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| Guariba | (continuação)

iniciou a leitura das novas reivindicações, mas não conseguiu fazer-se entender pelos trabalhadores. Chegou mesmo a reconhecer que não as compreendia bem.

O presidente do sindicato de Araraquara, Hélio Alves, desincumbiu-se da leitura. Aplaudido pelos grevistas, terminou por proclamar: "Vamos continuar na luta até destruirmos os usineiros e repartirmos as terras deles entre vocês" ("Veja". 23-5-84).

Alguma conotação ideológica nesta afirmação feita por um sindicalista ligado ao PCB? Alusão à Reforma Agrária socialista? Talvez algum equívoco, pois a greve de Guariba era fruto do descontentamento e da "espontaneidade", sem conotações ideológicas...

O rebanho agitado encontra pastores

Os trabalhadores de Guariba continuaram a greve. Agora não estavam mais órfãos de "líderes". Benedito Magalhães (com a colaboração da CPT) e Hélio Alves (amigo do PCB) ali estavam para auxiliá-los. Se estes não eram os dirigentes naturais, os organizadores e impulsionadores do movimento grevista, pelo menos conquistaram, sem qualquer contestação, a posição de mediadores. E é curioso notar a facilidade com que foram aceitos como tais.

De repente, os ferozes e incontroláveis boias-frias de Guariba, considerados rebanho sem pastor, reúnem-se como dóceis ovelhas em torno de dois pastores singulares: dois líderes sindicalistas (que sempre afirmaram não estar dirigindo a agitação), um ligado à Comissão Pastoral da Terra e outro ao PCB.

Pode-se dizer que as ovelhas reconheceram seus pastores.

Apoio da capital

6. .... Apoio Iogístico – o encaminhamento de grupos populares para participar da desordem.

A Assembleia dos trabalhadores contou com a presença de políticos e sindicalistas da capital paulista. Estiveram presentes os deputados Eduardo Jorge, Anísio Batista e José Cicotti (PT), os sindicalistas Osvaldo Bargas, da CUT de São Bernardo do Campo (SP) e Jorge Coelho, do Sindicato dos Químicos de São Paulo.

Comentou-se que esses políticos do PT e sindicalistas (que são apoiados pelo PC do B) foram a Guariba para apoiar e dirigir a greve, a qual, segundo constava, desenvolvia-se sem líderes. Não tiveram sucesso, pois sua ajuda não foi aceita. Esta seara já tinha dono...

Noticiou-se também que a "Turma de Diadema" (composta por políticos e sindicalistas do ABC paulista) se deslocou até Guariba - e posteriormente a outras cidades onde havia conflitos - tentando organizar um fundo de greve, através da obtenção de alimentos e de qualquer tipo de ajuda para os manifestantes. Teria mesmo tentado organizar greves em outras localidades.

A este tempo, a greve de Guariba ia perdendo um pouco da sua "espontaneidade", já apresentando ser um movimento organizado.

Pe. Braghetto enfrenta a polícia

Neste segundo dia de greve (estamos ainda narrando os acontecimentos do dia 16, quarta-feira) ocorreram ainda pequenas escaramuças entre policiais e agitadores. Estes conseguiram paralisar o trabalho em várias usinas da região, através de piquetes. A polícia só dissolveu os piquetes que se formaram na cidade. O comércio permaneceu de portas semicerradas, temendo depredações. Os postos de gasolina não abriram e os colégios mantiveram-se fechados.

O Pe. Braghetto, que chegou às 12 horas deste dia em Guariba (proveniente de Ivinhema - MS, onde participara de "reuniões" com os invasores da Fazenda Santa Idalina), narrou, durante o debate na "Folha de S. Paulo", em 7-6-84, como auxiliou os trabalhos do sindicato e defendeu da repressão policiar os manifestantes:

"Nossa presença em Guariba foi no sentido de acompanhar os fatos, os acontecimentos, e procurar naquele momento difícil dar uma palavra de incentivo a uma organização mais... talvez mais pacífica.

"Embora a questão da violência .... ela vem mais do outro lado [da polícia], sempre vem do outro lado. Foi muito forte a repressão policial. A gente olhava muito este aspecto.

"Inclusive, em momentos assim difíceis, dramáticos, onde a PM entrou mesmo jogando bomba nas casas, num bairro mais pobre [habitado por boias-frias], a gente teve que intervir para pedir que o pelotão se retirasse da área, porque a presença dele estará irritando o pessoal". E acrescenta: "A gente mesmo foi agredido pela PM".

Essas declarações do Pe. Braghetto provam que ele desempenhou papel de orientador dos grevistas, nesta metade do segundo dia de greve. E assim justifica sua atitude:

"No fragor da batalha, há momentos em que você se vê diante do povo, e alguma coisa você tem que dizer. O [presidente do sindicato] estava ocupado numa reunião lá com o Secretário [Almir Pazzianotto] e os patrões. O funcionário não tem aquela .... às vezes não sabe o que dizer" (Debate na "Folha de S. Paulo", 7-6-84).

E como o presidente do sindicato, Benedito Magalhães, "estava ocupado numa reunião" e o 'funcionário não sabe o que dizer", o Pe. Braghetto arvora-se na direção do sindicato... e da greve.

As ovelhas reconheceram também esse pastor...

Um pouco mais adiante na sua exposição, já narrando a atuação que desempenhou na greve ocorrida na cidade de Monte Alto - onde fora "dar urna força para o sindicato, [pois] o presidente se sentiu mal e precisou se retirar" - o Pe. Braghetto procura remendar e justificar sua familiaridade, digamos assim, com greves e sindicatos:

"Os ânimos estavam bem exaltados. Não ouviam [os manifestantes] nem a palavra do sindicato. Muito menos a gente também. Bem, o movimento foi como um rolo compressor que foi levando de roldão sindicato, Igreja, quem quer que estivesse na frente" (Debate na "Folha de S. Paulo", 7-6-84).

Pelo menos, o secretário da CPT não havia esquecido a palavra de ordem: "A greve era espontânea, ninguém a controlava ou dirigia".

E para demonstrar que não estava sozinho nesta luta, o Pe. Braghetto acrescenta: "Então, a assistência da gente foi um pouco difícil nesse sentido, bastante penosa. E a gente recebeu apoio do Bispo da Diocese, que felizmente soube compreender a atuação nossa na área" (Idem).

Bispos apoiam a revolta. Solicitada a Reforma Agrária

6. Apoio da esquerda "católica": comparecem e se pronunciam favoravelmente Bispos, sacerdotes ou religiosas: fazem apelos "prudenciais" a que pessoas e instituições visadas pela greve cedam: outros apelos são inflamados (entrevistas, discursos, etc.). Apoio logístico - encaminhamento de grupos populares para participar da desordem.

Como o Pe. Braghetto declarou, todo seu trabalho na região era apoiado pelo Bispo de Jaboticabal, D. Luiz Eugênio Perez.

Com efeito, esse Prelado fez publicar no jornal diocesano "O Ascensor" (de 1-6-84), artigo onde concede apoio ao secretário da CPT e hipoteca solidariedade à greve dos trabalhadores rurais.

Depois de observar que "os trabalhadores rurais se mostram hoje muito mais esclarecidos e conscientizados", e de considerar pequenas reivindicações que fizeram, D. Luiz afirma que eles "poderiam ter exigido mais".

Logo adiante declara: "De fato, a Igreja, oficialmente, não se fez presente diretamente nos acontecimentos. Depois de iniciada a greve, o coordenador da CPT participou dos entendimentos procurando ser mediador e pacificador entre as partes conflitantes e não instigador de tumulto e agitação". E acrescenta a seguir: "De tudo se conclui que é necessária uma ação mais efetiva da pastoral nesta área, de termos entre os trabalhadores agentes bem formados e preparados para atuarem com critérios evangélicos nestas oportunidades".

Ou seja, D. Luiz Perez considera que a CPT deve intensificar sua ação, a fim de aproveitar melhor outras oportunidades, outras greves, onde os trabalhadores "exijam mais".

A revolta de Guariba foi também apoiada pelo Bispo de Assis. No mesmo dia (16-5-84) em que o Pe. Braghetto chegava a Guariba, D. Antonio de Souza prestava declarações à imprensa. Seu pronunciamento é interessante, sobretudo pelos vários matizes que apresenta.

Após afirmar que a insatisfação reinante no País constitui a principal matéria-prima" para a revolta, o Prelado acrescenta otimista "Não acredito que o movimento de Guariba atinja outros pontos do Estado, porque o povo brasileiro se caracteriza principalmente pelo pacifismo". Logo em seguida, D. Antonio adverte: "Mas a insatisfação é crescente, e se acentua na medida em que as leis não favorecem a fixação do homem à terra, enquanto a crise econômica reduz o nível de vida do trabalhador. Assim, é difícil o povo ficar contente" (principalmente se "conscientizado" pela CPT, acrescentaríamos nós). Mas o caminho para sua reivindicação estava preparado, e o Bispo de Assis solicita ao governo federal "que sinta a necessidade urgente de promover uma reforma agrária estruturada com base no Estatuto da Terra. Porque apenas uma reforma agrária correta .... poderá superar o descontentamento popular no campo" ("Folha de S. Paulo", 17-5-84).

Ou seja, a greve de Guariba encaixa-se dentro da luta empreendida pela Comissão Pastoral da Terra (órgão subordinado à CNBB) para a implantação da Reforma Agrária no Brasil.

Reforma Agrária é a meta da agitação

Interrogado no auditório da "Folha de S. Paulo". em 7-6-84, se a CPT pretende continuar a "conscientização" do homem do campo depois do acordo firmado entre usineiros e cortadores de cana, o Pe. Braghetto respondeu:

"Eu acredito que o trabalho da CPT continua, na medida em que a organização dos boias-frias tende a ser reforçada. .... Acredito que não para num acordo que, se a gente for ver, tem que

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POLICIA AGE COM LENTIDÃO

INFELIZMENTE, a reação da Polícia Militar às agitações ocorridas no interior de São Paulo foi lenta e, no princípio, ineficaz.

Tal atitude da corporação militar plausivelmente terá sido condicionada pela impostação de algumas autoridades governamentais diante da revolta dos canavieiros.

O governador Franco Montoro, por exemplo, em suas primeiras declarações à imprensa, atribuiu a revolta inteiramente à fome, não externando qualquer preocupação por eventuais conotações ideológicas que poderiam estar na raiz do movimento grevista. O Chefe do Executivo paulista considerou-o apenas "um conflito entre empregados e empregadores" ("O Estado de S. Paulo". 16-5-84).

O Secretário do Governo, Roberto Gusmão, embora viesse depois a reconhecer a infiltração de "pessoas estranhas" (que não identificou), afirmou nos primeiros fragores da agitação que a greve havia sido unicamente provocada pela fome dos trabalhadores e "ganância de alguns usineiros" ("Folha de S. Paulo", 16-5-84).

O desconhecimento do verdadeiro espírito da agitação e de seus objetivos por parte do Governo Estadual talvez tenha sido o fator determinante da demora da polícia em reprimir a agitação. Lentidão esta que proporcionou aos agitadores a possibilidade de espalhar o pânico na cidade de Guariba e de projetar o espectro da agitação por vasta área do território nacional.

Com efeito, a possibilidade de estourar uma revolta em Guariba não era desconhecida da Polícia Militar. O Major Fábio, subcomandante do 13º BPMI, de Araraquara, declarou: "Nós já pensávamos em mandar reforço policial à cidade para evitar distúrbios, mas infelizmente eles agiram antes, além do que os saques não estavam previstos" ("O Estado de S. Paulo", 16-5-84).

Essa justificativa do Major Fábio, no entanto, perde consideravelmente sentido uma vez que o proprietário do supermercado saqueado, Cláudio Amorim, alertou a polícia local com antecedência.

Os empregados de Cláudio Amorim souberam às 4 horas da manhã, através de informação dos próprios trabalhadores que se organizavam para a agitação, que estavam planejados saques e depredações na cidade. Avisado, o comerciante pediu proteção policial para seu supermercado. As 7 horas da manhã, por solicitação do comandante do destacamento militar local, confirmou o pedido por escrito.

Embora Araraquara fique a pouco mais de 50 km de Guariba, o reforço militar só chegou às 11 horas. Nessa altura, a Sabesp já havia sido depredada e o supermercado saqueado.

Uma intervenção antes de o movimento tomar corpo poderia ter evitado o confronto violento entre policiais e trabalhadores. Prova-o a posterior intervenção da polícia em outras cidades, quando agiu com relativa rapidez e firmeza, dissolvendo os piquetes grevistas.


BISPO E CPT APOIAM A GREVE DE GUARIBA

EM 23 DE MAIO, D. Luiz Eugênio Perez, Bispo de Jaboticabal, fez publicar uma carta circular na qual se solidariza com a greve de Guariba. Dela extraímos os tópicos seguintes:

"A deflagração das greves dos trabalhadores rurais (boias-frias) na região caracteriza-se pelo seu aspecto essencialmente popular, sem nenhuma interferência de elementos estranhos ao movimento".

"Esclarecemos que a Igreja não pode ficar omissa diante da opressão pela qual passam os trabalhadores rurais".

"A Igreja, e no caso a Comissão Pastoral da Terra diocesana, vem norteando suas ações num empenho de total fidelidade às Sagradas Escrituras e à Doutrina Social da Igreja, acompanhando com atenção a luta dos trabalhadores rurais e a ela se solidarizando. .... Assim deverá continuar" ("O Ascensor", Jaboticabal, 1-6-84).

A CPT de Ribeirão Preto, numa linguagem eivada do espírito de luta de classes, também hipoteca sua solidariedade à greve e ao Pe. Braghetto:

"Vimos por meio desta prestar nossa solidariedade aos boias-frias de nossa região, que numa demonstração de coragem, lutaram para impedir que a ganância dos usineiros os levasse à morte pela fome.....

"O Movimento contou, inclusive, com a solidariedade e presença da Pastoral da Terra do Estado de São Paulo, na pessoa de seu coordenador, Padre José Domingos Braghetto.

"Aqui lembramos de um documento-denúncia lançado pela Comissão Pastoral da Terra do Estado de São Paulo (CPT/SP) no ano passado, expressando o descontentamento dos boias-frias com este novo sistema de corte por sete ruas .....

"Esta voz dos trabalhadores, no entanto, não foi ouvida!

"Contudo, a Pastoral da Terra continuou sua missão junto ao homem do campo em nossa região.

"E não se podia fazer omissa numa hora tão angustiante quanto esta por que passamos, onde os boias-frias, não suportando mais sua miséria, apelaram para o recurso extremo que possuíam: a greve e o clamor por mudanças de forma organizada" ("O Ascensor", 1-6-84).

Nesse comunicado, a CPT, ao mesmo tempo que se considera "a voz dos trabalhadores", afirma que a greve foi realizada de "forma organizada".


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