Wilson Gabriel da Silva
enviado especial
SANTA CRUZ (Bolívia) — Em um de seus famosos sonhos sobre o futuro da América do Sul e da Congregação Salesiana, da qual foi o fundador, São João Bosco percorre nosso Continente de ponta a ponta, desde Cartagena, ao norte da Colômbia, até Punta Arenas, no extremo sul do Chile, passando pela floresta amazônica, por terras brasileiras, uruguaias e argentinas.
"Eu via as entranhas dos montes e as profundidades das planícies", conta D. Bosco. "Tinha sob o olhar as riquezas incomparáveis desses países, que um dia serão descobertas. Via numerosas minas de metais preciosos, fontes inesgotáveis de carvão fóssil, depósitos de petróleo tão abundantes como até agora não se encontrou em parte alguma. Entre os graus 15 e 20 havia uma enseada larguíssima e longuíssima, que partia de um ponto onde formava um lago. Então uma voz disse repetidas vezes: "Quando chegarem a escavar as minas escondidas entre estes montes, aparecerá a terra que mana leite e mel. Será uma riqueza inconcebível" (cf. "Biografia y Escritos de San Juan Bosco", B.A.C., Madrid, 1955, pp. 375 e ss.).
As riquezas naturais são dom de Deus. No contexto do sonho de São João Bosco, elas parecem significar uma abundância material que acompanha uma abundância de graças espirituais, numa época futura de plena fidelidade da América do Sul aos Mandamentos da Lei de Deus. Época que, obviamente, não corresponde aos dias de ignomínia nos quais vivemos.
Chegou a propagar-se entre nós que São João Bosco estaria se referindo a Brasília, ao mencionar o misterioso lugar entre os paralelos 15 e 20, conforme sublinhamos atrás. A moderníssima (e já ultrapassada) capital brasileira seria, segundo seus entusiastas, o centro da civilização futura da América.
Parece difícil, porém, chegar a tal conclusão pelas palavras do popular santo do século passado. Conforme o leitor pode ver pelo texto citado, ou, melhor ainda, pela leitura integral do sonho de D. Bosco, não há dúvida de que se trata de uma região montanhosa, muito provavelmente na Cordilheira dos Andes, à qual o santo se refere explicitamente logo após o trecho transcrito acima:
"Mas isso não era tudo. O que mais me surpreendeu foi o ver em vários lugares que as cordilheiras, reentrando em si mesmas, formavam vales, de cuja existência nem suspeitam os geógrafos atuais, que imaginam os sopés dos montes como uma espécie de parede. Nestes seios e nestes vales, que às vezes abarcam quilômetros e mais quilômetros, habitam populações nunca vistas pelos europeus, completamente desconhecidas" (op. cit., p. 376).
O leitor estará se perguntando o que tem a ver com a Bolívia essa longa introdução sobre um sonho de São João Bosco, em pleno século XIX.
A explicação é simples. A descrição do grande educador italiano parece corresponder perfeitamente a nosso vizinho do Oeste, no tocante aos trechos citados. Procure o leitor no mapa uma "enseada larguíssima e longuíssima" entre montanhas, à altura dos paralelos 15 e 20, sul: E verá como pode tratar-se do lago Titicaca, no Altiplano da Bolívia. Com efeito, grandes enseadas não lhe faltam, sobretudo se considerarmos sua parte sul, separada do lago propriamente dito pelo estreito de Tiquina.
Situado a quase quatro mil metros de altitude, junto aos grandes nevados da Cordilheira dos Andes, o lago Titicaca é o berço de povos milenares, cujos costumes pouco mudaram desde o início da colonização espanhola, pelo menos. Quêchuas ou quíchuas e aimarás, com línguas e costumes próprios, são os mais numerosos. Existem, porém, outras tribos menores espalhadas aliás não apenas pela Bolívia, mas também pelo Peru e outros países andinos. Em sua maioria, são remanescentes do império inca, cuja extensão abarcava desde o Equador até o norte do Chile.
Quanto às riquezas naturais, é certo que as antigas minas de prata de Potosi e as minas de estanho de exploração mais recente não constituem senão pequena parte da incalculável reserva de minerais de que dispõe a Bolívia.
Não foram entretanto as minas de ouro, prata ou estanho que me atraíram à Bolívia. Fascinou-me muito mais investigar a história de uma cruz que, há quase dois mil anos, nos primeiros tempos do Cristianismo, um dos próprios Apóstolos de Nosso Senhor teria deixado na vila indígena de Carabuco, às margens do Titicaca.
Conheci a narração em "Un viaje fascinante por la America Hispana del siglo XVI", de Frei Diego de Ocaña, que de 1599 a 1606 visitou o vasto domínio espanhol. Dizia o missionário franciscano que em Carabuco se havia retirado das águas do Titicaca uma cruz de madeira milagrosa. Segundo a tradição existente entre os índios, um Apóstolo (que Frei Ocaña julgava ser São Bartolomeu) a teria deixado no povoado. Instigados pelos feiticeiros, parte dos indígenas tentou matá-lo. Por fim, ele se retirou misteriosamente pelas águas do lago. Quanto à cruz, tentaram queimá-la, sem sucesso. Mais tarde, uma parcela da população acabou por lançá-la às águas, embora outros índios fiéis ao Apóstolo não o desejassem. Séculos depois, quando vieram os espanhóis de Pizarro, os missionários souberam da brumosa história. Verificando o local onde se dizia ter sido lançada a cruz do Apóstolo, acabaram por encontrá-la. Frei Ocaña diz ter levado um pedacinho para a Espanha. A madeira, pesadíssima, desconhecida na região, afundava na água, por menor que fosse o pedaço. E produzia curas prodigiosas.
Estaria ainda a cruz em Carabuco? Confirmar-se-iam suas características fabulosas? Eis o fascinante tema para cujo exame convido o leitor, em futuro artigo, quando entrarei em pormenores.
Crônicas seiscentistas registram também a legendária presença no tempo da colonização espanhola de São Tiago Apóstolo na região de Santa Cruz, particularmente junto aos índios chiriguanos, aos quais exprobava os vícios e exortava à conversão. O Apóstolo aparecia jovem e resplandecente, tendo à sua frente uma cruz que o acompanhava movendo-se por si, milagrosamente. Ele a teria deixado na localidade de Saipuru, ao sul de Santa Cruz, onde mandou erigir uma igreja.
Tudo isso levou-me a visitar esse nosso vizinho ocidental que, apesar de ser o país com o qual o Brasil possui sua mais extensa fronteira —3.126 km —, permanece para os brasileiros um grande desconhecido.
À guisa de introdução para um próximo artigo, apresentamos no quadro abaixo algumas informações e impressões que ajudarão o leitor a traçar o perfil da Bolívia atual.
Lago Titicaca, fotografado a 273 quilômetros de altura pelos astronautas norte-americanos do Gemini IX, de nordeste para sudeste. Ao fundo, parcialmente coberto por nuvens brancas o Oceano Pacifico.
Santa Cruz de la Sierra: palácio do governo provincial e catedral.
O principal portão de entrada para o brasileiro que visita a Bolívia é Santa Cruz de la Sierra, capital do Departamento de Santa Cruz, cujo território ocupa cerca de 30 por cento do país e limita-se com nossos dois Mato Grossos.
Ao atravessar o rio Paraguai, no pantanal matogrossense, não se nota grande diferença com o Chaco boliviano, que constitui seu prolongamento natural. E se for por via aérea, o viajante observará a mesma paisagem de savanas até pouco além do amplo cinturão com que o rio Grande envolve Santa Cruz de la Sierra, a poucos quilômetros dos primeiros contrafortes da Cordilheira Oriental.
Com seu nascedouro na gigantesca Cordilheira Central, além de Cochabamba, o Rio Grande desce rumo ao sudeste, descreve um longo périplo, inclinando-se para o norte e noroeste, para formar o Mamoré, principal afluente do Madeira, por sua vez o maior tributário meridional do Amazonas.
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Santa Cruz não é apenas a principal cidade do Oriente boliviano, mas também o mais importante centro de comunicação com o Exterior ao lado de La Paz. Sua pujante atividade econômica talvez a coloque em primeiro lugar no país, sob esse ponto de vista.
Crescendo rumo aos 300 mil habitantes, constitui a maior concentração urbana depois de La Paz. Mas, paradoxalmente, todo o resto do imenso território do departamento talvez não ultrapasse outros 300 mil. E embora o norte e leste boliviano detenham dois terços das terras do país — as mais aptas ao cultivo — é nas asperezas das cordilheiras que vive a maioria da população. Assim, seja pelo desestímulo das inundações a que estão sujeitas, seja pela natural indolência comum a todos os povos sul-americanos, as vastidões do Oriente e Amazônia bolivianos permanecem incultas, em sua maior parte.
Fundada em 1592, Santa Cruz conserva aspectos tradicionais ao lado de intensa movimentação comercial. No centro da cidade, é comum verem-se casas de telhados seculares, em cima dos quais crescem plantas e por vezes até flores! Exemplo dessa exuberância vegetal encontramos na vetusta torre da igreja dos franciscanos, Ordem que representou papel capital na evangelização daquelas terras, sobretudo após a expulsão dos jesuítas, em 1767.
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A uns 30 km de Santa Cruz, o Santuário de Nossa Senhora de Cotoca atrai peregrinos de toda a região. As igrejas de Santa Cruz, como de toda a Bolívia, são frequentadas em massa pelos fiéis. O "progressismo" avança com cautela e o aparente conservadorismo de muitos sacerdotes bolivianos causaria "escândalo" no Brasil dos D. Casaldáligas.
Vivaz, aberto, de trato fácil, combativo, o crucenho — como também o boliviano do Norte amazônico — pareceu-me temperamentalmente muito afim ao brasileiro. Essa afinidade, acentuada pelo intercâmbio comercial com nosso país, não existe, contudo, no Altiplano, cujo povo apresenta características completamente diversas. Talvez o único traço que una os quêchuas e aimarás das cordilheiras com os chiquitos e chiriguanos do leste, estes de raça guarani, seja a civilização hispânica. Mesmo assim, uns e outros não a assimilaram senão em parte.
E em certos casos misturaram irremediavelmente costumes cristãos e pagãos, à semelhança dos mozárabes durante a invasão maometana da Espanha. Ao norte, ainda vivem tribos nômades por vezes em estado completamente selvagem.
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Antes de elevar-se às alturas vertiginosas da Cordilheira Central, o relevo andino da Bolívia apresenta os contrafortes mais amenos e verdejantes da Cordilheira Oriental. Encontram-se aí vales propícios à agricultura como também panoramas encantadores.
Entre as duas cordilheiras, em um desses vales, a meio caminho entre Santa Cruz e La Paz, situa-se Cochabamba, a pouco mais de 2.500 metros de altitude. Fundada em 1575, conserva em seu centro o mesmo aspecto arquitetônico de um século atrás. Centro agrícola com algumas indústrias, Cochabamba orgulha-se de abrigar a sede da principal empresa aérea do país, que leva sua bandeira ao Exterior: o Lloyd Aéreo Boliviano - LAB
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O brasileiro que visitar a Bolívia já verá em Cochabamba as primeiras neves eternas. Mas será voando a La Paz que as encontrará em abundância. Saudará o majestoso Ilimani, rutilante de alvura. E verá desfilarem ante seus olhos outros nevados que alcançam 6 ou 7 mil metros de altura.
La Paz, a capital mais alta do mundo; Sucre, a cidade branca da América; Potosi, ainda mais alta que La Paz, centro artístico de primeira grandeza, são outras cidades bolivianas que convidamos o leitor a conhecer, pelo menos em alguns aspectos, em próximo artigo.