P.06-07

O Brasil no turbilhão internacional

Péricles Capanema

A polarização da política internacional vem trazendo mutações que atingem de modo pleno o Brasil e, quem sabe, com o tempo, a vida particular de cada um dos brasileiros. Estão trincadas as possibilidades de conseguir linearmente a détente das épocas de Nixon e Carter; sobraram restos dela. A vitória de Ronald Reagan foi o triunfo do eleitorado desejoso de energia e rearmamento. Mitterrand na França significa o missionarismo autogestionário, ansioso de estender a influência de suas ideias ao Ocidente inteiro, o que provoca fricções e desagrados. Equivale ao "cavalo de Tróia" na cidadela do Mundo Livre. O clima da détente pressupunha otimismo da parte da opinião pública norte-americana; e da parte dos russos, gradualismo na obtenção de seus fins.

A situação na América Central põe de lado na região a política do avanço cauteloso russo, rompe com a máxima de ação do finório socialista francês Mitterrand, que dizia: "Tenho medo de provocar o medo" (apud Georges Sorel, "Reflexions sur la violence", Marcel Rivière Ed., Paris, 1930, p. 141). A Rússia na América Central está criando o medo. Talvez premida pela necessidade de avançar mais rapidamente do que permite a capacidade de acomodação do desatento público ocidental, decidiu correr os riscos de ocasionar, em algum grau, uma levée de boucliers anticomunista. E conflagrar a América Central, onde estabeleceu sólida cabeça-de-ponte na Nicarágua e promove guerrilha em quase todos os seus países.

Essa região, sob o aspecto territorial e o de população, não tem grande peso. Entretanto, por força da decisão política da administração Reagan de opor-se ali ao avanço comunista, transformou-se ela mutatis mutandis no que foram os Bálcãs por ocasião da I Guerra Mundial. Como se recorda, naquela península chocaram-se os interesses dos poderosos impérios dos Habsburgs e dos Romanovs, arrastando logo após, pela fatídica força dos tratados, a Europa inteira. Seria a América Central os Bálcãs da III Guerra Mundial?

A América do Sul no choque das superpotências

Comenta-se com acerto que as rotas marítimas que passam pelo Caribe são vitais para a segurança norte-americana. Delas os Estados Unidos não podem prescindir, sob pena de entregarem sua vida econômica e militar ao arbítrio do adversário. Assim, para esta nação, a batalha pela América Central envolve, em alguma medida, a luta pela própria sobrevivência. Ela não pode permitir um poder inimigo dominando o Caribe e a América Central, a menos que se conforme em perder a liberdade de acesso ao petróleo e materiais estratégicos necessários à sua existência como nação de fato independente. Raciocinam círculos dirigentes em Washington que a fachada social-democrata de figuras diretivas da guerrilha salvadorenha encobre, mais uma vez, os reais mandantes, os soviéticos. Foi assim em Cuba e Nicarágua, onde a máscara só caiu depois de consolidados os marxistas no poder. Manter El Salvador e impedir o alastramento das guerrilhas, nessa ótica, transforma-se em imperativo da segurança nacional.

Tal raciocínio, correto, parece-me abranger apenas parte da realidade. Há também a imensa América do Sul, único continente que, ao lado da Austrália, tomado em bloco se mantém fiel à aliança ocidental. A Europa vacila: socialistas no poder na França e na Grécia, pacifismo na Alemanha, forte PC na Itália e ameaça da ascensão de um PS antiNATO na Espanha.

Ora, o tumulto na América Central tende a obscurecer a premência de estreitar laços de todas as ordens entre as nações da emergente América do Sul e os Estados Unidos. O abandono desta visualização equivaleria a apressar o já acelerado deslizar desta parte do globo rumo a posições terceiro-mundistas — sob a égide pressurosa da França de Mitterrand, à disposição para o papel.

Naturalmente, a fórmula que tenderia a unir o bloco terceiro-mundista deveria passar pela difusão, em escala mundial, do modelo autogestionário que o socialista gaulês Pierre Rosanvallon chama de "destruição da propriedade como instituição social" ("L'âge de l'autogestion", Ed. du Seuil, Paris, 1976, p. 112). Ainda no mesmo livro afirma: "No século XVIII o conceito de democracia canalizou e exprimiu as esperanças revolucionárias. No século XIX foi a vez do socialismo. Nossa tese é que a autogestão está destinada a representar hoje o papel que foi anteriormente da democracia e do socialismo" (op. cit. pp. 14-15).

O Brasil na América do Sul

A rota marítima que passa pelo Atlântico Sul fica na dependência de quem controla as costas da África ou do Brasil. Em caso de conflito, as ex-colônias portuguesas de Angola e Moçambique, dirigidas por governantes marxistas, podem criar embaraços sérios aos navios carregados de petróleo e materiais estratégicos em demanda dos Estados Unidos e da Europa. O distanciamento do Brasil em relação aos Estados Unidos implica, nas consequências extremas do processo, a perda do Atlântico Sul como mar amigo do Ocidente. Transformar-se-ia em região hostil.

Naturalmente contribuem dentro de nossa Pátria para essa asfixia gradual da nação norte-americana as correntes esquerdistas de vários matizes, determinadas a calar prudentemente os objetivos últimos de seus esforços, mas cujos manejos tendem sempre a estabelecer um fosso entre nós e aquele país. Não raras vezes, caminham em tal rumo também perplexitantes orientações do Itamaraty, que coloca sua reconhecida capacidade diplomática na direção de políticas que destoam da sensata linha anterior da Casa de Rio Branco.

Dentro desse quadro, importância de primeira plana possuem as correntes influenciadas pela orientação da CNBB, propagandistas, para o Brasil, de transformações de cunho radical, e externamente complacentes com os avanços do totalitarismo soviético, como no clamoroso caso da Nicarágua. Em 2 de março p.p., a imprensa noticiou que o próprio ministro do Exterior da ditadura sandinista, Pe. Miguel d'Escoto, admitiu que a ideologia de seu país contém "elementos de marxismo" e que o exército nicaraguense está sendo treinado pelos cubanos.

As esperanças que o comunismo nutre em relação a tal situação foram expressas claramente pelo ex-secretário-geral do PS chileno, Carlos Altamirano, cujo partido, de doutrina marxista-leninista, constituía o núcleo principal da malograda Unidad Popular. Allende, como se sabe, pertencia ao PS. Afirma Altamirano: "Seja qual for o grau de influência que as correntes progressistas e revolucionárias tenham dentro da Igreja latino-americana, o fato é que o fenômeno tem relevância dentro e fora dos setores eclesiásticos. Na América Latina, a Igreja mantém sua ascendência sobre as massas, mais do que em qualquer outra parte do mundo. Com antecipação e lucidez, Che Guevara já compreendera o significado dos cristãos do nosso continente e o papel que deveriam assumir na luta de libertação: ‘Quando os cristãos se atreverem a dar um testemunho revolucionário, então a revolução latino-americana será invencível’. Com igual sensibilidade, Salvador Allende diria a Regis Debray: 'Existe um gérmen revolucionário nas massas católicas, que é uma coisa difícil de captar. Mas precisamos organizar isso. Temos de unificar essa coisa'. Disso tudo conclui-se como é importante para o movimento revolucionário continental que não apenas o baixo clero, mas também os dignitários esclarecidos da hierarquia eclesiástica, assumam um papel combativo na batalha social. Já existem muitas figuras que têm construído uma Igreja diferente, identificada com a rebeldia dos pobres e com a construção de uma sociedade basicamente socialista. [...] O movimento popular deve dar o justo valor ao papel extraordinariamente positivo que a Igreja chilena tem desempenhado, como evidência das mudanças que estão ocorrendo dentro dela" (Carlos Altamirano, "Dialética de uma derrota, Chile 1970-1973", Ed. Brasiliense, 1979, pp. 250-251).

No caso do Brasil, pode-se deduzir da opinião acima defendida por Carlos Altamirano que, sem um extenso combate doutrinário, ordeiro e conduzido com discernimento, dentro da opinião pública católica, o resvalar de grandes blocos rumo à esquerda tornará a desejada revolução de "Che" Guevara, segundo sua própria expressão, "inevitável". Pois só a inteligente apresentação de razões sólidas pode obstar os efeitos da poderosa propaganda esquerdista de ponderável setor eclesiástico.

Em virtude de seu território e população, o gigante sul-americano é o Brasil. Cabe-lhe nessas circunstâncias posição de primeira importância na determinação da apocalíptica luta que envolve os destinos do mundo. Pois se os Estados Unidos perderem a aliança da América do Sul, restar-lhe-ão aliados insuficientes — muitos deles duvidosos — para fazer frente à ameaça do imperialismo russo. Sob essa luz, compreende-se melhor o valor estratégico da disputa interna a propósito da orientação pró-ocidental do País ou seu deslizamento rumo à enganosa posição terceiromundista, antessala da satelitização em torno dos interesses soviéticos.

Guerrilheiro marxista em El Salvador. No exterior, grande apoio publicitário para as investidas de Moscou rumo à conquista da América Central.

Prócer socialista chileno Carlos Altamirano.

Nota da Redação: Este artigo foi escrito antes da crise a propósito das Malvinas, a qual põe ainda em maior evidência o papel-chave de nosso País na atual conjuntura mundial.


Conclusão da pág. 3

Saint-Laurent-sur-...

tanto, ali — bem como esparso por toda a região da Vendéia militar — tem-se a impressão de que o olhar de Deus não cessou de passear pelos campos, comprazido com a epopeia realizada em seu Nome, saudoso da época em que possuía bravos em suas fileiras.

Seu primeiro túmulo está situado ali perto. Visitei-o numa fria tarde de neblina. Entre árvores desfolhadas, um pedestal e uma cruz de pedra recordam a tristeza do desaparecimento do herói vendeano.

As ruínas de seu castelo são imensamente expressivas. Evidentemente, foi incendiado cinco vezes e destruído pelos revolucionários como represália contra o jovem comandante que lhe impôs pesadas derrotas. Nos resquícios do castelo distinguem-se ainda a capela, a torre de vigia, o pórtico e outras dependências. Seu antigo fosso contém água. Quem atravessa a ponte de acesso à frente do castelo, depara-se com o portal nobre, encimado pelo brasão da família. Certamente por ali passara La Rochejaquelein, no dia em que, abandonando sua vida privada, seguiu fielmente a missão que a Providência lhe oferecia pelas mãos dos camponeses, os quais conclamaram-no a assumir o comando da luta.

Se se pudesse qualificá-las de ruínas intactas, assim eu as chamaria. Basta olhá-las para sentir a cada instante a imaginação arrastada a recompor os dias, os homens e a chama combativa que animou aqueles bravos guerreiros. Elas não nos aparecem principalmente como destroços ali deixados para os homens constatarem o que acontece aos que ousam se opor à marcha da Revolução. Como, por exemplo, o sangue das vítimas que a Revolução Francesa guilhotinou, para amedrontar as populações do tempo. A impressão é de que, destroçado, o castelo sobrevive naquilo que simbolicamente ele significou, na espera de que um sopro ressuscite o épico espírito de outrora.

Frutos da pregação do arauto mariano

São Luís Grignion terá previsto tudo isso? Em suas luzes proféticas foi-lhe também dado ver a propagação do fogo de sua palavra por distantes tempos futuros? Foi pensando nele que deixei o castelo de la Durbellière e voltei mais uma vez a Saint-Laurent-sur-Sèvre, desta feita rapidamente, pois já era quase noite. Pude olhá-la e admirá-la mais uma vez. Uma bruma descia sobre seus campanários. O sol tinha desfeito a natureza de cristal do amanhecer. O Sèvre, para além do velho moinho, seguia suave e lentamente seu curso. Mais adiante, a Basílica. No seu interior, repousa na doce paz de Maria, à espera da ressurreição, aquele formador de almas marianas, heroicas e contra-revolucionárias.

A esquerda: ruínas do castelo de La Rochajaquelein, herói da guerra da Vendéia contra a Revolução Francesa.

A direita: primeiro túmulo do destemido comandante vendeano La Rochejaquelein.


Convite ao sublime

Conta-se que, na Antiguidade, um filósofo grego saiu certa vez pelas ruas de Atenas em plena luz do dia portando uma lanterna. Perambulando desse modo pelas vias e praças, provocou o desconcerto da população. Inquirido sobre as razões de tão singular procedimento, redarguiu ele que "procurava um homem".

Resposta sem dúvida bizarra. Caso fosse tal filósofo, entretanto, uma pessoa reta — este concretamente não o foi — poder-se-ia tentar atribuir a seu gesto um sábio significado simbólico. Com alguma boa vontade, talvez imaginássemos que ele procurava, no meio da corrupção e decadência tão frequentes no paganismo, um homem de fato íntegro. Poderíamos ir mais longe, e figurar nossa personagem como tendo excogitado, pela razão natural, uma ideia completa do que a natureza humana bem desenvolvida deveria engendrar. E retratá-lo amargurado, por encontrar apenas desmentidos da referida noção nos homens que, em concreto, ele conhecesse, e dizendo consigo mesmo: "Deve existir alguém sobre a Terra que tenha alcançado o auge da perfeição possível num ente humano; caso contrário, o homem seria um ser desordenado no seio da Criação".

Veio-nos ao espírito a extravagante cena dessa "busca de um homem"... quando deparamos com o ambiente evocado pelas duas fotos reproduzidas nesta página. Trata-se do andar térreo (foto abaixo) e da parte superior da famosa Sainte Chapelle, construída no século XIII por ordem de São Luís IX, Rei da França.

* * *

A alma inocente, máxime quando é batizada, tende por assim dizer instintivamente para as coisas belas. A civilização cristã tem produzido nessa linha grande número de obras e instituições magníficas. É evidente, porém, que o belo foi sendo gradualmente banido da face da Terra. E quem hoje percorresse as vastidões do globo à procura do belo, correria sério risco de fazer papel semelhante ao do "caçador do homem" da Grécia antiga.

Entretanto, como é nobre o homem inocente que revolve as ruínas da desolação à busca do belo! Se pudéssemos idealizar uma pessoa nessas condições, que admiração não surgiria em sua mente se ela fosse de repente transportada para dentro da Sainte Chapelle, em meio a este jorro de luz, de ordem, de harmonia, de seriedade, de sacralidade, que ela representa? E que exclamações não aflorariam em seus lábios? Talvez assim se exprimisse:

"Ó aspirações, ó desejos, ó esboços de criação, que correspondem a uma parte do que há de mais delicado em minha alma! Eu esperava encontrar-vos e, sem ter perdido esta esperança, a bem dizer, já não esperava mais. À força de desilusões, pensava que só vos poderia contemplar no Céu... Mas eis-vos aqui realizados! Que prazer em ver-vos como eu vos imaginava; mas que alegria, de outro lado, por verificar que concretizais de modo mais intenso aquilo que, nas brumas indecisas do meu anelo, eu vos afigurava. Tinha-vos desejado, não vos tinha planejado; agora encontro-vos aqui realizados".

Em cada pormenor, o nosso peregrino notaria um velho conhecido muito sonhado, jamais delineado com precisão, mas amado profundamente. Acostumado aos revezes, às desilusões, ele talvez procurasse certificar-se de que não se está deixando levar por impressões superficiais. —"Algo aqui não conduz a realização de meus anseios até a sua plenitude? Algo dá a entender, pelo menor desmentido, que o gênio que concebeu a Sainte Chapelle não teve integralmente as noções de harmonia e beleza que sempre desejei ver justapostas?" — Seu olhar analisa, porém, com confiança e sem aflição, porque quem pôde conceber e construir aquilo não poderia deixar de estar certo em tudo.

E seu espírito sente então o afago e o aconchego com que tal ambiente o envolve. — "Deixai-me descansar, curar as minhas feridas e recompor-me de todos os padecimentos que suportei, olhando para vós. Sede para mim como a serpente de bronze que Moisés apresentou aos judeus, sarando aqueles que a fixassem (cfr. Num. 21, 8-9)". Nessa atmosfera de feeria, o peregrino tem a sensação de ser pessoa sã que fugiu de um leprosário. O contraste com o sublime aguça a noção de quanto a Revolução gnóstica e igualitária é vil.

* * *

Em 18 de agosto de 1239, majestoso cortejo percorria as ruas da Paris medieval. Nele, um personagem, por sua elevada estatura e maneiras nobres, sobressaía muito em relação aos demais circunstantes. Sua cabeça estava descoberta, os pés descalços, e levava nas mãos com suma reverência algo parecido com um escrínio. Procedente de Constantinopla, a Coroa de Espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo era conduzida por São Luís IX, Rei da França, para a Catedral de Notre-Dame. Querendo honrar a sagrada relíquia de modo condigno, mandou o monarca erigir, agregada a seu palácio (cujos remanescentes estão hoje incorporados ao Palácio de Justiça), uma capela-relicário, construída de 1242 a 1248. Ela é composta de duas partes: uma inferior, reservada ao pessoal doméstico do palácio real; outra superior, destinada ao Rei e à sua corte. É a Sainte Chapelle, indiscutivelmente o mais belo monumento da arte gótica.

Podemos ali imaginar São Luís subindo a escada helicoidal existente do lado do Evangelho, para venerar os Espinhos da Paixão. Parar defronte à relíquia, rezar, meditar, relembrar os sofrimentos indizíveis do Divino Mestre, as passagens mais difíceis e gloriosas da Cruzada que o próprio santo empreendeu...

A Coroa de Espinhos, entretanto, não mais se encontra nessa capela: foi transladada para o Tesouro da Catedral de Notre-Dame de Paris.

* * *

As limitações do branco e preto não nos permitem, infelizmente, reproduzir adequadamente toda a riqueza e o deslumbramento dos vitrais e da ornamentação da Sainte Chapelle. Se nos fosse possível, apresentaríamos as ilustrações em cores ou, melhor ainda, convidaríamos o leitor a visitá-la pessoalmente... Ao menos, a exuberante beleza do pequeno templo e a rara felicidade na escolha dos ângulos fazem com que estas fotografias ainda nos possibilitem tecer algumas observações.

Logo de imediato, desponta o contraste harmônico mas profundo entre os dois ambientes. A capela inferior, se não fosse o andar térreo da outra, mereceria tornar-se célebre. Enquanto o andar superior é uma linda coleção de vitrais, a capela baixa ostenta mais arquitetura. Poderíamos dizer que em cima deparamos com o triunfo do decorador, e na parte inferior, o êxito do arquiteto. Embora ali também o riquíssimo colorido das pinturas deponha eloquentemente em favor do seu decorador.

A oposição dentro do harmônico é tão saliente que se é levado a conjecturar um diálogo entre os Anjos custódios de uma e outra capela.

A parte alta exprime um triunfo que não se manifesta através de cores ofuscantes. É uma vitória subtil e diáfana, de cores que de tal maneira se transcendem umas às outras rumo a perfeições cada vez maiores, que implicitamente afirmam a concepção de um mundo do qual todos os adversários dessas perfeições foram varridos.

Se o andar superior glorifica uma conquista feita, o inferior glorifica a ascensão, a luta de quem se esforça por triunfar. Ora, há mais nobreza na ascensão, com todos os seus riscos, suas incertezas, do que no já realizado; uma festa da vitória nunca tem a mesma grandeza da batalha.

O andar superior da Sainte Chapelle pertence mais ao mundo dos sonhos — dir-se-ia mesmo que é uma expressão do Reino dos Céus —, enquanto o térreo fala mais da vida terrena.

Não obstante, há algo em baixo, por onde transluz mais ali a seriedade, sem que haja nisso o menor desdouro ou censura à parte superior. E é até compreensível que uma pessoa, se acaso ficasse deliciosamente prisioneira na Sainte Chapelle, acabasse por freqüentar mais amiúde o térreo.

Mas o andar superior, na linha da delicadeza e do puramente espiritual é incomparável. Não existe algo assim nem na lindíssima Catedral de Notre-Dame de Paris. É uma profusão de cores e uma variedade de desenhos sem igual — note-se que não há dois vitrais idênticos. O vitral é, aliás, a obra-prima da genialidade medieval. Os homens daquela época produziram tantas coisas admiráveis: arquitetura, iluminuras etc. Nada disso supera o vitral, que é como cor em estado puro.

E assim por diante, poderíamos ir compondo essa amigável porfia.

* * *

A que propósito vêm tais considerações?

Deus estabeleceu misteriosas e admiráveis relações entre certas formas, cores, sons, perfumes, sabores e certos estados de alma. É claro que por estes meios se pode influenciar possantemente o homem, quer para o bem quer para o mal.

A Sainte Chapelle, como tantas obras de arte inspiradas pela Igreja Católica, cria uma atmosfera difusa, difícil de ser definida por palavras, mas muito real, que convida as almas ao sublime, torna fácil a aceitação das verdades de fé, e robustece e dá alento às inclinações para a virtude. Na contemplação enlevada e entusiasmada de obras desse gênero, o católico de nossos dias pode se defender — como o hipotético "peregrino do belo" — das mil agressões da hediondez contemporânea, refazer-se de seus golpes, experimentar algo que lhe aumente a esperança dos esplendores do Paraíso Celeste. E também, na alma varonil, a indignação abrasada contra aquilo que contunde essas maravilhas.

Aí pode o verdadeiro católico passear seu espírito pelos vitrais, fixando-se em algum reflexo, ou num pedaço de cor, ou neste pormenor. Deter-se, por exemplo, diante de um azul especialmente belo e imaginar como seria o perfil moral do homem que tivesse a alma "azulada", isto é, que tivesse em grau eminente aquela virtude moral que se prende, pelo nexo misterioso a que nos referimos acima, à cor azul. Poderia ir além e se perguntar: "Como seria o universo onde o mencionado azul desse a nota tônica?" — Poderia também se encantar com o conjunto multicolor e correlacioná-lo, por exemplo, com a vida de tal personagem histórico, de tal santo. E, dentro dessa perspectiva, discernir certa analogia entre os vitrais e os espíritos humanos bem construídos, em cujos modos de ser e atitudes faíscam ora determinado matiz de certa cor, ora outro tom, cintilando como um glorioso vitral no momento em que o sol o incendeia.

Como se poderia ir longe nessas cogitações! São as riquezas da Igreja de que hoje não se falam. Possamos também nós, como o nosso "caçador do belo", ao cabo dessas linhas sentir um pouco o aconchego da Sainte Chapelle que, no fundo, é participação da suavidade da Santa Igreja, do sorriso materno de Nossa Senhora, da bênção paterna e majestosa do Divino Redentor.

Sainte Chapelle: capela superior.

Sainte Chapelle: capela inferior.