A sagrada liturgia comemora no dia 2 do presente mês um dos episódios mais gloriosos da vida de Nossa Senhora: Sua Purificação.
No Antigo Testamento a Lei determinava às mulheres israelitas permanecer quarenta dias sem se aproximarem do Tabernáculo do Templo, após darem à luz um filho. Expirado esse prazo, elas deveriam oferecer um sacrifício para serem purificadas. Tal sacrifício consistia num cordeiro que era consumido em holocausto. A Lei ordenava também que se acrescentasse uma rola ou uma pomba, destinadas a serem ofertadas segundo o rito do sacrifício.
Se a mãe fosse muito pobre para fornecer o cordeiro, Deus havia permitido substituir aquele animal por uma segunda rola ou pomba.
Outra determinação da Lei declarava que todos os primogênitos constituíam propriedade do Senhor; e prescrevia igualmente a maneira de os resgatar. O preço desse resgate era de cinco moedas de prata denominadas siclo. Segundo o valor estabelecido no Templo, cada siclo equivalia a vinte moedas chamadas óbulos.
Maria Santíssima, pertencente ao povo de Israel, dera à luz. Jesus, Seu filho primogênito e único, era o Verbo de Deus humanado. O respeito devido a tal nascimento e Àquele sublime primogênito permitiria o cumprimento da Lei?
Se Maria considerasse as razões que haviam movido o Senhor a obrigar as mães à purificação, veria claramente que essa lei não havia sido feita para Ela. Que relação podia ter com as esposas dos homens Aquela que era o puríssimo santuário do Espírito Santo, Virgem na concepção de Seu Filho, Virgem durante o inefável parto e após este?
Se Maria considerasse, além disso, a qualidade sublime de Seu Filho, a majestade do Criador e do soberano Senhor de todas as coisas que havia se dignado encarnar em Seu seio puríssimo, como poderia Ela pensar que tal Filho estivesse sujeito à humilhação do resgate?
Contudo, o Espírito que residia em Maria revelou-Lhe que Ela devia cumprir aquelas duas determinações da Lei. E num excelso ato de humildade, a fidelíssima Esposa do Espírito Santo dirige-se ao Templo de Jerusalém e resgata Seu primogênito como se fosse uma simples e comum mãe israelita!
Tal é o mistério do quadragésimo dia após o nascimento do Redentor. O ciclo do Natal é encerrado por essa admirável festividade da Purificação.
Ritos orientais católicos e o Rito de Milão classificam esta festa como uma das solenidades de Nosso Senhor. Entretanto, o Rito Romano sempre considerou tal comemoração como uma das festas da Virgem Santíssima. Sem dúvida, o Menino Jesus é oferecido no Templo, na mesma data, e resgatado. Mas é por ocasião da Purificação de Maria que esses oferecimento e resgate se realizam, como uma consequência.
Os mais antigos Martirológios e Calendários do Ocidente atribuem à presente festividade o mesmo título de nossos dias. E a glória do Filho, longe de ser obscurecida pelas homenagens que a Igreja presta à Mãe, recebe um acréscimo. Pois somente Ele constitui o princípio de todas as magnitudes que poderemos tornar a ver refletidas na Virgem Imaculada.
A Purificação — Iluminura da Très Riches Heures du Duc de Berry (Mc. XV), Museu Condé, Chantilly.
Plínio Corrêa de Oliveira
Não compreendo como homens de Igreja contemporâneos, inclusive dos mais cultos, doutos ou ilustres, mitifiquem a figura de Lutero, o heresiarca, no empenho de favorecer uma aproximação ecumênica, de imediato com o protestantismo, e indiretamente com todas as religiões, escolas filosóficas etc. Não discernem eles o perigo que a todos nos espreita, no fim deste caminho, ou seja, a formação em escala mundial, de um sinistro supermercado de religiões, filosofias e sistemas de todas as ordens, em que a verdade e o erro se apresentarão fracionados, misturados e postos em balbúrdia? Ausente do mundo só estaria — se até lá se pudesse chegar — a verdade total; isto é, a Fé católica apostólica romana, sem nódoa nem jaça.
Sobre Lutero — a quem caberia, sob certo aspecto, o papel de ponto de partida nessa caminhada para a balbúrdia total — publico hoje mais alguns tópicos que bem mostram o odor que sua figura revoltada espargiria nesse supermercado, ou melhor, nesse necrotério de religiões, de filosofias, e do próprio pensamento humano.
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Segundo em anterior artigo prometi, tiro-os da magnífica obra do Pe. Leonel Franca S.J., "A Igreja, a Reforma e a Civilização" (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 3.a ed., 1934, 558 pp.).
Elemento absolutamente característico do ensinamento de Lutero é a doutrina da justificação independente das obras. Em termos mais chãos, que os méritos superabundantes de Nosso Senhor Jesus Cristo só por si asseguram ao homem a salvação eterna. De sorte que se pode levar nesta terra uma vida de pecado, sem remorsos de consciência, nem temor da justiça de Deus.
A voz da consciência era, para ele, não a da graça, mas... a do demônio!
1. Por isso escreveu a um amigo que o homem vexado pelo demônio, de quando em quando "deve beber com mais abundância, jogar, divertir-se e mesmo fazer algum pecado em ódio e acinte ao diabo, para lhe não darmos azo de perturbar a consciência com ninharias. (..) Todo o decálogo se nos deve apagar dos olhos e da alma, a nós tão perseguidos e molestados pelo diabo" (M. Luthers, "Briefe, Sendschreiben und Bedenken", ed. De Wette, Berlim, 1825-1828, IV, p. 188 - cfr. op. cit., pp. 199-200).
2. Neste sentido, escreveu ele também: "Deus só te obriga a crer e a confessar. Em todas as outras coisas te deixa livre e senhor de fazeres o que quiseres, sem perigo algum de consciência; antes é certo que, de si, Ele não se importa, ainda mesmo se deixasses tua mulher, fugisses do teu senhor e não fosses fiel a vínculo algum. E que se lhe dá (a Deus), se fazes ou deixas de fazer semelhantes coisas?" ("Werke", ed. de Weimar, XII, pp. 131 ss. — cfr. op. cit., p. 446).
3. Talvez ainda mais taxativo é este incitamento ao pecado, em carta a Melanchton, de 1° de agosto de 1521: "Sê pecador, e peca a valer (esto peccator et pecca fortiter), mas com mais firmeza ainda crê e alegra-te em Cristo, vencedor do pecado, da morte e do mundo. Durante a vida presente devemos pecar. Basta que pela misericórdia de Deus conheçamos o Cordeiro que tira os pecados do mundo. Dele não nos há de separar o pecado, ainda que cometêssemos por dia mil homicídios e mil adultérios" ("Briefe, Sendschreiben und Bedenken", ed. De Wette, II, p. 37 — cfr. op. cit., p. 439).
4. Tão descabelada é esta doutrina, que o próprio Lutero a duras custas nela conseguia acreditar: "Nenhuma religião há, em toda a terra, que ensine esta doutrina da justificação; eu mesmo, ainda que a ensine publicamente, com grande dificuldade a creio em particular" ("Werke", ed. de Weimar, XXV, p. 330 — cfr. op. cit., p. 158).
5. Mas os efeitos devastadores da pregação assim confessadamente insincera de Lutero, ele mesmo os reconhecia: "O Evangelho hoje em dia encontra aderentes que se persuadem não ser ele senão uma doutrina que serve para encher o ventre e dar larga a todos os caprichos" ("Werke", ed. de Weimar, XXXIII, p. 2 — cfr. op. cit., p. 212).
E Lutero acrescentava, acerca de seus sequazes evangélicos, que "são sete vezes piores que outrora. Depois da pregação da nossa doutrina, os homens entregaram-se ao roubo, à mentira, à impostura, à crápula, à embriaguez e a toda espécie de vícios. Expulsamos um demônio (o papado) e vieram sete piores" ("Werke", ed. de Weimar, XXVIII, p. 763 — cfr. op. cit., p. 440).
"Depois que compreendemos não serem as boas obras necessárias para a justificação, ficamos muito mais remissos e frios na prática do bem. (..) E se hoje se pudesse voltar ao antigo estado de coisas, se de novo revivesse a doutrina que afirma a necessidade do bem fazer para ser santo, outra seria a nossa alacridade e prontidão no exercício do bem" ("Werke", ed. de Weimar, XXVII, p. 443 — cfr. op. cit., p. 441).
6. Todas essas insânias explicam que Lutero chegasse ao frenesi do orgulho satânico, dizendo de si mesmo: “Este Lutero não vos parece um homem extravagante? Quanto a mim, penso que ele é Deus. Senão, como teriam os seus escritos e o seu nome a potência de transformar mendigos em senhores, asnos em doutores, falsários em santos, lodo em pérolas!” (ed. Wittemberg, 1551, t. IV, p. 378 — cfr. op. cit., p. 190).
7. Em outros momentos, a opinião que Lutero tinha de si mesmo era muito mais objetiva: "Sou um homem exposto e impli cado na sociedade, na crápula, nos movimentos carnais, na negligência e em outras moléstias, a que vêm ajuntar as do meu próprio ofício" ("Briefe, Sendschreiben und Bedenken", ed. De Wette, I, p. 232 — cfr. op. cit., p. 198). Excomungado em Worms em 1521, Lutero entregou-se ao ócio e à moleza. E a 13 de julho escreveu a outro prócer protestante, Melanchton: "Eu aqui me acho, insensato e endurecido, estabelecido no ócio, oh dor!, rezando pouco, e deixando de gemer pela Igreja de Deus, porque nas minhas carnes indômitas ardo em grandes labaredas. Em suma, eu que devo ter o fervor do espírito, tenho o fervor da carne, da libidinagem, da preguiça, do ócio e da sonolência" ("Briefe, Sendschreiben und Bedenken", ed. De Wette, II, p. 22 — cfr. op. cit., p. 198).
Num sermão pregado em 1532: "Quanto a mim confesso — e muitos outros poderiam sem dúvida fazer igual confissão — que sou desleixado assim na disciplina como no zelo, sou muito mais negligente agora que sob o papado; ninguém tem agora pelo Evangelho oardor que se via outrora" ("Saemtliche Werke", ed. de Plochman-Irmischer, XVIII, p. 353 — cfr. op. cit., p. 441).
O que de comum se pode encontrar, pois, entre esta moral, e a da Santa Igreja Católica Apostólica Romana?
O Concílio de Trento — Detalhe de pintura atribuída a Tiziano (séc. XVI), Museu do Louvre, Paris. Este célebre Concílio — esteio da Contra-Reforma — condenou as doutrinas heréticas de Lutero.