NO PRESENTE MÊS, comemorando-se a Paixão do Redentor da humanidade, pareceu-nos oportuno apresentar à veneração de nossos leitores uma obra-prima da arte barroca brasileira, infelizmente pouco conhecida do grande público. Trata-se de um crucifixo que se encontra no altar-mor da igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São João dei Rei (MG).
Habitualmente, os crucifixos representam a figura do Divino Redentor enquanto sofrendo terríveis dores físicas e envolta em profunda tristeza, devido à perseguição injusta e cruel de que foi vítima. E com inteira razão os artistas se têm inspirado nesses dois aspectos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo para execução de suas obras. Pois que indizíveis dores não sofreu Aquele a respeito do Qual o salmista exclama numa de suas profecias: "Transpassaram minhas mãos e meus pés, contaram iodos os meus ossos" (51. 21, 17-18)? E em que grau de acabrunhadora tristeza não terá Sua alma mergulhado ao considerar os pecados e a ingratidão dos homens que Ele viera salvar?
No crucifixo que apresentamos no clichê desta página, entretanto, a dor física e a tristeza parecem suplantadas por outra forma de sofrimento, ainda mais atroz: o mal-estar. Um mal-estar terrível, que parece dominar tanto o corpo do Redentor quanto Sua Santíssima alma. Tem-se a impressão de que Nosso Senhor está sumamente aflito, no auge de sua agonia, e vendo aproximar-se a morte.
Dir-se-ia que o Divino crucificado, com a expressão fisionômica que apresenta no clichê, não estaria longe de dar aquele brado lancinante e sublime que precedeu de pouco sua morte: "Eli, Eli, lamma sabacthani?" - Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? (Mt., 27, 46).
Sua natureza humana está prestes a arrebentar, e um mal-estar – mais dolorido que a própria dor e mais intenso que a tristeza – o inunda profundamente. O "consum-matum est" está próximo.
É-se levado a crer que o presumível anjo(*) que esculpiu esta imagem viu nosso Salvador nesse estado, e esculpiu na madeira o mal-estar que tanto o impressionara e comovera.
(*) Ver o histórico deste magnífico crucifixo publicado ao lado.
Nada há de mais contagioso do que o mal-estar. Como deveria ser contagioso o divino mal-estar do Homem-Deus! Não teria este estado comovido e contagiado algumas pessoas dotadas de um mínimo de compaixão? É possível ter sido a consideração de tal mal-estar de Nosso Senhor, em sua caminhada ascensional durante a Paixão, que tenha comovido a alma do bom ladrão e de outras pessoas que se encontravam no monte Calvário, levando-os à conversão.
Mas, principalmente, devemos nos interrogar sobre como terá esse mal-estar do Redentor contagiado a Virgem Santíssima, que ali estava ao pé da Cruz. Seria necessário que algum artista se inspirasse nesse crucifixo para esculpir uma Mater Dolorosa! Então teríamos a imagem de Nossa Senhora das Dores que bem a representaria na grandeza de seu sofrimento: transpassada pelas provações, assaltada pelas aflições mais angustiantes e envolta naquele mesmo mal-estar que dilacerava seu Divino Filho.
Mas, para isso, talvez fosse necessário que outro anjo, após contemplá-la no auge da agonia, análoga à de Seu Filho, se encarregasse desse excelso mister.
O MARAVILHOSO crucifixo apresentado em nosso clichê encontra-se exposto à veneração do público na igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São João dei Rei (MG). Piedosa tradição atribui sua confecção a um milagre operado presumivelmente por um anjo, disfarçado sob a figura de peregrino.
Vejamos uma das múltiplas versões dessa tradição, cujo fundamento consiste numa difundida crença popular:
* * *
"CORRIA O ANO de 1784, mais ou menos. A Venerável Ordem Terceira do Seráfico São Francisco, de São João dei Rei, em Minas Gerais, tratava de fazer aquisição de uma imagem do Senhor do Monte Alverne, para ser colocada no altar-mor de sua igreja. Na Capitania não havia escultores que pudessem desempenhar, com a perfeição exigida, a confecção da referida imagem. Era mister, pois, recorrer a Lisboa ou ao Porto.
No entanto, um homem de estatura regular, de seus 36 anos, macilento e abatido pelas fadigas de penosa viagem, a julgar pelo seu traje de peregrino, apresenta-se inopinadamente no lugar e propõe-se a fazer a obra desejada.
"O trajar humilde e a figura do escultor não ofereciam garantia do bom resultado da obra, no conceito de muita gente.
"Não obstante, a Mesa Administrativa, sob certas condições, contratou a confecção da imagem e adiantou ao operário o material necessário.
"Recolheu-se o escultor a uma casa que fica ao pé da Igreja, e aí dispôs tudo para o trabalho, como é de presumir-se.
"O certo é, porém, que ninguém o viu trabalhar; porque a oficina tinha sido colocada no interior da casa.
"Passaram-se meses; notou-se que a habitação do peregrino (conforme o denominavam) não se abria jamais. "Procuram-no, batem à porta, ninguém responde! Silêncio profundo...
"Depois de várias conjeturas, o povo, que já se havia reunido, resolve arrombar a porta.
"Grande e inesperada surpresa! Na primeira sala, estendida sobre uma banca de carpinteiro, via-se uma imagem das mais belas proporções e da mais notável perfeição!
"A imagem do Senhor Bom Jesus do Monte Alverne, pois era ela, estava concluída!
"Percorreram a casa, entraram em todos os aposentos; silêncio por toda a parte! O escultor, que tão primorosamente levara a cabo obra tão querida, desaparecera; e ninguém em tempo algum teve notícias suas!...
"A imagem foi levada para a igreja com respeito e recolhimento e colocada no altar-mor, onde, até hoje, tem recebido as orações do povo, que a venera como uma dádiva do céu" (Severiano Nunes C. de Resende, in "O Arauto de Minas", de 10 de Agosto de 1877, apud Luis de Melo Alvarenga, "Igrejas de São João del Rei", Editora Vozes Ltda., 1963, pp. 43-44).
O impressionante crucifixo do altar-mor da igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São João del Rei (MG).
A bela fachada barroca da igreja da Ordem Terceira de São Francisco.