P.08-09

Continuação

estavam longe, já o Templo se enchia de mortos e era profanado. Até celeiros de trigo, que haviam sido preparados para resistir ao assédio romano, foram queimados durante esta incrível guerra civil. Dia e noite ouviam-se os gritos dos que lutavam e os lamentos dos feridos. Falando mais especialmente da facção de João, afirma o historiador Josefo:

"Tudo o que se encontrava de mais precioso nas casas dos ricos não era suficiente para contentar a sua insaciável ambição. Matar os homens e ultrajar as mulheres era para eles um divertimento e um gracejo. Eles borrifavam suas presas com sangue e encontravam prazer na multiplicação dos crimes. Depois de se terem abandonado aos que são praticados pelos maus, eles se aborreciam com os mesmos, como muito ordinários e comuns; para satisfazer a sua abominável brutalidade, não tinham vergonha de procurar outros, que causavam horror à mesma natureza. Vestiam-se de mulheres, penteavam os cabelos e adornavam-se como elas, e não as imitavam somente em suas vestes e adereços, mas até na impudência mais desavergonhada, superavam-nas ainda com ações de uma impudicícia abominável. Assim encheram Jerusalém de crimes execráveis, de tal modo que aquela grande cidade parecia um lugar público de prostituição, a mais detestável e a mais horrível de todas as infâmias. Mas, ainda que esses monstros de impudicícia, de crueldade e de ambição tivessem rosto tão efeminado, suas mãos não estavam menos prontas a cometer assassínios. Ao mesmo tempo que andavam devagar e afetadamente, eram vistos puxar suas espadas de sob as vestes de diversas cores e assassinar os que encontravam. Os que podiam escapar das mãos de João, caíam nas de Simão e achavam que ele ainda os superava em crueldade" (pp. 34-35).

O cerco e a fome

Quando Tito cercou a cidade era a época da Páscoa. Jerusalém abrigava não só seus habitantes, mas estava repleta de judeus vindos de todos os cantos do mundo para comemorar a solenidade, e que se viram sem poder sair. Tito ofereceu-lhes a paz se se entregassem. Não aceitaram.

Durante o cerco, que durou perto de cinco meses, numerosas foram as tentativas frustradas dos romanos de tomar as muralhas, e diversas as investidas dos judeus - cujos partidos se uniram - contra os acampamentos romanos, pondo por vezes fogo nas plataformas levantadas e nas máquinas de guerra. A fome começou a campear:

"[Os que ainda tinham algum trigo ou cevada] encerravam-se nos lugares mais ocultos de suas casas, onde alguns comiam esse grão, sem ser moído .... Não se viam mais mesas postas; cada qual tirava de debaixo do carvão o que comer, sem se dar ao trabalho de o deixar cozer

As mulheres arrancavam o pão da mão de seus maridos, as crianças das mãos de seus pais, e o que supera toda credulidade, as mães das mãos de seus filhos .... Quando a porta de uma casa se fechava, a suspeita de que aqueles que lá estavam tinham alguma coisa para comer os fazia arrombá-las, para entrar e para lhes tirar o pedaço da boca. Espancavam os velhos que não os queriam entregar, agarravam pela garganta as mulheres que escondiam o que tinham nas mãos e sem ter mesmo nem compaixão das crianças que ainda mamavam, atiravam-nas ao chão depois de terem sido arrancadas do peito de suas mães .... Penduravam os homens pelas partes mais sensíveis, fincavam-lhes na carne pedaços de pau pontiagudos e os faziam sofrer outros indizíveis tormentos, para fazê-los declarar onde tinham escondido um pão ou um punhado de farinha

Tiravam dos pobres as ervas, que de noite eles iam colher fora da cidade, com perigo de vida" (pp. 172-173).

Como aumentasse muito o número dos que saíam à noite para colher ervas, os romanos os apanhavam em emboscadas e os crucificavam à vista da cidade. Cada dia apanhavam 500 e às vezes mais, a ponto de não haver mais cruzes, nem lugar para levantá-las... Tito mandou vários prisioneiros de volta, depois de lhes ter cortado as mãos. Mas Jerusalém não queria entregar-se.

O desespero e a obstinação dos combatentes hebreus chegaram a tal ponto, que em suas investidas contra o acampamento romano para incendiá-lo, atiravam-se contra as pontas das lanças dos legionários, tentando assim derrubá-los com o corpo.

Tito resolveu então cercar a cidade com extensíssimo muro, que impedisse as investidas inimigas e qualquer eventual entrada de alimentos através dos vales.

"Os judeus, vendo-se então inteiramente cercados na cidade, desesperavam-se de uma vez de sua salvação. A fome que sempre aumentava devorava famílias inteiras. As casas estavam cheias de cadáveres de mulheres e de crianças, e as ruas de corpos de anciãos. Os moços, inchados e cambaleando pelas ruas, mais pareciam espectros do que seres vivos, e o menor obstáculo os fazia cair. Assim, não tinham forças para enterrar os mortos .... No meio de tão espantosa miséria não se ouviam choros nem lamentos, não se escutavam gemidos, porque aquela fome horrível com que a alma estava inteiramente ocupada, afogava todos os outros sentimentos .... O silêncio era tão grande em toda a cidade como se ela tivesse sido sepultada numa noite profunda, ou que lá não vivesse mais um ser humano. Em tal contingência aqueles celerados .... entravam naquelas casas que eram mais sepulcros que lares e despojavam os mortos, tiravam-lhes até as vestes, e acrescentando ainda a zombaria a tão espantosa desumanidade feriam com golpes os que ainda respiravam, para experimentar se suas espadas ainda tinham gume .... [Aos mortos] jogavam-nos por cima dos muros, ao fundo dos vales. O horror que Tito sentiu por vê-los quando deu volta a toda a praça, e o estranho fedor do apodrecimento dos cadáveres, fê-lo soltar um profundo suspiro" (pp. 191 a 193).

Os que conseguiam fugir até os romanos muitas vezes morriam do alimento que tomavam, pois "estando inchados e hidrópicos, comiam com tanta avidez, para encher o estômago vazio, que faziam a natureza desfalecer, e rebentavam quase no mesmo instante" (p. 203).

Auge do horror

Muitos dos que fugiam engoliam ouro, para tentar depois recuperá-lo. Um deles foi surpreendido pelos soldados romanos procurando ouro entre seus excrementos. A notícia correu pelo acampamento. Numa só noite dois mil prisioneiros judeus tiveram seus ventres abertos pelos soldados romanos à procura de ouro.

"E, como por fim não se podiam transportar tantos corpos [para jogá-los nos vales], era-se obrigado a lançá-los em grandes casas, das quais se fechavam as portas .... Os pobres, não podendo mais sair para procurar ervas ...., iam até mesmo nos esgotos procurar velho esterco de boi para comer, e outras imundícies" (p. 209). "Comiam até mesmo a sola dos sapatos, o couro dos escudos, um punhado de feno podre" (p. 268). "Havia mortos por toda parte; pelas estradas, pelas ruas, não se podia passar sem ter que pisar nalgum cadáver" (p. 212).

Os romanos, enfim, após a derrubada de várias muralhas, chegaram até o Templo, em frente ao qual se deram vários combates. Nele se encerraram os revoltosos judeus com suas máquinas de guerra. O Templo virou uma fortaleza, e sua praça fronteiriça um cemitério.

Enquanto isso, na cidade, deu-se o caso estarrecedor de uma mulher, chamada Maria, a quem os revoltosos, após ter-lhe tudo arrebatado, "tomaram-lhe ainda por diversas vezes o que ela havia escondido para seu alimento .... A fome que a devorava, e ainda mais o fogo que a cólera tinha acendido em seu coração, inspiraram-lhe uma resolução que causa horror à mesma natureza. Ela arrancou o filho do próprio seio e disse-lhe: 'Criança infeliz .... não é então preferível que tu morras para me servir de alimento?' Ela matou o filho, cozeu-o, comeu uma parte e escondeu a outra. Aqueles ímpios tendo sentido o cheiro daquela iguaria inominável, ameaçaram matá-la se ela não lhes mostrasse o que tinha preparado para comer. Ela respondeu que ainda lhe restava um pedaço da iguaria e mostrou-lhes restos do corpo do próprio filho ....; na exaltação que lhe causava o furor, disse-lhes com o rosto convulsionado: 'Sim, é meu próprio filho que vedes e fui eu mesma que o matei. Podeis comê-lo também, pois eu já comi. Sois talvez menos corajosos que uma mulher e tendes mais compaixão do que uma mãe? Se vossa piedade não vos permite aceitar essa vítima que eu vos ofereço, eu mesma acabarei de comê-lo" (pp. 269 a 272).

Comenta o historiador Josefo:

"Se os romanos tivessem diferido em castigar pelas armas tão grandes criminosos, eu creio que a terra se teria aberto para tragar aquela miserável cidade; ou ela teria perecido por um outro dilúvio, ou teria sido destruída pelo fogo do céu como Gomorra, pois as abominações que ali se cometiam, e que por fim causaram a ruína de todo o povo, sobrepujavam as que obrigaram a Deus a lançar seus raios vingadores sobre aquela outra detestável cidade" (p. 208).

O Templo Incendiado, a cidade arrasada

Apesar de tudo, Tito manifestava o desejo de salvar o Templo, pois era um ornamento do império. Entretanto, no dia 10 de agosto, repelindo uma escaramuça de judeus, soldados romanos chegaram até às portas do Templo:

"Um soldado então ...., como levado por inspiração divina, fez-se levantar por um companheiro e atirou pela janela de ouro um pedaço de madeira aceso .... O fogo ateou-se imediatamente .... Avisaram Tito. Ele partiu no mesmo instante para mandar apagar o fogo; todos os chefes seguiram-no e as legiões depois dele, com grande confusão e tumulto .... Tito gritava com todas as forças, fazia sinais com a mão para obrigar os seus a apagar o fogo, mas tão grande barulho impedia que ele fosse ouvido .... Assim, aquelas legiões que entravam em massa não podiam, em sua impetuosidade, ser contidas nem por suas ordens, nem por suas ameaças; o furor as conduzia. ..., os que estavam atrás exortavam os mais adiantados a pôr fogo.

De qualquer lado que se lançassem os olhos, só se viam fuga e mortandade .... Em volta do altar havia montes de cadáveres, que eram atirados, depois de assassinados, àquele lugar santo; rios de sangue corriam por todos os degraus" (pp. 284-285).

"Quando o fogo devorava o Templo, os soldados furiosos saqueavam e matavam todos os que encontravam .... Os velhos e as crianças, os sacerdotes e os leigos eram todos passados a fio de espada ...., o gemido dos moribundos misturava-se com o barulho do crepitar das chamas que avançavam sempre.

O fogo que devorava o Templo era tão grande e tão violento que parecia que o mesmo monte sobre o qual estava situado ardia todo inteiro. O sangue corria em tal quantidade que parecia querer competir com o fogo.

Toda a terra estava coberta de cadáveres; os soldados pisavam-nos para poder continuar a perseguir os que ainda tentavam fugir" (pp. 289-290).

Alguns sacerdotes procuravam escapar às chamas, outros lançavam-se nelas, suicidando-se. Vários entregaram-se a Tito pedindo clemência. Tito respondeu que o tempo da demência havia passado, e era justo que os sacerdotes perecessem com o Templo. Mandou matá-los.

Falsos profetas surgiram em Jerusalém nessa ocasião, prometendo a salvação. Um deles, pouco antes do incêndio do Templo, convenceu seis mil pessoas da cidade a que fossem ao Templo, porque lá haveria um sinal do auxílio divino. Todos ali pereceram.

O Templo reduzido a cinzas, Tito procurou ainda salvar a cidade. Mas os judeus não se entregavam. Então, os romanos expulsaram os resistentes da cidade baixa e a incendiaram toda. Restava a cidade alta.

A essa altura os romanos vendiam os prisioneiros a outros povos, como escravos. Mas o preço alcançado era baixo, tal o número de judeus escravizados desde o início da guerra.

Flávio Josefo assim narra a destruição da cidade alta:

"Os soldados espalhados por toda a cidade matavam sem distinção os que encontravam, e incendiavam todas as casas com as pessoas que lá estavam escondidas. Os que nelas entravam, para saqueá-las, encontravam-nas cheias de cadáveres de toda a família, que a fome havia feito perecer .... O número dos corpos amontoados uns sobre os outros era tão grande que entupia as ruas, e o sangue em que nadavam apagava o fogo em vários lugares. Foi a 8 de setembro que Jerusalém, depois de ter sofrido tantos males, por fim desapareceu sob o violento incêndio" (pp. 329-330).

Nos sepulcros e esgotos foram ainda mortos uns dois mil judeus que lá se haviam refugiado. Calcula-se que durante todo o cerco morreram um milhão e cem mil hebreus.

Tito mandou arrasar, até aos alicerces, tudo o que restou, com exceção de um pedaço de muralha do lado do ocidente e três torres, para ficarem como símbolo da vitória romana.

"Não ficou sinal algum que mostrasse haver ali existido um centro tão populoso" (p. 342).

O Arco de Tito, construído durante os reinados de Domiciano e Trajano (81 a 117 D.C.), celebra a vitória dos Imperadores Vespasiano e seu filho Tito sobre os hebreus.

Busto do Imperador romano Tito.

Tática de "tartaruga' utilizada pelos romanos para assalto a muralhas.