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Rothenburg: evocação pitoresca do quotidiano medieval

A IDADE MÉDIA assistiu à construção de suntuosas catedrais e de castelos incomparáveis. Discorrendo sobre aquela época, em que se forjou a civilização cristã ocidental, é natural que se mencione essas esplendorosas obras arquitetônicas, frutos, em larga medida, da ação civilizadora da Igreja.

Entretanto, se quisermos formar uma noção mais abarcativa do que foi a vida quotidiana do homem medieval, sobretudo a do pequeno comerciante e a do trabalhador manual urbano, devemos pensar não só em catedrais e castelos, mas numa miríade de manifestações ligadas diretamente a essas duas categorias profissionais. Rothenburg é, nesse sentido, um exemplo magnífico.

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Situada em estratégico planalto acima do rio Tauber, a noroeste da Alemanha, a pequena cidade deve sua fundação aos condes de Rothenburg, iniciadores, no século X, do povoamento da região.

Vista de fora, a localidade é protegida por muralhas e torres como uma fortaleza. Por dentro, como bem evidencia nossa primeira ilustração, podemos discernir, em alto grau, a poesia e arte que caracterizaram as aldeias medievais, na Alemanha. A cena apresenta um aspecto noturno, durante o inverno, da famosa cidade, salientando-se, à esquerda, uma encantadora torre, denominada "Siebersturm", em cuja base se abre um arco ornamental, que permite a passagem da viela "Schmiedgasse".

Como nenhuma outra pequena cidade alemã, Rothenburg soube conservar através dos séculos, em sua arquitetura, a fidelidade ao espírito de seus construtores. Dignidade, aconchego, sadia espontaneidade, amenidade de vida, frutos exímios de uma civilização fortemente impregnada pelo espírito católico. Valores esses que, no tempo de sua construção não eram privilégio da aristocracia, mas haviam penetrado em todas as classes sociais.

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Rothenburg enfrentou guerras, revoluções, terremotos e epidemias ao longo de sua história. O episódio — de fundo real, mas enriquecido pela legenda — que marcou mais intensamente a vida de seus habitantes, conservando-se até hoje vivo na memória de todos eles, ocorreu durante a guerra dos 30 anos, no século XVII, quando a pitoresca localidade foi salva da destruição de modo imprevisto.

Conta-se que em 1631 — a cidade, infelizmente, se deixara arrastar, no século XVI, pela heresia luterana.

Rothenburg fora sitiada pelo general francês Tilly, comandante das tropas católicas que lutavam contra a liga das nações protestantes chefiada pelo rei Gustavo Adolfo, da Suécia. O Conselho Municipal da então cidade-livre, partidário do rei sueco, decidiu enfrentar os católicos.

Durante a batalha, o paiol de pólvora localizado dentro do burgo, voou pelos ares, causando grandes danos numa das principais muralhas defensivas. Rothenburg vem a capitular. O general francês entrou então vitorioso na cidade.

Mas, irritado com a inesperada resistência, Tilly ameaçou destruir a localidade, além de condenar à morte quatro membros do Conselho Municipal. Os pedidos de clemência não encontravam eco.

Ofereceu-se então ao vencedor, de acordo com a lenda popular, uma portentosa caneca de três litros e meio, cheia do melhor vinho francês. Bem humorado, o valoroso general prometeu poupar a cidade, caso algum dos ofertantes bebesse, de um só trago, o conteúdo da caneca.

Apresentou-se então, como voluntário, um idoso mas robusto membro do Conselho Municipal chamado Nusch. Após certa hesitação o velho alemão conseguiu realizar seu intento. Tilly manteve sua promessa. A cidade foi salva, em meio a grande júbilo popular.

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Esse pitoresco acontecimento é celebrado anualmente pelos habitantes de Rothenburg, na festa do "Meinstertrunk". Nessa ocasião, representa-se na sala imperial da Prefeitura (segunda ilustração), o legendário episódio, com todos os personagens vestidos segundo a moda do século XVII.

O fato também é relembrado todas as vezes em que o relógio do imponente edifício do Conselho Municipal bate as horas. De duas pequenas janelas, no alto da fachada do prédio, aparecem dois bonecos representando respectivamente o general Tilly e o velho Nusch com a caneca aos lábios.

Não é sem propósito que Rothenburg tornou-se mundialmente célebre. Percorrendo-se suas estreitas, sinuosas e ao mesmo tempo originais ruas, de traçado irregular, contemplando-se a beleza arquitetônica de seus edifícios, a solidez de suas torres e muralhas, sente-se a imaginação transportada para a placidez da época medieval, a justo título cognominada a "doce primavera da Fé".

Na foto, apresentação cênica do episódio lendário de 1631: à esquerda, o general Tilly, e à direita, o velho Nusch tendo a caneca de vinho aos lábios.