corpo, no qual a circulação já havia praticamente cessado. Além disso, essa última gota está mais em posição "transversal" em relação à gota sanguínea que aparece debaixo do bigode. Provavelmente, no momento da morte, a face reclinou-se ainda mais.

"O Homem do Sudário continuou a sangrar (sinal de que ainda estava vivo), enquanto permaneceu em posição vertical. Mas depois da deposição, quando o corpo foi colocado em posição horizontal, já não sangrava mais. A foto tridimensional confirma que todos os filetes de sangue estão voltados para a parte anterior do rosto, e nenhum filete cai para os lados, como teria acontecido se o Homem ainda tivesse perdido sangue após a deposição".

Trinta anos

"Quantos anos contava o Homem do Sudário?" -- pergunta-se Tamburelli. — "Parece velho, muito mais velho do que os trinta anos aproximados que os Evangelhos atribuem a Jesus. Mas o rosto que o Sudário ostenta é o de um homem supliciado, que sofreu torturas, tribulações e sofrimentos inenarráveis. Para revelar os traços naturais, procedemos a uma espécie de "lavagem eletrônica" da imagem, atenuando ou cancelando as marcas do sangue e das feridas. Nosso procedimento — note-se — não fez, porém, desaparecer as rugas naturais da idade, as saliências debaixo dos olhos e assim por diante".

Foram ademais pintados de preto a barba, os cabelos e as sobrancelhas: "Tomamos essa pequena liberdade" — explica o Prof. Tamburelli. E conclui o docente da Universidade de Turim: "Apareceu então este rosto de um Homem de traços hebraicos (note-se o nariz levemente recurvo; não reto, como aparece nas fotos americanas), com a boca pequena, a fronte alta e lisa. Um rosto de uma beleza severa. Que idade lhe atribuir? Cerca de trinta anos".

A projeção tridimensional da sagrada efígie de Nosso Senhor gravada no Sudário de Turim permitiu ao engenheiro Giovanni Tamburelli obter esta imagem em relevo, através de processos eletrônicos (foto acima).

A Sagrada Face retocada por Tamburelli a partir da figura tridimensional (foto ao lado) deixa entrever a impressionante majestade do Homem-Deus.


Saint-Laurent-sur-Sèvre, cidade-relicário do Escravo de Maria

Caio V. Xavier da Silveira

nosso correspondente

PARIS — Era uma noite de janeiro, fria mas inusitadamente estrelada para o inverno francês. Para quem seguia como nós a estrada de Nantes a Poitiers, a certa altura do percurso, dois altos campanários atraíam a atenção. No fundo de um vale, graciosa em seu vulto noturno, Saint-Laurent-sur-Sèvre dá a impressão a quem entra nela de penetrar numa página de algum álbum de aldeias medievais. Nela morreu e foi sepultado o grande São Luís Maria Grignion de Montfort, cuja festa a Igreja comemora no dia 28 de abril.

Eram ainda dez horas da noite, mas nosso hoteleiro esperava-nos - dois amigos me acompanhavam - um pouco apreensivo, pois nesse horário em Saint-Laurent todos já estão se recolhendo.

Não era possível terminar a noite sem olhar, ainda que de fora, a Basílica dentro da qual está o corpo de São Luís. E à sua porta ficamos algum tempo. O frio era intenso. Não se ouvia nada, a não ser o borbulhante rumor das águas do Sèvre, que justamente ali passam pelos restos da pequena barragem de um velho moinho. E também, de quarto em quarto de hora, dois ou três relógios, postos não se podia distinguir bem onde, assinalavam o tempo com diferentes toques, cujo timbre vinha de outras épocas e parecia ser a expressão sonora daquela placidez.

No dia seguinte, se bem que não fosse tão cedo, algumas estrelas ainda visíveis iam aos poucos desaparecendo. Uma ponte rústica atravessa o Sèvre. Sobre ela se consegue um bom ângulo para observar a Basílica e o campanário em flecha do convento ao lado. A manhã era tão gélida que as águas do Sèvre, parecendo descer de regiões menos frias, agitadas ao passar pelo velho moinho, desprendiam uma névoa vaporosa que ia progressivamente assumindo as tonalidades do céu ao sol nascente. Na fímbria dessa massa nevoenta, cujos matizes iam se permutando, meio de neblina meio de pedra, configurava-se a Basílica: imensa, imponente, parecendo nascer do irreal e buscar as alturas.

Nas proximidades, toda a vegetação estava cuidadosamente ornada por um delicado rendilhado de cristais de gelo. Os ramos desfolhados das árvores, a pastagem e as mil variedades de plantas tinham como que sido transformados numa vegetação encantada, pela invisível mão de um supremo artista que trabalhando na noite soubera adorná-la com subtilíssimos cristais. Aos primeiros raios do sol, galho por galho, folha por folha, iluminavam-se em suas rendas cristalinas, cintilando mil arco-íris em miniatura. O todo compunha-se magnificamente com o céu, com a tênue luz que despontava e com a névoa de colorido cambiante do Sèvre, de modo a nos dar a impressão de habitarmos por momento uma região fantástica e irreal.

A evocação de um gigante espiritual

A vida e a obra de São Luís Maria Grignion de Montfort não dão uma impressão de grandeza fabulosa menor do que esse nascer do sol às margens do rio onde ele expirou. E estar junto de seu túmulo confirma tal ideia. A esquerda de quem entra na Basílica, sob um dossel de mármore sustentado por colunas, ele é visto sempre imerso em recolhida penumbra. Ao lado, junto à parede, inscrita na lápide colocada em seu primeiro túmulo, no dia seguinte ao de sua morte, lê-se: "Digníssimo Padre, morto em odor de santidade". Parece que um Anjo está sentado junto a seu sepulcro e fala ao visitante quando ele aceita deixar-se penetrar pela atmosfera ali existente, suscitando no peregrino recordações do que ouviu ou leu a respeito do santo. Recordações reveladoras de um fato: em determinado momento da vida da Igreja, a Providência concedeu a um homem a graça de conhecer e aprofundar, mediante o esforço do espírito — como talvez ninguém o fizera até aquela época — os mistérios da Mãe de Deus.

Assumido pelo fogo amoroso que tal conhecimento lhe trouxe, São Luís Grignion efetuou a doação suprema de si mesmo como escravo de Maria, tornando-se o incansável apóstolo itinerante da verdadeira devoção à Virgem Santíssima. A mencionada doação de tal modo dilatou sua alma que, examinando-a sob qualquer ângulo, ela ostenta proporções grandiosas.

Missionário, teólogo, místico, escritor, poeta, fundador de Congregação religiosa, ele foi sobretudo uma alma imensamente combativa. Seu grande desejo de jovem Sacerdote era evangelizar os índios iroqueses do Canadá. Em Roma recebeu de Clemente XI a ordem de não partir para a América e permanecer na França como missionário na região oeste do país.

A luta contra o jansenismo

Naquela época, a heresia jansenista grassava na Vendéia, causando imenso dano aos fiéis. Foi a estes que o célebre missionário pregou a verdadeira devoção a Nossa Senhora, conclamando-os a se consagrarem a Ela como escravos.

A fúria jansenista desencadeou-se terrivelmente contra o grande teólogo mariano. São Luís sofreu contínuas perseguições, sobretudo por parte dos Bispos, infectados em sua grande maioria pelo espírito de Jansênio. Proibiam-no de pregar em suas dioceses, impeliam a polícia real a sustar e mesmo destruir suas obras. Entretanto, pelo pequeno povo de Deus São Luís Grignion foi sempre estimado; e quando morreu em 1716, era já conhecido como santo. Contava apenas quarenta e três anos de idade.

Além da Basílica, há várias outras recordações deixadas pelo santo na cidade. O Convento da Sabedoria encerra hoje a antiga hospedaria do Chêne Vert, onde ele morreu. Sua imagem de moribundo está colocada num escrínio no quarto em que expirou. O escrínio tem a forma de uma arca, com a seguinte inscrição em sua base: "In arca Dei Maria navigavit in vita". Inúmeros objetos de seu uso encontram-se no museu do convento. Merece destaque a mesa na qual escreveu o "Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem", sua principal obra.

A Vendéia militar

Visitando seu túmulo — o qual poderia ser considerado como o coração da Vendéia —, é preciso, em seguida, sentir o que foi o pulsar da vida montfortiana nos lugares onde se travaram as batalhas dos católicos perseguidos contra os sequazes da Revolução Francesa. Aqueles fiéis que, ao fazerem a lápide para seu sepultamento, gravaram na pedra a declaração de que morria um santo, transmitiram através de gerações, a chama recebida do autor da "Oração Abrasada". E quase cem anos depois, foram seus descendentes que heroicamente se opuseram à Revolução Francesa quando ela se insurgiu contra o Poder Espiritual e o Poder Temporal. As redondezas de Saint-Laurent-sur-Sèvre são marcadas por lugares onde a fidelidade de simples camponeses levou-os a praticar atos de bravura dos mais belos da História: Chemillé, Chanzeaux, Cholet, os rios Layon e Hyrôme...

A região mudou pouco em relação aos dias dessa epopeia. As cidades continuam aproximadamente do mesmo porte, conservam igualmente as ruas, as igrejas quase sem exceção permanecem nos locais onde foram edificadas, se bem que tenham sido refeitas após as selvagens destruições dos revolucionários. As modernas estradas seguem, em larga medida, o traçado das que existiam na época anterior à Revolução Francesa. Em suas encruzilhadas, incontáveis são os oratórios dedicados a Nossa Senhora ou a seu Divino Filho, tal como naqueles tempos de fé. Até mesmo inúmeras cercas vivas — a região mantém o hábito de separar as propriedades e os campos com arbustos plantados em fila formando linhas divisórias - são as que existiam então.

A cidade de Chanzeaux, dentre aquelas das proximidades de Saint-Laurent, é certamente uma das que despertam maior admiração. O terrível cerco do campanário de sua igreja destruída assinalou um dos episódios mais gloriosos da guerra da Vendéia. Dezenove homens e dez mulheres com algumas crianças transformaram aquele campanário num valoroso fortim de guerra. Resistiram por três vezes ao assalto de uma coluna incendiária, dizimando os revolucionários. Por fim, estes conseguiram pôr fogo até no teto do campanário. Os últimos sobreviventes foram capturados. O combate deixou treze mortos no interior desse bastião improvisado; quatro deles eram mulheres.

Falamos com o atual Pároco. Contou-nos histórias daqueles valorosos paroquianos de então. Levou-nos até o campanário, cujo teto está reconstruído, mas cujas pedras conservam ainda numerosos sinais da violência da batalha. Ao tocá-las, tivemos bem presente que elas testemunharam tanta bravura, aflição, sendo, por fim, cobertas de sangue e de imensa glória.

“O intrépido”

Jallais e Chemillé ainda estão imersas nesses ares épicos. Foram conquistadas aos revolucionários por Cathelineau, que, indignado em virtude das perseguições à Religião, juntamente com vinte homens, proclamara a guerra santa. Deixou esposa e seis filhos, e partiu para levantar a região de Mauges.

Ali está Cholet onde, após a batalha de outubro de 1793, o Marquês de Bonchamps, tendo alcançado vitórias impressionantes, foi mortalmente ferido. E, ao expirar, exclamou: "Servi meu Deus, meu Rei e minha Pátria".

Dos heróis da cruzada vendeana — Forest, Stofflet, o Marquês de Lescure, d'Elbée e outros muitos — cujos nomes são evocados por aqueles lugares, um particularmente atrai a admiração: Henri de La Rochejaquelein.

Um numeroso grupo de camponeses decididos a pegar em armas como os da região de Mauges dirigiu-se a La Rochejaquelein, solicitando sua chefia. Como soldado, ele já se distinguira enquanto oficial da guarda do Rei Luís XVI. Recebeu o pedido em seu castelo de la Durbellière. Não hesitou em atendê-lo. Caminhou lentamente rumo à entrada do castelo, onde o esperavam. E, ao montar, deixando de lado as numerosas reflexões que provavelmente desfilavam por sua mente naquele instante, seu olhar iluminou-se. E exclamou, voltando-se para os recém-constituídos comandados: "Se eu avançar, sigam-me; se recuar, matem-me; se morrer, vinguem-me!" E partiu.

No decorrer das primeiras batalhas, foi cognominado o "Intrépido". Proclamaram-no generalíssimo da Vendéia quando contava apenas 20 anos. Ferido na fronte, morreu em 1794 entre Nouaillé e Cholet. Expirou recostado em uma daquelas cercas vivas da região.

O exato local onde tombou apresenta hoje uma aprazível pastagem como tantas outras. Ao lado, reside uma família que se ocupa de seus animais e da agricultura. No en-

continua na pág. 6

Vista aérea de Saint-Laurent-sur-Sèvre, destacando-se a Basílica e a capela das Filhas da Sabedoria.

Basílica de São Luís Maria Grignion de Montfort, em Saint-Laurent-sur-Sèvre.

Igreja de Chanzeau, com o campanário histórico (ao fundo, à direita), onde 19 homens e 10 mulheres opuseram heroica resistência ao cerco dos revolucionários de 1789. Treze vendeanos, inclusive o Pároco, Pe. Blanvillain, ali foram martirizados no dia 9 de abril de 1795. O vitral lembra esse belo episódio da contrarrevolução vendeana.

Túmulo de São Luís Maria Grignion de Montfort na Basílica.