O BISPO DE SÃO FÉLIX do Araguaia (MT), em declarações prestadas ao jornal "Correio Popular" (Campinas, 6-5-84), por ocasião da 22ª Assembleia Geral da CNBB, afirma que as invasões de terra - realizadas por trabalhadores rurais instigados pela Comissão Pastoral da Terra - constituem novo método para implantar a Reforma Agrária.
Eis alguns trechos do artigo publicados pelo jornal campinense:
'Esse Brasil que conhecemos é praticamente Brasil de cinco séculos de latifúndios. Tempo marcado pelas tensões entre os grandes tomadores de terra e os pequenos produtores que ocupam a terra".
"A concentração da terra nas mãos de poucos reflete um posicionamento político-governamental que muniu os latifúndios com instrumentos legais, tais como incentivos fiscais, a proteção da polícia e 'uma proteção vendida do Poder Judiciário'.
"O caminho proposto pela Comissão Pastoral da Terra para uma reforma agrária justa passa pela oficialização da reforma que o lavrador já está fazendo ao ocupar terras improdutivas eu devolutas.
Os invasores assistem a um ato religioso na gleba Santa Idalina em Ivinhema. A faixa ["Estamos fazendo Reforma Agrária] suscita uma pergunta: invadir terras é fazer Reforma Agrária?
Reportagem de Lúcio Pereira, fotos de Bruno Santarelli e texto final de Roberto Falconieri
SALPICADO de incidentes e vicissitudes diversos, o desenrolar dos acontecimentos históricos na vida de um povo segue por vezes rumos bem sinuosos, que a um observador comum passariam quiçá despercebidos por sua aparente desconexão com a realidade de todos os dias.
Assim, por exemplo, certas regiões ou localidades, até há pouco imersas nas sombras do silêncio e do esquecimento, veem-se alvo de repentinos fulgores, passando a adquirir proporções imensas, pelo caráter transcendental ou parabólico do que nelas se opera.
Determinados pontos do território nacional assumem, dessa forma, interesse por vezes excepcional, com vistas à explanação de uma tese ou refutação de um mito.
Ora, tal princípio encontra exemplificação concreta no Brasil contemporâneo, e muito particularmente em Ivinhema, município de Mato Grosso do Sul. A maneira pela qual aí se desenvolveram e se encadearam certos acontecimentos recentes sugere uma análise mais detida do episódio, que – reconstituído em alguns de seus traços essenciais – encerra lições cujo alcance último o leitor poderá avaliar.
Para a elaboração desse estudo tomamos como base observações colhidas por repórteres de "Catolicismo" enviados à região, bem como abundante noticiário da imprensa local e de outras regiões do País.
Mato Grosso do Sul, 1984...
No dia 29 de abril último cerca de mil "trabalhadores rurais" invadiram uma área de 18 mil hectares em Ivinhema, conhecida como gleba Santa Idalina, pertencente à SOMECO - Sociedade de Melhoramentos e Colonização S.A., que planejou e fundou o município há 20 anos. Essa invasão de terras da empresa, efetivada com o apoio de organismos eclesiásticos, viria agitar de forma inusitada a vida rural daquele Estado brasileiro.
O Mato Grosso do Sul, grande produtor de soja e arroz, possuidor de imenso rebanho vacum, tem-se desenvolvido consideravelmente nas últimas décadas. Grande número de seus fazendeiros veio de Estados sulinos, notadamente Rio Grande do Sul e Paraná. Na medida em que vão sendo cultivadas todas as terras disponíveis, os elementos dotados de mais iniciativa acabam se deslocando para outras regiões interioranas, chegando até Rondônia, Amazonas ou Pará, numa marcha para o Norte, análoga à "corrida para o Oeste" que marcou a História dos Estados Unidos, no século passado.
Campo Grande, a capital, conserva ainda aspectos da prosperidade dos anos 70, época do chamado "milagre brasileiro": casas amplas e bem cuidadas, ruas largas nas quais transitam automóveis e veículos rurais em quantidade. Dir-se-ia que nada indica um ambiente com prenúncios de convulsão social.
Nas igrejas de Dourados, por sua vez, não se vêem manifestações salientes de progressismo. As imagens de Santos são, em geral, tradicionais, características de decoração segundo o estilo anterior ao Concílio Vaticano li, coexistindo embora - é forçoso reconhecer - com inovações de cunho simplificador e "miserabilista" das novas correntes litúrgicas...
Não se veem apelos à invasão de terras, nem folhetos incendiários incriminando os proprietários rurais. Surpreende encontrar na Catedral uma advertência do Bispo de Dourados, D. Teodardo Leitz:
"Os agentes da associação TFP, Tradição, Família e Propriedade, querem ser católicos, mas não são aceitos pela grande maioria dos Bispos católicos do Brasil; causam muita confusão na Igreja".
Comodamente, D. Leitz abstém-se de expor razões doutrinárias para justificar essa mal disfarçada "excomunhão"...
Procedentes de uma dezena de localidades de Mato Grosso do Sul, de outros Estados e até do Paraguai, cerca de 1.500 pessoas – em sua grande maioria, homens – invadiram a Fazenda Santa Idalina.
A ocupação ilegal comportou fases de certa audácia, quando os posseiros deram mostras de habilidade pouco comum e excelente coordenação. Sabe-se, por exemplo, que se serviram de 25 caminhões, uma lancha com cabo de aço para atravessar o rio Guiraí, e um velho automóvel. Um dos caminhões utilizados transportou uma ponte pré-fabricada que seria suspensa por cabos de aço sobre o rio Guiraí. Sua travessia é necessária para o acesso à gleba escolhida.
Devido às condições desfavoráveis do terreno, o estaqueamento não suportou o peso da ponte, cuja instalação ficou cancelada. Correndo certo risco, os que sabiam nadar atravessaram o rio a nado, enquanto outros invasores fizeram uso de bote, durante toda a madrugada de domingo e boa parte da manhã de segunda-feira.
Segundo informações de pessoas que trabalham em fazendas de propriedade da SOMECO, um certo número de pessoas já estava desde a sexta-feira, dia 27 de abril, trabalhando na área de seis mil alqueires invadidos ("O Panorama", Dourados, 5-5-84).
Como as estradas de acesso se achavam em situação muito precária, os invasores tiveram que abrir picadas no meio da mata, utilizando apenas facões e foices. Um detalhe, notado por repórteres que estiveram no acampamento, deve ser levado em conta: as barracas, foices e machados eram novos.
Após a travessia do rio Guiraí, para alcançar o local do acampamento era necessário caminhar aproximadamente três quilômetros, através da picada.
Três rapazes "bem instruídos" explicaram aos repórteres do diário de Campo Grande, "Correio do Estado" (65-84) que, dos 25 caminhões que se dirigiam para a área invadida, somente 21 conseguiram passar antes que a polícia interviesse. Quatro caminhões, que transportavam cerca de 300 pessoas, foram interceptados.
"A Secretaria de Segurança Pública foi informada pelo Delegado do INCRA em Mato Grosso do Sul, Décio Cestari, com três dias de antecedência, que estava sendo preparada uma invasão e que esta possivelmente ocorreria em área da SOMECO", afirmou o titular daquela Pasta, Aleixo Paraguassu Neto, em entrevista à imprensa. A partir desse momento, instalaram-se barreiras por parte da Polícia Militar.
"Essas barreiras detiveram alguns caminhões. Alguns voltaram", declarou Paraguassu. Um grupo de policiais comandados pelo oficial Lacerda parou cerca de mil pessoas que declararam estar-se dirigindo para terras devolutas do Estado. Diante dos argumentos da autoridade policial, esses colonos vindos de Itaquiraí, Taquarussu, Mundo Novo e mesmo do Paraguai afirmaram que entrariam "custe o que custar" ("Jornal da Manhã", Dourados, 17-5-84).
Por outro lado, o Prefeito de Ivinhema, Luiz Saraiva, logo que soube da notícia, reuniu-se com autoridades religiosas, rumando de imediato ao local, acompanhado pelo Vigário de Ivinhema, Padre Volmir, e três outros sacerdotes.
Leiamos o depoimento do Vigário, após a "visita" aos invasores: "Lá, naquela mata fechada não havia homens violentos nem com más intenções, mas sim homens e mulheres que acreditam em Deus e seu grande milagre através da Terra". Perguntado sobre qual seria a posição da Igreja neste impasse, respondeu que "seria levar apoio espiritual àquelas almas que ali se encontram, sem contudo poder congregar (sic!), ansiosos em prosperar, trabalhar a terra para no futuro poder enfrentar de cabeça erguida as crises maiores que terão pela frente, e ver seus filhos crescerem como rebentos de oliveira ao redor de suas mesas" ("O Panorama", Dourados, 5-5-84).
A imagem é poética. Cabe-nos, entretanto, perguntar se diante da violação do direito de propriedade - que constitui pecado contra o 7º e 10º Mandamentos da Lei de Deus, a única atitude de um sacerdote seria evocar imagens líricas como forma de justificar o ato delituoso. Aliás, o Pe. Volmir parece excluir essa caracterização, pois acrescentou, a seguir, que "a Igreja não se posiciona contra ninguém, nem tampouco põe em pauta [note-se o ambíguo da expressão; não nega, mas não considera também] a legitimidade da terra, mas se for da vontade de Deus, que se faça justiça em favor destes infelizes".
Ou seja, ao considerar aprioristicamente que a justiça deveria favorecer os invasores, concedendo-lhes a posse da terra, o sacerdote parece negar, de modo implícito, o próprio direito de propriedade.
O Prefeito, por seu lado, declarou: "Pude ver o verdadeiro valor do homem que quer tirar proveito da terra, irrigando-a com seu próprio suor. Levei meu apoio como chefe do Executivo Municipal e como ser humano que somos (sic!). Não quero com isso dizer que os apoio numa invasão, pois a mim não pertence esta decisão, mas sim à Justiça, mas os apoiarei, no tocante à saúde .... e não os deixarei passar fome" ("O Panorama", Dourados, 5-5-84).
Por ocasião de uma reunião de Prefeitos sul-matogrossenses, realizada em Ponta Porã, nos dias 4 e 5 de maio, o Prefeito de Ivinhema solicitou aos companheiros que criassem, em seus respectivos municípios, comissões assistenciais para coleta de alimentos e remédios em favor dos ocupantes.
Após esse apelo, entidades estudantis movimentaram-se com vistas à organização do Comitê de Auxílio aos "Sem Terra", recurso eficaz para tornar viável o prolongamento da ocupação...
D. Teodardo Leitz, após a Missa celebrada para os invasores de lvinhema, na casa de Cursilhos de Cristandade, em Dourados, concede a palavra a uma das oradoras.
Quando ocorreu a invasão, o Bispo de Dourados encontrava-se em Itaici, participando da Assembleia Geral da CNBB. Não hesitou em abandonar a reunião, deslocando-se imediatamente para Ivinhema, onde chegou na quarta-feira, dia 2 de maio, a fim de orientar pessoalmente toda a atividade da Igreja em apoio aos ocupantes da gleba.
No primeiro encontro com representantes da Pastoral da Terra, D. Teodardo Leitz afirmou que a invasão era de seu conhecimento 15 dias antes de ser efetivada. Ele disse que foi procurado em sua casa por um grupo de boias-frias que relatou todo o plano de entrada na propriedade: "Não contei isso a ninguém porque me pediram segredo". Depois, observou: "Mas se me tivessem pedido conselho, diria para não fazerem isso. A invasão foi um ato perigoso de grande ousadia. Perguntei a eles: como vocês vão alimentar-se? E eles me responderam simplesmente que as comunidades cristãs se encarregariam disso" ("O Panorama", Dourados, 4-5-84).
Note-se que o Bispo Diocesano não fez nenhum reparo à ilegalidade da ação em si mesma considerada, mas tão somente ressalvas de caráter estratégico ou logístico.
A solicitude episcopal em favor dos invasores, contudo, não se detém aí. Na "Carta aberta ao povo de Deus", que fez