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Piquetes: o início da greve "espontânea'

2. Greves e piquetesA greve, proclamada "espontânea", teve início com a formação de piquetes que bloquearam as vias de acesso a Guariba por volta das 5 horas da manhã. Os caminhões que deveriam conduzir mais de 10.000 trabalhadores para os canaviais foram interceptados e obrigados a retornar à cidade.

O trabalho consistia não só em impedir que os trabalhadores furassem a greve, dirigindo-se aos canaviais. A tarefa mais importante era conquistar adesões em maior número possível, para então estourar a revolta. Tal proselitismo teria começado na noite anterior (de segunda-feira), no bar de propriedade do vice-prefeito de Guariba. Nessa ocasião, ter-se-ia espalhado a palavra de ordem de que terça-feira seria o "dia negro". O próprio vice-prefeito, João Evangelista, teria concitado os operários a paralisarem os trabalhos ("Folha de S. Paulo", 16-5-84).

Os trabalhadores que aderiram à greve (em torno de 2.000), ou mesmo curiosos, dirigiram-se para a praça da Matriz.

Aí, uma vez mais, aparece a organização, pois este ponto seria estratégico para o desenrolar da agitação. Nesta praça, em pontos diferentes, estão localizados os escritórios da Sabesp e o supermercado, ambos alvos de depredações.

Cochicho e "aquecimento", rumo ao quebra-quebra

3. Comícios, passeatas, quebra-quebras, invasões de imóveis urbanos e rurais. Declarações de autoridades civis e eclesiásticas simpáticas à agitação.

Infelizmente não é possível saber o que os trabalhadores e piqueteiros falaram durante a permanência na praça da Matriz. Não há notícias de comícios. Aliás, não poderia haver, pois se a greve era "espontânea", quem discursasse revelaria liderança ou, pelo menos, intenção de liderar. Tudo leva a crer que a operação de "aquecimento" tenha sido realizada através de cochichos e comentários.

Depois de algum tempo, cerca de 100 pessoas (note-se o número insignificante) dentre os 2.000 trabalhadores aglomerados, arrombaram o prédio da Sabesp, quebraram móveis e atearam fogo ao edifício.

Em seguida, uma multidão de mil pessoas dirigiu-se ao depósito e casa das bombas da companhia de águas, distante alguns quarteirões. Lá chegando, arrombaram o edifício, destruindo-o quase inteiramente, e atearam fogo a dois veículos da empresa, estacionados no local.

Logo após, por volta das 10 horas, os depredadores retornaram à praça da Matriz. Ao passar diante do principal supermercado da cidade (pertencente a um comerciante acusado de cobrar juros por contas atrasadas), alguém "sugeriu" aos gritos que se saqueasse o estabelecimento. Em pouco tempo o edifício foi depredado e saqueado. (Curiosamente, este saque não diferiu muito dos anteriormente ocorridos em supermercados nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro).

Estavam colocadas as condições para atribuir à fome a deflagração da greve, e a agitação, pouco a pouco, foi ganhando proporções.

Até este momento, a polícia não havia realizado nenhuma intervenção séria. A guarnição da Polícia Militar da cidade - composta de 16 homens, dos quais somente 12 estavam em serviço - tentou impedir, sem sucesso, o saque do supermercado. Somente com a chegada de 200 outros policiais, já por volta das 11 horas, iniciou-se a repressão contra os manifestantes.

A ação policial começou na praça da Matriz, com lançamento de bombas de gás lacrimogêneo contra os trabalhadores ali reunidos. Em seguida, a repressão foi orientada contra os que depredavam o supermercado, dando lugar a violenta escaramuça entre a polícia e os agitadores.

Nesse confronto houve troca de tiros, ficando 20 pessoas feridas à bala, entre as quais dois policiais. Um operário aposentado, que assistia à contenda, foi atingido por um projétil na cabeça, vindo a falecer.

A agitação já tomava proporções dramáticas. A tática havia alcançado êxito.

A existência de agitadores armados de revólveres dificilmente se concilia com a hipótese de ter sido espontânea a agitação. Revela, isto sim, a disposição dos organizadores de levar a manifestação até suas últimas consequências. Simples grevistas, reunidos à última hora, normalmente não tomam tais precauções em matéria de armamentos.

Dispersada a manifestação, foi restabelecida a calma em Guariba, momentaneamente.

Boatos, paralisação e pânico

4. Paralisação de transportes coletivos, paralisação de trânsito, boatos, fechamento do comércio.

A depredação dos prédios da Sabesp e o saque ao supermercado haviam difundido o pânico e paralisado o trânsito na cidade. O comércio manteve-se em parte fechado, ou funcionando à meia-porta e com precaução. Boatos anunciavam que no dia seguinte, caso os usineiros não atendessem às reivindicações dos canavieiros, os demais estabelecimentos comerciais - lojas e supermercados - seriam depredados e saqueados.

Ademais, para aumentar o pânico na cidade, foi interrompido o fornecimento de água. Isto se deu porque, por ocasião da depredação da casa de bombas da Sabesp, os agitadores deixaram ao lado do reservatório de água embalagens vazias de veneno - duas de BHC e uma de formicida Dinagro ("Folha de S. Paulo", 16-5-84).

No início da noite, um outro acontecimento viria também espalhar o pânico, só que agora entre os usineiros. Como forma de pressioná-los visando à capitulação, ateou-se fogo à pequena parcela de um canavial.

Nessa mesma noite, após reunião, os usineiros resolveram reativar o corte de cana no sistema antigo (conhecido como cinco ruas).

Surgem "líderes improvisados"

O acontecimento mais importante do segundo dia de greve foi, sem dúvida, a realização da assembleia de trabalhadores. Esta havia sido convocada no dia anterior. Somente dois mil dos dez mil cortadores de cana compareceram ao encontro.

Nessa concentração, os presidentes dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Jaboticabal e Araraquara – respectivamente Benedito Magalhães (que trabalha em conjunto com o Pe. Braghetto, da CPT) e Hélio Neves (ligado ao PCB) –apareceram como líderes capazes de mediar entre grevistas e usineiros.

Na referida assembleia foi anunciada a capitulação dos usineiros, que na noite anterior haviam aceito o retorno do corte de cana ao sistema pleiteado.

Alcançada essa mudança no sistema de corte de cana e destruída a Sabesp, dir-se-ia que a greve cessaria. Pelo contrário, ela continuaria.

Benedito Magalhães passou a explicar aos trabalhadores rurais as novas reivindicações da classe.

É interessante notar que, até este momento, o único motivo apresentado para a deflagração da greve era a mudança do sistema de corte da cana (além do aumento das taxas de água, considerada mero pretexto). De repente, surgem outras tantas reivindicações - em número de aproximadamente vinte - que os próprios grevistas não conheciam.

O presidente do sindicato de Jaboticabal

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Mesa da sessão realizada no auditório da "Folha de S. Paulo". em 7 de maio último. Participaram do debate o Secretário do Trabalho, Almir Pazzianotto (2º da esquerda para a direita) e o Pe. José Braghetto, Secretário da CPT-SP (o 5º).

Assembleia dos canavieiros no dia 17 de maio, em Guariba. Discursando no final, o Pe. Braghetto declarou: "A guerra continua".


SECRETÁRIO PAZZIANOTTO, SIMPATIZANTE DA CPT, CONSIDERA VIOLÊNCIA NECESSÁRIA

O DEPUTADO Almir Pazzianotto (PMDB), Secretário do Trabalho do Estado de São Paulo, foi o mediador entre usineiros, industriais, proprietários e trabalhadores rurais para o estabelecimento dos acordos de Jaboticabal e Bebedouro, que fizeram cessar algumas agitações... e ocasionaram outras.

Antigo advogado de causas trabalhistas, Pazzianotto vem apoiando desde longa data movimentos reivindicatórios de várias naturezas. Desempenhou importante papel na ratificação de acordos entre o Governo Estadual e os trabalhadores "desempregados" que, no ano passado, armaram acampamento diante da Assembleia Legislativa paulista. Apoiou ainda a realização do Conclat (Congresso Nacional da Classe Trabalhadora) de São Bernardo do Campo (SP), em 25/26-8-83, ocasião em que se fundou a CUT (Confederação Única dos Trabalhadores).

Por todas essas circunstâncias não causou surpresa que, logo após o início de sua mediação nos conflitos entre proprietários e trabalhadores rurais, o secretário Pazzianotto tenha hipotecado irrestrita solidariedade a estes, comentando com alegria a ratificação do acordo: "Sem dúvida, foi uma grande vitória dos trabalhadores rurais" ("Folha de S. Paulo" 18-5-84).

Para a CPT, só elogios

Interrogado durante o debate realizado no auditório da "Folha de S. Paulo", em 7-6-84, se teria elogios ou reparos a fazer à atuação da CPT junto aos trabalhadores rurais, Pazzianotto respondeu: "Só posso elogiar. Eu só devo elogiar o trabalho de conscientização do homem do campo".

E continuou, narrando suas experiências com a atuação da CPT:

"Eu fui encontrar um padre - que eu não sei se é ou não da pastoral operária, da pastoral da terra - trabalhando junto àquele pessoal lá do Pontal do Paranapanema. Era o padre... [chamado José Antonio, informa o Pe. Braghetto]. O padre teve lá uma atuação muito grande, uma atenção, uma dedicação incrível junto àqueles trabalhadores.

"Fui encontrar o Pe. Braghetto lá em Guariba. E ele até fez uso da palavra, falou aos trabalhadores durante a assembleia. Depois participou de uma reunião - onde eu estive - no Sindicato dos Trabalhadores, dias depois. Foi interpelado por fazendeiros que estavam ali, que acharam que a interferência dele era indevida etc. Até pediram [os fazendeiros] minha opinião. Eu disse que não, que não era [indevida].

"Isto é um problema de relacionamento da Igreja com o trabalhador. Cabe-me só elogiar uma atitude tão desprendida daqueles que vão ao campo e querem ver esse trabalhador organizado, esse trabalhador realizado nas suas aspirações, nos seus objetivos".

A violência é por vezes uma necessidade

No mesmo debate na "Folha de S. Paulo", o Secretário do Trabalho do Estado de São Paulo fez algumas apreciações sobre o uso da violência nas recentes agitações:

"Em Guariba, em Bebedouro e em outras cidades, em Novo Horizonte, dias atrás, os trabalhadores rurais estavam em greve. E mais do que em greve. ....

"Eles agiram de uma maneira corajosa, viril, heroica. Eu acredito que se houvesse realmente um confronto, muitos deles morreriam. .... Não estavam brincando. .... Eles estavam ali para conquistar alguma coisa. E, se fosse necessário, eles iriam se confrontar com a polícia. ....

"Felizmente, felizmente, as cenas de violência, diante da proporção do movimento, foram mínimas.

"Foram momentos de grande tensão, de grande violência. E eu tenho certeza [de que] se não tivesse ocorrido essa violência, se essas coisas não tivessem acontecido, nós íamos escrever artigos na imprensa mais alguns anos - iríamos fazer algumas dissertações etc., longas entrevistas - e não íamos chegar ao acordo.

'Porque num determinado instante – disto a História está povoada de exemplos –, ou acontecem essas coisas ou não se avança.

"Felizmente, em Guariba, Monte Alto, foi isso. ....

"Houve violência. Lamentavelmente foi preciso que existisse violência para que se chegasse a esses acordos".

Só o medo fez proprietários cederem

Como o Pe. Braghetto, o Secretário Pazzianotto acredita que os acordos de Guariba não são definitivos.

"Os acontecimentos de Guariba precipitaram o encontro de uma solução, que ainda é uma solução tímida, primeira, tosca e que precisa ser aperfeiçoada.

"E aí o acordo foi possível - eu repito aqui as palavras do meu inspirador, que é o deputado [Waldyr] Trigo - as coisas foram possíveis porque os empresários ficaram com receio de perder toda a colheita de cana. Eles tiveram medo - e a palavra exata é esta - de que a situação escapasse ao controle de qualquer um. Porque não haveria - vamos admitir aqui - não haveria força capaz de controlar um movimento que se espalhasse por uma área de milhares de quilômetros quadrados.

"E o canavial é altamente inflamável. Ele pega fogo rapidamente. .... E foi esse o fator que mobilizou a classe patronal e a levou à mesa de negociações para dizer: 'Olhe, viemos aqui para negociar'".

E acrescentou em tom jocoso: "E negociaram com uma rapidez verdadeiramente supersônica. Foi incrível".


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