| MATÉRIA DE CAPA |

CRISE FAMILIAR NA SOCIEDADE URBANA E INDUSTRIAL

Murillo Galliez

Ainda em nosso século, encontramos traços da antiga família patriarcal, como atesta a foto, publicada pela revista "L'Ilustration Française", de 10-10-1930. Sentada no centro (vendo-se uma jovem apoiando o braço no. espaldar de sua cadeira), está a anciã da qual proveio esta numerosa progênie, a família colombiana Arango.

MUITO SE TEM falado sobre problemas no relacionamento entre pais e filhos. "Crise da adolescência", "conflito de gerações" e outras expressões indicam que o convívio e as condições de vida intrafamiliares não atravessam uma fase de grande harmonia e entendimento.

O fato é que a instituição familiar está sofrendo um processo de desintegração, que se acelerou nas últimas décadas, entre cujas manifestações podemos constatar, por um lado, a diminuição do número de casamentos e, por outro, o aumento do número de divórcios, de famílias monoparentais, de uniões livres, de filhos ilegítimos, de práticas anticonceptivas, abortos etc.

A desarmonia observada entre os cônjuges e entre estes e os filhos faz parte dessa crise, que teve como fatores agravantes de grande relevo as transformações sociais ocorridas nos últimos duzentos anos, culminando com o estabelecimento de uma sociedade urbanizada. e industrial.

Nosso artigo procura mostrar como a passagem de uma sociedade agrária e rural, cuja família era organizada em bases patriarcais, à forma atual de sociedade industrial e urbana, em que a família se pulverizou e se constituiu em pequenos núcleos, tem prejudicado sensivelmente o desenvolvimento harmônico da criança e do jovem no próprio lar, e o bom entendimento que deveria haver entre pais e filhos.

Para isso recorremos a alguns textos de especialistas no assunto, que representam apenas uma pequena fração daquilo que gostaríamos de apresentar, mas que seria impossível dada a exiguidade do espaço disponível para um artigo.

Transformações sociais alteram estrutura familiar

Há vários fatores na civilização atual que subtraíram à família uma de suas funções mais específicas: a de educar. Dentre aqueles fatores, ocupa lugar de destaque a televisão.

"O relativo declínio na importância da vida rural, e a urbanização daquilo que dela ainda vive, constitui certamente uma das maiores reviravoltas na história cultural e institucional da humanidade. A redução da vida rural e de suas instituições a uma posição subalterna na civilização ocidental introduziu de fato uma nova época na história da humanidade" (1).

Essas transformações sociais afetaram profundamente as instituições tradicionais, entre as quais avulta, por sua posição singular e fundamental, a instituição familiar. O advento da sociedade urbana e industrial fez aparecer um novo tipo de família — a família nuclear — cujas características atuam poderosamente como fatores desencadeantes ou agravantes de crises familiares e de conflito entre as gerações.

A antiga família patriarcal

Nas sociedades de épocas anteriores, em que prevalecia o tônus próprio à vida rural, havia outras condições para o desenvolvimento harmônico da criança até a idade adulta, inexistindo praticamente a chamada crise da adolescência. Naquelas sociedades, orientadas por princípios estáveis e coerentes, a família era numerosa, patriarcal, hierarquizada, abrigando também parentes colaterais e abrangendo frequentemente três gerações. Nela a criança se sentia em segurança para resolver qualquer problema com os pais, sem ser necessário enfrentá-los diretamente, pois havia a possibilidade de recorrer à intercessão de vários parentes, como os irmãos mais velhos, tios, primos, avós etc., que atuavam como pessoas interpostas entre as partes conflitantes. Dessa maneira os litígios se diluíam e os problemas emocionais não atingiam uma fase mais aguda.

Nesse tipo de família a criança encontrava seus modelos e seus companheiros: "A família tradicional era capaz de proporcionar um certo número de adultos que poderiam servir como (...) modelos a serem emulados pelos jovens. Isto era possível, não só porque havia mais indivíduos na família, como também porque sua conduta e sua atuação no trabalho eram mais visíveis. (...) Na família tradicional grande, a criança geralmente crescia com pares que eram membros de seu próprio grupo familiar. Eram companheiros de jogos e não havia necessidade de sair da família para encontrá-los" (2).

Os problemas eram resolvidos dentro da própria família, em ambiente de compreensão e respeito: "Uma família na qual se respire unidade, compreensão, amor, sacrifício, comunidade de bens, solução de necessidades etc., tem a força de uma instituição que acolhe e ampara, não se pensando em solucionar fora de casa os conflitos que se apresentam, mas em apresentá-los e discuti-los no seio da família. Enquanto não chega à idade de intervir em todas as questões familiares, o adolescente procura resolver suas questões pessoais por si mesmo, mas em função das correções ou do beneplácito do pai, o qual, possuidor da tradição familiar, sabe proibir aquilo que não é conveniente. (...) A influência da família assim constituída tem grande fortaleza e cria o ambiente de respeito que, como poder moderador, evita muitos desmandos" (3).

Seriedade institucional do casamento

Um dos fatores mais poderosos no sentido de conferir solidez e estabilidade à família patriarcal era seu caráter público e institucional: "Antes, ao menos no Ocidente e desde Roma, a família era sobretudo unia instituição. Constituía-se, pública e formalmente, sobre o casamento, o qual se regia por normas religiosas, éticas, legais e consuetudinárias de grande vigência, que envolviam e transcendiam (...) os critérios, sentimentos, preferências e decisões privadas dos cônjuges, embora não os excluíssem necessariamente. Este caráter institucional dava grande solidez e estabilidade à família. Sua ruptura pública costumava ser legalmente inviável ou difícil e, quase sempre, objeto de condenação social. Os membros de uma família desfeita costumavam considerar o fato como um fracasso, um estigma e uma tragédia" (4).

A concepção de que o casamento não devia ser deixado ao capricho sentimental e afetivo dos futuros cônjuges prevaleceu até o final do século XVIII. E contribuiu poderosamente para a estabilidade das famílias e para o bem comum social. "Não se cogitava de perguntar aos futuros cônjuges sua opinião. O casamento era algo importante demais para isso. Era uma estratégia essencial para a sobrevivência da família. Não era por crueldade que se decidia que Aline não se casaria com José. O fato de eles se amarem ou não era sem importância em relação ao aspecto primordial, ou seja, a continuidade da família" (5).

"Nosso sistema moderno ocidental de casamento romântico é uma aberração curiosa relativamente recente, uma condição excêntrica das sociedades 'avançadas'. No passado (...) o casamento foi um mecanismo de primeira ordem para a coesão social e para a união de interesses e de grupos sociais conflitivos. (...) Ao considerar de forma geral o casamento através do tempo e do espaço, observamos que ele é típica e normalmente um acordo diplomático, e que é sempre, em certo sentido, um 'matrimônio de estado'. Seu propósito essencial é estabelecer uma aliança entre grupos sociais diferentes e com frequência opostos" (6).

Desenvolvimento normal da criança sem o fenômeno "adolescência"

Na sociedade patriarcal, "cada homem nasce para seu lugar. Nela a criança cresce na tradição da família, assumindo a ocupação de família, mantendo por toda a vida o status profissional familiar. Um jovem sabe para que nasceu e se ajusta mais ou menos naturalmente e inconscientemente. Porém, em nosso tipo de sociedade nenhum jovem sabe para que nasceu" (7).

O fenômeno "adolescência", com suas crises e problemas, é típico da sociedade moderna, inexistindo nas anteriores: "Esse fenômeno, surgido na Alemanha wagneriana, penetraria mais tarde na França, em torno de 1900. A 'juventude', que era então adolescência, iria tornar-se um tema literário e uma preocupação dos moralistas e dos políticos. (...) Daí em diante a adolescência se expandiria, empurrando a infância para trás e a maturidade para frente. (...) Assim, passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo" (8).

Assim, o aparecimento do fenômeno "adolescência" coincidiu com a eclosão do romantismo, com todas as distorções da realidade e todos os mitos por ele criados.

As sociedades das épocas pré-românticas, pré-industrializadas, desconheciam esses mitos e distorções com respeito ao desenvolvimento normal da criança em sua família. "Na Idade Média, no início dos tempos modernos, e por muito tempo ainda, nas classes populares as crianças misturavam-se com os adultos assim que eram consideradas capazes de dispensar a ajuda da mãe ou das amas. (...) A partir desse momento ingressavam imediatamente na grande comunidade dos homens. (...) Nosso mundo é obcecado pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância. Essa preocupação não era conhecida da civilização Medieval, pois para essa sociedade não havia tais problemas; assim que era desmamada, ou pouco depois, a criança tornava-se a companheira natural do adulto" (9).

O julgamento do magistério tradicional da Igreja

A sociedade antiga, rural, com suas famílias patriarcais, mereceu de Pio XII as seguintes palavras:

"Magnífico espetáculo, especialmente em algumas regiões, oferece aquelas

Exemplo de urbanismo massificante e nivelador é este conjunto de casas geminadas, no subúrbio de Daly City, em São Francisco (Estados Unidos). Tal conglomerado urbano é um reflexo natural da mentalidade criada pelo processo de industrialização intensiva.


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