Nossa capa: Montagem de Bruno Santarelli com foto da agência "O Globo". Os destaques em negrito nesta edição são sempre nossos.
Plinio Corrêa de Oliveira
NÃO SEI BEM como comprimir nas cem linhas datilografadas – limite irrecorrível de meu artigo – a abundância exuberante da matéria que deixei prometida para hoje. "Dar um jeito" é a forma arquetípica do "savoir faire" brasileiro. Vamos ver se ele não me falta desta vez.
A propósito do futuro Código Civil, que ameaça ser metido atabalhoadamente, à maneira de camisa de força, neste nosso inerme Brasil, manifestei a apreensão de que será um instrumento de autodemolição das categorias sociais que ora dirigem nossa Pátria. Pois razões não faltam para recear que, sob a vigência dele, a sociedade brasileira se tornará sensivelmente mais diversa dos antigos padrões cristãos. E, ao mesmo passo, sensivelmente mais parecida com os padrões
comunistas. Em outros termos, aqueles dentre os elementos da classe burguesa que têm em mãos a direção da coisa pública, nos terão feito caminhar importante etapa da trajetória, já tão curta, que resta percorrer para chegarmos à comunistização total.
A autodemolição das classes dirigentes é traço de importância capital, presente em todas as grandes revoluções que vêm abalando o Ocidente: o sismo religioso-cultural, humanístico, renascentista e protestante dos séculos XV e XVI; seu congênere sociopolítico, com largas conotações econômicas, que foi, em fins do século XVIII, a Revolução Francesa; e a catástrofe, a um tempo sociopolítica e econômica, que vem sendo a Revolução Comunista mundial, iniciada em 1917 com a implantação do regime soviético na Rússia. Segundo a teoria, a próxima explosão deverá ser a revolução autogestionária, em que o estado comunista se autodestruirá, de maneira a dar origem à utopia do anarquismo sinfônico autogestionário.
Sem a cooperação dessas sucessivas autodemolições, que levaram, por exemplo, tantos aristocratas franceses a apoiar a revolução que os devoraria, e, por sua vez, tantos outros aristocratas e burgueses russos a fazer o mesmo em face da oposição ao regime czarista, que também os aniquilaria, é de duvidar que essa sucessão de hecatombes tivesse caminhado tanto, e tão vitoriosamente. Ou que sequer tivesse chegado muito além da estaca zero...
Chegamos à vez em que a burguesia de esquerda – isto é, o conjunto dos esquerdistas que não são trabalhadores manuais – dê seu contributo para a autodemolição; à frente dela, suas duas forças-líderes: o capital e o clero (este, na aparência, tão inimigo daquele!). Sucessores autênticos dos setores revolucionários das classes dirigentes de outrora, análogos setores das classes dirigentes de hoje estão vivamente com a mão na massa. Cito como exemplo as agitações em Ivinhema, Guariba, Bebedouro etc., que tiveram apoio ostensivo e decisivo de lideranças eclesiásticas, ao longo desta última quinzena de preocupações e de confusão.
Ciclo que foi inaugurado pelo precônio do Cardeal Primaz D. Avelar Brandão, cujas palavras tanto surpreenderam os incautos: "Tudo pode acontecer. Se não tivermos cuidado, o acúmulo e o cultivo das tensões poderão nos levar a um confronto. Para que não haja um período de confronto ou guerra civil"... ("Folha de S. Paulo", 6-5-84).
Dir-se-ia que, lançadas ao ar, essas palavras enrijaram e se estruturaram à maneira de uma vara de condão. Funesta vara de condão que, tocando o solo pátrio, nele determinou o aparecimento dessa erisipela de agitações que ninguém sabe quando terminará. Infelizmente, a tarefa do clero de esquerda se tornou bem clara no Brasil e no mundo. Menos claro é, para muitos leitores, a missão esquerdista do capital.
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O capitalismo, que chegou ao seu apogeu no século XIX, e continua a liderar o mundo no século XX - não falo só do Ocidente, mas dos diversos regimes comunistas que já teriam ruído na miséria completa se não fossem os subsídios torrenciais que certo capitalismo ocidental lhes envia conscientemente ou não, desempenhou, em favor da comunistização gradual do mundo, um duplo papel:
a) emulando com as aristocracias sobreviventes, foi-se substituindo a elas e, substituindo-as, imprimiu à sociedade um caráter cada vez menos elitista, mais nivelador, e mais voltado para a proletarização futura;
b) com isto, ele tornou ocas e frágeis as monarquias, e preparou terreno para o advento, em passo cadenciado, das repúblicas no mundo inteiro, a ponto de as poucas monarquias restantes estarem reduzidas à mais diáfana expressão de si mesmas.
Proclamadas em nome de uma filosofia igualitária, radical e absurda – é esse o grande mal – essas repúblicas desencadearam apetências revolucionárias no mundo inteiro.
Tudo isso não se fez, nem se faria sem o concurso de importantes setores da sociedade atual, marcadamente do capitalismo de esquerda. E, perdoe-se-me o acaciano da afirmação, do respectivo capital.
Digressões no ar, de um reacionário situado no campo doutrinário mais genuíno em matéria de reação, como graças a Deus sou? Não; um dos maiores doutrinadores do comunismo, Engels, afirma o mesmo, e exprime a este propósito toda a sua gratidão admirativa para com o capital.
Escreveu Engels, num trecho em que suas vistas abarcam o papel revolucionário mundial do capitalismo: "Assim, pois, prossegui, vós, com ânimo a vossa luta, senhores excelentíssimos do capital! Neste momento, vós nos fazeis falta. Em alguns lugares precisamos inclusive de vosso domínio. Tendes de retirar do nosso caminho o resto de Idade Média e de monarquia absoluta. Tendes de eliminar os remanescentes da época patriarcal, levar a cabo a centralização e converter as classes mais ou menos sem posses em verdadeiros proletários, nossos recrutas. Com a ajuda de vossas fábricas, de vossos vínculos comerciais, deveis criar para nós a base dos recursos materiais de que precisa o proletário para a sua emancipação" (Yuri Kuroliov, "Marx e a América Latina", in "América Latina", revista da Academia de Ciências da Rússia, Editorial Progresso, Moscou, outubro de 1983, n.° 10 (70), pp. 4 e ss.).
Poderia estar mais claro o que o comunismo esperava do capitalismo, e que em nossos dias cabe aos capitalistas de esquerda completar, constituindo-se sempre mais devotados "companheiros de viagem" do comunismo?
Acabo de reler o que escrevi. Coube tudo nas cem linhas. Foi possível "dar um jeitinho". Como é bom ser brasileiro!
Saberá meu querido País, saberão meus queridos compatriotas "dar um jeitinho" para se saírem das crescentes pressões a que os sujeitam as classes dirigentes autodemolidoras de esquerda? E para que eles se metam resolutamente nesta tarefa, que este artigo pretende constituir desinteressada e categórica colaboração.
(Transcrito da 'Folha de S Paulo' de 28-5-84)
A SITUAÇÃO nacional talvez nunca se tenha apresentado, em nosso século, tão carregada de ameaças quanto no momento presente. Em todos os lados do nosso País-continente, arrebentam agressivas manifestações de descontentamento visando reformas socioeconômicas.
Esses descontentamentos têm, entretanto, isso de notável: vistos panoramicamente e analisados no seu espírito, nas suas metas e nos seus métodos, constata-se que correspondem à execução de um largo e bem estruturado plano de agitação, que se estende por todo território nacional.
Tal plano de agitação é dirigido pela esquerda "católica" (através de elementos altamente credenciados na Hierarquia eclesiástica e de organismos como a Comissão Pastoral da Terra - CPT, as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs) e pelo PT, com a fraca e esquálida colaboração do PCB e do PC do B - entidades cuja importância na luta de classes no Brasil vai se tornando cada vez mais notoriamente insignificante.
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Que saibamos, nenhum órgão de imprensa publicou uma visão panorâmica desses acontecimentos, enquanto "Catolicismo" dedica a eles este número especial.
Tal visão compõe-se de dois elementos. Uma reportagem de nossos enviados especiais Lúcio Pereira e Bruno Santarelli, que percorreram regiões afetadas pelas recentes agitações; e, por outro lado, informações colhidas no noticiário de órgãos da imprensa que circulam em regiões onde se verificaram os conflitos mais graves, bem como de diários importantes do Rio de Janeiro e São Paulo. Além do noticiário, "Catolicismo" publica também uma análise do espírito, das metas e dos métodos empregados nas agitações que convulsionaram o Brasil.
Fogo consome móveis e madeirame retirados do escritório da SABESP, depredado durante as agitações.
AS RECENTES agitações urbanas e rurais iniciadas com a invasão de terras em Ivinhema (MS) e a greve de boias-frias de Guariba e Bebedouro (SP), em maio último, acentuaram ainda mais, no Brasil, o espectro sombrio e fuliginoso da luta de classes.
Apesar de serem noticiados como espontâneos, esses movimentos contestatários apresentam características da técnica uniforme e bem concertada de guerrilha rural e urbana. Em consequência disso, parece-nos oportuno tecer algumas considerações sobre aspectos importantes dessas agitações.
Embora seja notória a participação de elementos da esquerda católica (certos Bispos e padres, além de religiosas, agentes da Comissão Pastoral da Terra - CPT e membros das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs) nessas "revoltas" - o termo é usado na imprensa diária - afirma-se serem elas o transbordamento natural da angústia e indignação do trabalhador brasileiro, quer do campo, quer da cidade.
Segundo a legenda criada pelos partidários e propagadores da ideia de espontaneidade das agitações, estaria configurada em nosso País uma situação iníqua, na qual a injustiça social atingiu um clímax. E diante do egoísmo dos detentores do poder econômico (a burguesia capitalista), obstinados em não atender as reivindicações dos famintos e desvalidos (o operariado), o conflito seria inevitável. Há mesmo quem afirme que essas explosões de descontentamento já tardam.
Tal perspectiva - evidentemente muito exagerada e tendenciosa - apresenta o Brasil como estando à beira de um colapso social de consequências imprevisíveis. Seria iminente um confronto violento entre a classe trabalhadora e a classe dos proprietários. Em outros termos, estaríamos a poucos passos da guerra civil.
Neste quadro socioeconômico artificialmente conturbado (além de distorcido e exagerado pela propaganda), surgem de cá e acolá pronunciamentos de eclesiásticos, próprios a "lançar lenha na fogueira".
Assim, no momento em que invasores continuavam ocupando uma fazenda em Ivinhema (MS), o Cardeal