| VIDAS DE SANTOS |

No convívio do Carmelo, martírio pouco conhecido de Santa Teresinha

Plinio Solimeo

Santa Teresinha aos 15 anos (janeiro de 1889), poucos dias após sua Recepção de Hábito, no Carmelo de Lisieux. O martírio na vida religiosa iniciava-se para a jovem noviça.

A JULGAR PELAS estampas com que a iconografia moderna comumente apresenta Santa Teresinha — cuja festa se comemora no dia 3 do presente mês —dir-se-ia que ela jamais teve um sofrimento sério na vida. Com seu meigo sorriso, teria passado pelo Carmelo como por radioso vale, a colher flores aqui, lá e acolá, sob o olhar complacente e enternecido de suas irmãs de hábito, até que, aos 24 anos, após rápida doença, voou para o Céu de onde passou a derramar uma chuva de rosas sobre a terra... Tudo muito enternecedor, tudo muito hollywoodiano! Entretanto, que deturpada noção de santidade isso inspira! E quão longe da realidade histórica.

Por isso convidamos o leitor a recuar no tempo e a penetrar no interior dos muros do Carmelo de Lisieux, enquanto aí vivia Teresa Martin.

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Desde que a epopeia teresiana começou a empolgar o mundo, um véu de descrição envolveu muitos dos fatos que se passaram naquele convento durante a vida da santa. Não negamos que essa discrição possa justificar-se em época muito próxima daquela em que os fatos ocorreram. Posteriormente, porém, o recuo do tempo dá ao historiador o direito, e conforme o caso o dever, de correr os véus, para que a verdade brilhe inteira aos olhos de todos. Ainda mais tratando-se de uma santa, cujo esplendor das virtudes só pode ganhar em nitidez quando sua vida é admirada sob todos os seus aspectos.

Fiéis a esta norma de conduta, hagiógrafos já vêm apresentando ao público traços ainda pouco conhecidos da vida de Santa Teresinha no Carmelo de Lisieux. E que, bem entendidos, só resultam numa maior glorificação de sua humildade, penitência e fortaleza. São alguns desses traços que neste artigo reproduzimos.

São eles necessários ainda para nos fazer conhecer certos aspectos da personalidade de Sór Teresa do Menino Jesus, deformados pela piedade falsa, romântica e açucarada que precedeu à impiedade atual. Para restabelecer a integridade dos

Em um Carmelo dividido, a perseguição

Para focalizar bem o problema, um pressuposto é necessário: a vida em comum, principalmente para religiosas de clausura, já é em si um constante martírio, mesmo em mosteiros fervorosos. O convívio constante vai fazendo emergir os efeitos do pecado original com toda sua crueza e prosaísmo, agravados pelas diferenças naturais de gostos, de aptidões, e sobretudo de educação e de cultura, que tendem a provocar constantes atritos de temperamentos e personalidades. Só a prática das virtudes e o espírito sobrenatural — frequentes até há pouco nos conventos católicos — podem fazer com que as almas se sobreponham a essas dificuldades.

Para não transformar o claustro num desses mundos fechados sobre si mesmos, em que as disputas de partidos com sua politicagem miúda, murmurações e críticas recíprocas costumam vicejar quando o primitivo fervor desapareceu, é necessária uma elevação contínua de vistas e um holocausto constante. Esse foi um dos grandes méritos de Santa Teresinha.

Assim, constatamos, logo de início, que no Carmelo de Lisieux "faltava-se notavelmente ao silêncio, à regularidade, e sobretudo à caridade mútua. Havia entre as religiosas lamentáveis divisões. A direção exercida na Comunidade originava em grande parte essas desordens", como declara uma companheira de Postulantado de Teresa (p. 183, n. 9).

Realmente, a Priora, Madre Maria de Gonzaga, era uma pessoa singular. Oriunda de pequena nobreza normanda, por seu porte, harmonioso timbre de voz e capacidade de empreendimento, cativou logo as demais religiosas, geralmente de classes mais modestas, de maneira a governar por vinte anos o Carmelo. Possuía, entretanto, sérias anomalias de temperamento que chegavam às vezes às raias da loucura (p. 173, n. 61). Passava subitamente da mais extrema alegria à mais profunda melancolia. E sobretudo era devorada pela obsessão do mando. "Fosse ou não fosse Priora, não tolerava que outra tivesse autoridade", lemos num depoimento (pp. 151-152, n. 5). E outro depoimento atesta que "cenas espantosas estalavam como uma tempestade a propósito de nadas, mas tendo sempre a inveja na sua origem" (p. 152, n. 6). Por isso, "a postura da Priora originava partidárias e partidos. A diplomacia e a lisonja se cultivavam bem", segundo uma declaração no processo (p. 150, n. 2), e "tudo era entregue ao capricho do momento. O bem durava pouco e à força de diplomacia e finura se chegava a desfrutar algumas semanas de uma situação precária", aduz ainda um elucidativo depoimento (p. 133, n. 14).

Naturalmente, as poucas carmelitas que não se prestavam a esse teor de vida e procuravam manter a regularidade e elevação próprias ao estado religioso eram as que mais sofriam. Entre estas, notadamente Santa Teresinha.

Sua irmã mais velha — Madre Inês de Jesus —, a primeira das quatro irmãs Martin a entrar no Carmelo, e que mesmo em vida da Santa chegou a ser Superiora, era o objeto mais direto dos ciúmes de Madre Maria de Gonzaga.

Atesta uma irmã que "muitas religiosas estendiam a ela, Teresa, a animosidade que sentiam contra o grupo das 'quatro irmãs Martin', como desdenhosamente chamavam a Sór Teresa e a suas irmãs. Este movimento de antipatia foi despertado por Me. Maria de Gonzaga que, sem embargo, havia feito tudo para favorecer a entrada das quatro irmãs na Comunidade. Mas seu caráter invejoso a fez arrepender-se amargamente desse passo. As qualidades superiores dessas súditas excepcionais lhe fizeram sombra e pôs tudo em obra para que a Comunidade não as apreciasse" (p. 295, n. 49).

Algumas carmelitas, como foi o caso de uma irmã leiga, descarregavam em Teresinha, a benjamim, seus ressentimentos. Rude, de origem humilde, com grande capacidade para o trabalho, mas de diminutos horizontes, essa irmã não cessava de atormentar a jovem Teresa, ainda postulante, por sua dificuldade natural para o trabalho braçal. Vendo-a, por exemplo, andar com sua habitual compostura, calma e tranquilidade, exclamava: "Vejam como anda! Não se apressa. Quando começará a trabalhar? Não serve para nada" (p. 210, n. 68). E açulava contra ela o desprezo de outras Irmãs também medíocres.

Acostumada ao afetuoso trato dos Buissonnets — residência onde antes vivia com sua exemplar família — sem ironias, sem insinuações mordazes, sem ditos ofensivos, a nova situação muito fazia sofrer aquela adolescente de 15 anos. Um dia ela chegou a desabafar com Me. Inês de Jesus: "'Ela (a tal irmã leiga) me perfurava com picadas de alfinetes. A pobre bolinha (ou "joguete do Menino Jesus", como ela própria se chamava) já não aguenta mais'; mostra por toda parte alfinetadas que a fazem sofrer mais do que se fossem grandes feridas" (p. 211, n. 72).

A animosidade da irmã leiga perdurou até a morte da Santa que, por sua vez e a seu modo, atendeu sua perseguidora curando-a instantaneamente de uma anemia cerebral, quando esta lhe osculou os pés já sem vida...

Os ciúmes de Me. Gonzaga

Não podendo ser reeleita para o Priorato após dois triênios sucessivos, Me. Maria de Gonzaga influíra favoravelmente para a eleição de Me. Inês de Jesus, "cujo caráter conciliador conhecia bem. Cria assim permanecer senhora e fazer agir a nova Priora segundo seus caprichos. Quando a viu tomar a autoridade, a fez sofrer mil perseguições" (p. 294, n. 46). E isso a tal extremo que "um dia uma Irmã, mesmo sendo a mais fervorosa de seu partido, testemunhando uma cena terrível, não pôde conter sua indignação: `Oh! Me. Maria de Gonzaga — disse - está muito mal fazer sofrer assim a vossa Priora'" (p. 294, n. 51).

É evidente que também Santa Teresinha não podia deixar de sofrer presenciando tais cenas. Declara sua Mestra de Noviças: "Testemunha às vezes das penosas dificuldades que Me. Maria de Gonzaga suscitava a Me. Inês de Jesus, já Priora, sofria cruelmente por isso a Serva de Deus, mas calava-se. Sem embargo, um dia me disse com o coração cheio de lágrimas: 'Agora compreendo o que sofreu Nosso Senhor ao ver sofrer sua Mãe durante a Paixão"' (p. 296, n. 52). Contudo, "a Serva de Deus soube tirar destas dificuldades uma ocasião de virtude enquanto algumas almas encontravam nisso um empecilho", declara-nos sua irmã Celina. "Neste transtorno geral, não se apartou jamais de sua união com Deus e do cuidado com sua perfeição pessoal" (p. 153, n. 12).

Nesses momentos críticos "deu prova de grande prudência para evitar tudo quanto pudesse agravar a situação já difícil", lemos no processo. "Procurava conciliar as coisas, acalmar os espíritos perturbados a fim de que voltasse a paz e as almas pudessem retomar sua vida interior tão frequentemente tumultuada" (p. 152, n. 8). E, a uma de suas noviças que se indignava com essa situação, dizia: "'Deus, que permite o mal, tirará daí

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