O QUADRO reproduzido nesta página é encantador. Seu autor, Jean-Baptiste Chardin (1699-1779), filho de um marceneiro, é o pintor da burguesia francesa e da vida de família em sua época.
A cena, representando um interior familiar calmo e sóbrio, põe em realce o momento da oração antes da refeição. Daí seu sugestivo título — "Le Bénédicité" — que traduzido literalmente para o português significa "O Bendizei", primeira palavra da prece própria para essa ocasião.
A menor das meninas está com as mãos postas em atitude de oração, e a outra, com a cabeça ligeiramente inclinada, denota recolhimento.
Toda a cena apresenta-se perpassada por uma discreta unção sobrenatural. E é mesmo este um dos fatores de originalidade do quadro, infelizmente pouco comum entre as pinturas de seu tempo. Representando embora um fato comum e corrente da vida temporal, como é a refeição tomada por duas crianças, o autor quis, entretanto, pintá-lo no momento simbólico exato em que, por meio da prece, a graça divina oscula a natureza. E a sociedade temporal que aí vemos embebida de espírito sobrenatural até nas suas manifestações mais corriqueiras. No fundo, uma apresentação simples, mas esplêndida na sua simplicidade, do que foi outrora a civilização cristã.
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A mãe das crianças — ou talvez a governanta, como parece sugerir seu longo avental — trata-as com uma delicadeza indizível. O ambiente, como se vê, é tipicamente de antes da Revolução Francesa. Depois desta, os costumes vieram progressivamente se degradando — o feminismo e as condições de vida moderna foram transformando o comportamento das mulheres no sentido de uma crescente masculinização —até chegar aos tristes dias de hoje, em que senhoras e moças, para manter integralmente seu perfil feminino, encontram todos os obstáculos.
De fato, uma desditosa moça, por exemplo, que tenha de entrar, cada manhã, num metrô, na ponta da cidade, a fim de ir trabalhar na outra extremidade, e depois datilografar continuadamente oito horas por dia, no ambiente barulhento e agitado de um grande escritório ou de um banco — voltando em seguida para sua casa, situada numa espécie de bairro dormitório —, que condições tem ela de alimentar as qualidades de delicadeza inerentes à sua alma?
Isso tudo, sem falar nos perigos a que ela se expõe no trajeto: ser assaltada por "trombadinhas", sofrer um acidente, ser objeto de solicitações impuras, e tantas coisas mais... Como também, sem falar nas condições nada recomendáveis em que vivem numerosas famílias hoje em dia... A mulher, nessas condições, tem de tomar uma outra atitude perante a vida que não é a da afável personagem representada neste quadro de Chardin, em que, a delicadeza feminina aparece em seu aspecto mais respeitável.
Delicadeza, em grande parte, adequada para tratar com crianças, e que regula todo o relacionamento com elas, de modo a não chocar seu temperamento infantil e nem lhes incutir um medo desnecessário. Por isso, como se vê na ilustração, as meninas estão inteiramente distendidas, rezando, para depois passar naturalmente à refeição.
Note-se ainda o porte ereto de ambas. Nenhuma delas está com o tronco curvado nem apoiada no encosto da cadeira. Estão tesas, quase numa posição de jantar de cerimônia. Entretanto, encontram-se na mais estrita intimidade — pois intimidade não significa desleixo nem falta de compostura. É mesmo este um dos encontros mais agradáveis que há para se apreciar: o do aparato da alta educação com o distendido da intimidade familiar.