É SÁBADO à noite, está reunida a Comunidade de Base da Vila Jericó ...
Irmã Gertrudes - uma agente pastoral, ágil e gorducha - fala animadamente para uma roda de oito a dez pessoas, que regularmente ali se reúnem, pois o padre Tenório diz que é pecado não participar.
"As reuniões são sempre iguais, sempre a mesma conversa", desabafa um ou outro quando longe dos ouvidos do padre Tenório ou da irmã Gertrudes. Esta última, entretanto, parecendo alheia ao desinteresse geral, estimula seus sonolentos ouvintes a darem "testemunhos" de "injustiças sociais".
- Américo, lembra-se da reflexão do 4° dia da novena do Natal? Quem são os oprimidos de nossa sociedade? (1) O interpelado titubeia.
- Bem ... , o livrinho diz que... que Jesus é o libertador dos oprimidos (2)
Geraldina, uma jovem catequista, atalha:
- Américo, diga que os oprimidos somos nós, os pobres, os marginalizados, os injustiçados, os ...
- Eu também queria dar um testemunho - interrompe dona Maria das Neves, uma nordestina afável, operosa, mãe de nove filhos e que se orgulha de tê-los educado bem a todos apesar de sua pobreza -; na verdade o que queria fazer é uma pergunta: quando eu era menina, lá na Paraíba era tão bonito! A igreja se enchia de gente para rezar, e quando chegava o mês de Maria, as irmandades todas se reuniam para recitar o terço e adorar o Santíssimo Sacramento. O padre falava de Nossa Senhora, depois saíam todos em procissão louvando à Virgem Maria. A cidade inteira participava. A senhora precisava ver como era bonito! A "gente" ficava tão alegre ... Hoje não há mais nada disso: a "gente" fica com uma saudade dessas belezas ... e com um peso no coração por não poder manifestar nossa devoção. Irmã, isso não seria também uma opressão?
A religiosa não consegue ocultar ligeiro embaraço, e um instante de silêncio e expectativa é rompido pela voz nervosa e irrequieta da catequista:
- Maria das Neves, você é uma retrógrada; a Igreja avançou e essas velharias todas acabaram. Veja esse livrinho das Paulinas (2); diz que essas coisas eram um mecanismo com que as classes dominantes controlavam o povo oprimido. Pensar como você pensa é um retrocesso; você tem de ser moderna, avançada ...
Dona Maria das Neves calou-se.
Não entendera muito daquele "charabiá", mas pensou com seus botões:
– "Por que tenho eu que ser como eles dizem, e não como eu sou? Sinto-me oprimida com isso, mas não adianta falar ... "
A religiosa, visivelmente contrafeita com o rumo que tomava a reunião, em vão procura serenar os ânimos:
- Esta história de discussões, polêmicas, são coisas ultrapassadas. Ademais, estamos no período do Natal, que é a "festa da fraternidade entre os povos" (3).
- De fato - interrompe Rafael, um advogado inteligente e ainda jovem – as coisas parecem ter mudado mesmo. Antigamente, o Natal era a festa do nascimento do Menino-Deus, que veio ao mundo para salvar. Era antes de tudo, ocasião para se dar glória a Deus no mais alto dos Céus, pois Ele vinha trazer ao mundo a paz aos homens de boa vontade ...
A essa altura a catequista não mais se contém e põe-se a falar de modo torrencial e agressivo:
– Vocês estão vendo? Rafael tem o tipo de religião que este livrinho da coleção "Cadernos de Base" qualifica de mecanismo de opressão (4). Você está "bitolado", Rafael, está anestesiado para as realidades sociais.
– Chii, já vem você com essas palavras difíceis, protestou a nordestina.
– Uma vez que comecei a falar, não vou parar, retomou Rafael. Vou dizer tudo o que há muito tenho guardado sem poder externar.
Irmã Gertrudes parecia paralisada, como que atingida por um raio. Nunca imaginou que uma reunião da comunidade resultasse em tal encrenca. Rafael continua:
- Agora, eu gostaria de saber o que são esses avanços sociais de que vocês tanto falam! Tais avanços levam para onde? Caminham em direção a quê?
- Ora Rafael, você é um "quadrado", "bitolado", quer explicação para tudo. Você não tem caridade fraterna; tem o espírito do Concílio de Trento, coisa ultrapassada. Agora estamos no tempo do Concílio Vati...
- É preciso manter a calma, Geraldina - acode a religiosa -, avançamos para um mundo mais 'fraterno' ... onde haja mais igualdade, está compreendendo ... ?
- É isso mesmo - completa a catequista - onde não haja mais ricos nem pobres. Onde não haja patrões, e que todos tenham tudo em comum, está entendendo? Onde ninguém possa dizer "isso é meu" "aquilo é teu", mas tudo seja partilhado entre todos. Ouvi dizer que isso se chama socialismo. É lá que queremos chegar.
- Era bem o que eu queria ouvir - retoma Rafael com ar triunfante - isso é o comunismo disfarçado com o nome menos antipático de socialismo.
Irmã Gertrudes se remexia na cadeira e mordia os lábios de raiva. Rafael completa:
- Então digam de uma vez: vocês acham bom tudo aquilo que nos aproxima do comunismo e julgam mal tudo o que nos distancia dele. É muito estranho, irmã, pois esse pessoal que pensa assim, vive a dizer que defende os pobres, os oprimidos, mas querem para o Brasil, justamente, aquele regime que, onde se implantou, não tem produzido senão miséria e opressão. Esse regime é tal que o Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé o qualifica de "a vergonha do nosso tempo" (5)
- Onde você leu isso - interrompe irmã Gertrudes com os olhinhos pequenos e vivos a lhe saltarem das órbitas. - Onde li? Bem ... Foi no "Catolicismo", a revista da TFP.
- Eu bem que desconfiava de que você está metido com essa gente, explode Geraldina. São uns radicais, fanáticos, intransigentes ... São uns ...
- Um momento Geraldina - interveio Rafael - com cabeça quente não se chega a nada. Realmente, eu recebi a visita de rapazes da TFP. Foram muito corteses, serenos, e discutimos ideias durante várias horas. Eles me apresentaram uma impressionante documentação, explicaram tudo com muita clareza, e me deram toda a liberdade de objetar, exatamente o que não encontro aqui. Mostraram-me também o volume enorme de livros, revistas e demais publicações da TFP. É impressionante! E tudo perfeitamente documentado. Dr. Plinio com mais dois colaboradores chegaram até a publicar um livro sobre as Comunidades de Base, no qual fazem a estas gravíssimas acusações. Mas provam tudo o que dizem! O livro mostra que muitas CEBs se apoiam em doutrinas de fundo marxista e favorecem abertamente o comunismo. Confesso que fiquei muito impressionado.
- Isso é mentira! Os bispos certamente já responderam, mostrando que todas essas provas são falsas. Irmã, mostra ao Rafael a resposta de nossos bispos ...
A religiosa entretanto guardava desconcertado silêncio. Rafael completa:
- Pois exatamente o mais inexplicável é que eles dizem que o livro foi difundido por todo o Brasil e ninguém respondeu.
- Já é muito tarde - intervém irmã Gertrudes consultando o relógio. Acho melhor irmos embora, e espero que na próxima reunião haja mais caridade fraterna entre nós.
A religiosa se retira apressadamente; o grupo se dispersa, e cada qual toma seu caminho, pensativo.
Uma chuvinha miúda e persistente caiu durante todo o dia, no sábado seguinte. Rafael, após um rápido jantar, sai apressado para não chegar atrasado à reunião, mas uma expectativa estranha se apodera de seu espírito. Chegando ao local de costume encontrou-o deserto. "Terão todos se atrasado"?, pensou.
Não foi necessário muito tempo para que se desse conta de que o lugar de reunião tinha sido mudado e ele não fora avisado. Já se dispunha a voltar para casa quando lhe vem ao encontro dona Maria das Neves, saltitando agilmente - apesar de seus setenta anos - para evitar as poças d'agua pelo caminho. Também ela tinha sido excluída.
Rafael então compreendeu tudo: ele e dona Maria tinham cometido um "crime", para o qual não há perdão nem caridade fraterna: tinham ousado discordar!
Arnobio Glavam