| PERESTROIKA |

Congresso do PC russo

Perestroika: uma empada vazia

Gorbachev dirige a palavra, no palácio dos congressos, aos cinco mil delegados que participaram do XIX Congresso do Partido Comunista russo.

A RESPEITO do Congresso extraordinário do Partido Comunista soviético, realizado em fins de junho e inícios de julho, a imprensa ocidental foi caudalosa, minuciosa, reservando ao evento o principal espaço, dentre os destinados às editorias do exterior.

A esperança manifestamente inculcada pelos órgãos de comunicação de todo o mundo era a de uma profunda transformação na Rússia: a democratização, a liberdade de opinião, a inocência do cidadão até prova em contrário (coisa que não existe por lá), etc. A reunião extraordinária visaria a implementação das reformas promovidas por Mikhail Gorbachev, Secretário Geral do PCUS, as tão propaladas glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação).

Porém, findo o Congresso, uma análise atenta do noticiário demonstra que pouca coisa mudou ou mudará na Rússia. Após 70 anos de comunismo, ela continua a ser um país dominado por uma tirânica burocracia, preso a uma letargia generalizada, sem iniciativa, sem futuro.

O socialismo em jogo — À medida que o progresso exclusivamente material do Ocidente atinge auges sem precedentes, ficava cada vez mais difícil diante da opinião pública mundial e aos olhos dos próprios russos, a abismática diferença de riqueza, sempre crescente em favor das nações livres.

Para sanar tais discrepâncias, era necessário que os líderes comunistas encetassem um caminho de reformas, ao menos aparentes, para atrair o auxílio maciço do capital ocidental. Nesta ótica, torna-se indispensável o desarmamento psicológico do Ocidente, para que este se disponha a colaborar, e mais do que isto, a sacrificar-se para compensar as mazelas de um regime antinatural, que pretende levar até o fim seus planos de dominação mundial.

Assim, entre as muitas manobras desenvolvidas pelo comunismo ao longo desses 70 anos, a glasnost e a perestroika têm um alcance excecional. Sem essa mudança, ressaltou Gorbachev no Congresso, "o socialismo 'morrerá"' ("Time", 11-7-88). Assim, o que está em jogo é a própria existência do socialismo, e não uma democratização da Rússia.

"Reforma" política e econômica em padrões socialistas

No discurso de abertura do Congresso, Gorbachev aponta o inimigo: "o princípio criador do socialismo científico, humano, renasce na batalha contra o dogmatismo" ("L'Humanité", órgão do Partido comunista francês, 29-6-88). É a mitologia apresentada ao público: os defensores do "status quo" são os dogmáticos, os stalinistas, os "conservadores" (1). Estes defendem seus "privilégios" de membros do Partido: altos salários, lojas, armazéns especiais, casas de campo etc., em detrimento da sociedade. É necessário renunciar a isso tudo. É contra essa "muralha" que se levantam Gorbachev e os "reformistas", os "liberais".

As soluções que estes apresentam têm entretanto que sair de dentro da cartola mágica do socialismo, da qual Gorbachev retira uma velharia, a autogestão: "Nós devemos garantir a autoridade completa e independente dos sovietes na direção e desenvolvimento das suas áreas" ("Time", 11-7-88). Um arremedo de democracia: eleições secretas para diversos níveis do governo, num sistema unipartidário. É o "pluralismo" socialista...

Limites — Gorbachev — entre os "conservadores", cuja expressão máxima é Igor Ligachev, ideólogo do partido, e Boris Yeltsin, o ardoroso defensor das "reformas", e sua primeira vítima — destaca-se como o grande moderador. Vejamos, pois, quais os limites da perestroika na opinião do líder russo: "Tudo que reforça o socialismo (...) deve ser encorajado e aceito (...). Não deixaremos ninguém ir contra o socialismo" (Discurso de Gorbachev à delegação francesa, em 29-9-87, "apud" "L'Evenement du Jeudi", Paris, 23 a 29-6-88). "Ninguém, entre nós, se encontra fora do controle. (...) Isto diz respeito também à mídia. A imprensa soviética não é uma butique privada. (...) Uma revista, uma editora, um jornal, não são assuntos privados, mas assunto do Partido" (Discurso de Gorbachev aos representantes das mídias, 8-1-88, id., ib.). Foi desnecessário ao sorridente líder russo indicar o que acontecerá aos que discordarem...

Reforma? — A respeito das eleições, no sistema unipartidário, pluralista socialista, Gorbachev aperta algumas cravelhas: "Todas as autoridades continuarão a ser eleitas pelo partido comunista. Gorbachev anunciou que o partido não tolerará desafios à sua autoridade. 'Alguns creem que a glasnost pode admitir tudo, da redefinição das fronteiras ao estabelecimento de partidos de oposição. O Comitê Central acredita que esses abusos da democratização são contrários à tarefa da perestroika e contradizem os interesses do povo"' ("Jornal do Brasil", 29-6-88). Pergunta: Que reforma é essa? E se algo mudar na fachada, uma vez que a essência continue a mesma, qual o objetivo de tanto estardalhaço?

O noticiário amplo, como dissemos, não dá uma resposta clara a isso. Entretanto é lícito levantar uma hipótese: dada a situação calamitosa da economia russa, e da sociedade como um todo, faz-se necessário, para salvar o comunismo, sacudir a fundo o país, ao mesmo tempo que se toleram arremedos de propriedade privada e livre iniciativa. Em doses homeopáticas. Para tanto, é indispensável obter ajudas faraônicas do Ocidente, e é só com um controle rígido exercido em todo o país que se pode apresentar algum resultado cosmético. Daí a ênfase de Gorbachev em defender os sovietes, células que controlam de perto todo o tecido social.

As demais reformas aprovadas no congresso, importam ao regime soviético, na medida em que efetivamente permitem maior controle do partido sobre cada cidadão. Eleições secretas para presidente do Estado soviético, e demais cargos, segundo um sistema de "pluralismo" socialista unipartidário, não aliviarão os padecimentos do infeliz povo russo...

Em resumo, o Congresso do PC russo cantou em prosa e verso as ideais de reforma, democracia etc. Mas sem nada definir nem apresentar conteúdo para esses rótulos. Ele nos serviu uma empada vazia.

R. Mansur Guérios

(1) Uma das manobras mais correntes da Revolução mundial consiste em jogar com as palavras. 'Assim, "conservadores", no Ocidente, seriam os que se apegam a suas tradições, são anticomunistas etc. No mundo de além cortina de ferro, "conservadores", pelo contrário, são os comunistas ferrenhos, que não querem as reformas. Uns e outros são apresentados à execração da opinião pública. Enquanto os "liberais" de ambos os lados, sorridentes, abertos para o futuro, como Gorbachev e Reagan, por exemplo, dão-se as mãos por cima dos muros e cercas (que entretanto não derrubam) e são os homens simpáticos e arejados. Acredite nessa manobra quem quiser...


"Catastroika" na Rússia ou no Ocidente?

O DISSIDENTE russo Alexandre Zinoviev, que está desde 1978 na Alemanha Ocidental e leciona atualmente na Universidade de Munique, participou de um seminário internacional — "Brasil século 21" —realizado na Universidade de Campinas. Considera ele que as reformas de Gorbachev serão uma "catastroika" (combinação irônica entre catástrofe e perestroika). Isto porque "as reformas são impostas de cima para baixo, numa política neostaliniana" ("Folha de S. Paulo, 10-7-88). "O objetivo de tais reformas é sobretudo conquistar a opinião pública mundial" (Id., ib.). O autor de tais declarações, convém ressaltar, é insuspeito ao falar de tais assuntos, pois é comunista. Segundo ele, "o secretário-geral do partido comunista da União Soviética, não quer reorganizar a vida no país ou mudar o sistema. 'Sua preocupação é modernizar a indústria e o Exército e para isso ele precisa da ajuda das democracias ocidentais"' (ib.). Quanto à tão divulgada divisão entre reformistas e conservadores, o dissidente pondera:
"A briga é por funções e cargos no mesmo aparelho" (id., ib.).
Tais declarações confirmam o que "CATOLICISMO" vem afirmando, em vários artigos, sobre as reformas de Gorbachev. Procuram elas, como num passe de mágica, fazer com que o regime comunista, que na realidade se encontra à beira do colapso, se veja favorecido e fortalecido.
Contribui para uma falsa visualização dessas reformas o mau hábito — para dizer só isto — do Ocidente em acreditar nas mudanças superficiais, cosméticas de um socialismo com "face humana", que na verdade não modifica seus princípios. Pelo contrário, com um pouco de atenção que se acompanhe o noticiário, percebe-se que, quando se fala de princípios a serem preservados, esses sempre são, em última análise, os do socialismo na sua forma mais radical: a da autogestão.
Como não se perguntar, pois, se o que tais reformas causarão não será a "catastroika" no Ocidente?


| DISCERNINDO, DISTINGUINDO, CLASSIFICANDO |

O pobre que não quer ser vice-rei

TODO POBRE é necessariamente um oprimido, portanto um infeliz? Ou pode ele ser feliz em sua pobreza, sem invejar as classes mais abastadas, nem desejar subir até elas ou querer derrubá-las?

É este um problema interessante e milito atual, suscitado pela campanha sem tréguas que vem sendo levada a cabo pela esquerda católica, no intuito de nos convencer que todo pobre é por definição um injustiçado (de onde ela conclui, contraditoriamente, que se deve acabar não com a pobreza, mas com os ricos, para tornar todo mundo pobre!).

É curioso verificar que, apesar do esforço verdadeiramente insano que essa esquerda vem empreendendo — há muito tempo e jogando nisso o prestígio do clero — junto a camponeses, operários, favelados, subempregados etc., para lançá-los numa revolução social, o resultado por ela obtido até agora tem sido fraquíssimo (não falamos, evidentemente, do largo apoio que ela vem recebendo em meios da burguesia, dos veículos de comunicação social, dos legisladores e outros, pois esta é toda uma outra questão).

A que se deve que tantos pobres, tão prementemente solicitados a dar sua colaboração numa luta que aparentemente só os beneficiará, entretanto recusem, de modo obstinado, engajar-se nela? Cremos serem vários os fatores que, conjugados, levam a essa recusa; entre eles não estão ausentes um certo bom senso e um resto de espírito católico. Mas o fator que aqui queremos salientar é outro: grande número de pobres sente-se feliz em sua pobreza, não a leva tão ao trágico quanto a seus olhos a querem pintar, e vai vivendo sua vida com um esforço razoável para melhorar de condição, mas sem perder o fôlego por causa disso, e sobretudo não vendo razão para odiar os que possuem mais. Assim, ao sair de uma igreja onde ouviu um sermão incendiário sobre a "insuportável" condição dos "oprimidos" e "marginalizados", o indivíduo que vive na pobreza tem muito mais condições do que outros para medir bem os exageros e demasias do orador. Dá de ombros e toca sua vida. É uma forma de sabedoria, indubitavelmente.

* * *

Caiu-nos recentemente nas mãos um curiosíssimo texto do famoso escritor alemão Goethe (1749-1832), sobre o "lazzarone" de Nápoles, ilustrativo do que acabamos de dizer. Ei-lo:

"Volckmann diz que há de trinta a quarenta mil desocupados em Nápoles, e toda gente o repete.

"É verdade que não se dá um passo sem encontrar um homem mal vestido, andrajoso mesmo, mas o fato de esse homem se encontrar em tal estado não prova que ele seja um preguiçoso ou um vagabundo (o mito do "oprimido" ainda não entrara em voga) (...).

"O que o Sr. Pauw diz nas suas 'Pesquisas sobre os Gregos' pode aplicar-se perfeitamente aos napolitanos. Segundo esse autor, não fazemos uma ideia exata da existência desses homens; porque seu princípio de ter o mínimo possível de necessidades é singularmente favorecido pelo clima. Nos países quentes, um homem que nos parece extremamente miserável encontra sem esforço, não apenas tudo o que é necessário à vida, mas ainda o meio de gozá-la de modo agradável. (...).

"O lazzarone não trocaria sua situação pela de um vice-rei da Noruega ou um governador da Sibéria, e ele não é mais indolente do que as outras camadas do povo, todas as quais trabalham não somente para viver mas para gozar a vida. (...) Ele se parece com as crianças, que, quando as incumbimos de um trabalho qualquer, fazem que esse trabalho degenere em brinquedo. O espírito dos homens dessa classe é, em geral, vivo, e seu golpe de vista justo, sua linguagem figurada e sua alegria mordente" (Goethe, "Memórias", Livraria José Olympio Editora, Rio-São Paulo, 1947, II vol., p. 178).

C. A.

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