| BICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FRANCESA |(continuação)

exclama: "Reservar-nos-ia o Céu essa glória do martírio? Todas num só dia, que alegria!"

Algum tempo depois da Páscoa, esteve em visita ao Carmelo o bispo de Saint-Papoul, Mgr. de Maillé-la-Tour-Landry. Conta ele que, ao administrar os últimos sacramentos a uma jovem de 15 a 16 anos, "virtuosa como um anjo", esta entrou em êxtase, vendo um grande número de religiosas, especialmente uma comunidade inteira, subir ao Céu com palmas nas mãos. Madre Teresa, comovida, dirige-se às suas filhas:

"Poderíamos esperar que fosse à nossa comunidade que o Céu predestinasse um tão grande favor?!"

A partir de então, à medida que aumenta a tormenta revolucionária, mais toma vulto no espírito de Madre Teresa, a ideia do martírio. Assim, em determinado dia, a Superiora comunica às suas religiosas que, "tendo feito sua meditação sobre essa matéria [do martírio], veio-lhe ao pensamento fazer um ato de consagração pelo qual a Comunidade se ofereceria em holocausto para aplacar a cólera de Deus, para que a divina paz que Seu Filho veio trazer ao mundo fosse concedida à Igreja e ao Estado". A ideia foi unanimemente compartilhada, e a Superiora deu então leitura ao ato de consagração, ao qual todas as religiosas se uniram.

Assim o Céu preparava, com antecedência, essas almas para o martírio, aceito de antemão, e quando as circunstâncias não permitiam ainda supor que ele se daria em tempo tão breve.

Fidelidade na prova

Mas voltemos à dispersão imposta às carmelitas.

A proximidade das casas nas quais estão distribuídas, permite-lhes, cruzando alguns jardins e quintais de pessoas amigas, reunirem-se para alguns atos em comum, sem chamar muito a atenção. Desse modo, podem levar uma vida religiosa de certa intensidade, "conservando a unidade de obediência a nossa Santa Regra e à Reverenda Madre Priora, mantendo-nos todas, pela graça de Deus, numa perfeita harmonia de princípios, de sentimentos e de conduta", relata Irmã Maria da Encarnação. Assistem ao Santo Sacrifício celebrado por um padre refratário - isto é, que não prestara o juramento cismático à Constituição Civil do Clero - na igreja de Santo Antônio; não são incomodadas por ninguém e admiradas em segredo por muitos, dada a santa vida que levam.

No dia 21 de janeiro de 1793, a Convenção, num extremo de audácia e para tornar irreversível a Revolução, manda guilhotinar Luís XVI. "É possível não lamentar tão bom rei, que não teve jamais em vista senão a felicidade de seu povo?" - escreve Madre Teresa de Santo Agostinho a pessoa amiga. "Ele nunca se mostrou mais digno de governar do que quando quiseram perdê-lo". Esta carta será depois apresentada como uma das provas de seu "fanatismo"!

Quando a religião católica é oficialmente supressa como "obscurantismo e superstição", e se proclama o culto da "Razão", em Compiègne a igreja de São Tiago se transforma no templo da nova "deusa", enquanto o prefeito anuncia que, daí para a frente, o "Catecismo" dos franceses será a "Declaração dos Direitos do Homem", e seu "evangelho", a Constituição ...

Em março de 1794, duas religiosas viajam a outra cidade, para assistirem ao irmão de uma delas, que ficara viúvo e Irmã Maria da Encarnação vai a Paris tratar de assuntos familiares. Por desígnios secretos da Providência, essas três religiosas ficarão privadas da graça do martírio. Madre Teresa de Santo Agostinho corre o mesmo risco, pois seus superiores a mandam à Capital para atender à mãe, idosa e recentemente viúva, que vai mudar-se para o interior do país. Mas, alertada por um pressentimento sobrenatural, abrevia sua estadia em Paris, para chegar a Compiègne no mesmo dia em que as casas das religiosas são vasculhadas por membros do Comitê de Vigilância da cidade.

A indesejável visita se repete nos dias seguintes, tomando os "representantes do povo" a liberdade de se apropriarem até das refeições das carmelitas, de maneira que elas têm, somados "aos sofrimentos do espírito, os do corpo, pela privação dos alimentos", narra Irmã Maria da Encarnação. É o cerco que se fecha e elas já se preparam para o pior.

Os fatos se precipitam

Após o exame das "provas" da "conspiração" encontradas, as religiosas são detidas a 22 de junho. O "perigoso" material recolhido é enviado a Paris com os dizeres: "Já de há muito desconfiávamos que as ex-religiosas carmelitas deste município, se bem que alojadas em casas diferentes, viviam em comunidade, submissas às regras de seu ex-convento. Nossas desconfianças não eram vãs.

Após várias visitas feitas, encontramos correspondência criminosa: não somente paralisavam elas os progressos no espírito do povo, admitindo pessoas numa confraria dita do escapulário, mas faziam também votos pela Contra-Revolução e destruição da República e restabelecimento da tirania".

No momento mesmo em que a Revolução prega, alto e bom som, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, considera-se grave crime ter uma ideia diferente sobre formas de governo, bem como propagar a devoção ao escapulário de Nossa Senhora do Carmo! ...

A 12 de julho, enquanto almoçam na prisão, as religiosas recebem ordem de partida imediata para Paris. Já as esperam fora algumas viaturas cercadas por mulheres histéricas, boa parte das quais são ex-beneficiadas pelas carmelitas, que as injuriam gritando: "Faz-se muito bem em as destruir, porque não passam de bocas inúteis. Bravo! Bravo!"

O "consummatum est"

Ao chegarem à Capital , as detidas são levadas para a Conciergerie, palácio transformado em prisão e que servia de ante-sala da guilhotina. Ao descer das carroças, elas o fazem com muita dificuldade por terem as mãos atadas.

O carcereiro, impaciente, empurra a mais idosa, quase octogenária e doente, fazendo-a cair de bruços sobre as pedras do calçamento. O povo presente não pode reter um protesto: "Ah! miserável, V. a matou!" Ferida e com a face ensanguentada, a anciã ainda agradece a seu algoz por não a ter matado, porque isso a privaria da graça do martírio. Na terrível noite que passam aguardando o julgamento, ouve-se, na Conciergerie, as religiosas cantarem o Ofício Divino.

Com mais uma quinzena de pessoas, na manhã seguinte, as carmelitas comparecem ante o Tribunal Revolucionário. Não há testemunhas nem advogado de defesa para os réus. Estão julgados de antemão.

As filhas espirituais de Santa Teresa são assim condenadas à morte "por terem efetuado reuniões e conciliábulos contra-revolucionários, entretido correspondência fanática, conservado escritos liberticidas bem como símbolos de aglutinação dos rebeldes da Vandéia", ou seja, emblemas do Sagrado Coração de Jesus.

Para poder-se avaliar a "objetividade" desse julgamento, convém dizer que um dos réus, Mulot de la Ménardière, primo de uma das religiosas e que fora preso por terem encontrado correspondência sua no Carmelo, é condenado à morte como "padre refratário ... chefe de aglutinação contra-revolucionária de uma espécie de sede da Vandéia (sic!) composta pelas ex-religiosas carmelitas e outros inimigos da Revolução". Ora, quem preside o julgamento é Toussaint-Gabriel Scellier, originário de Compiègne e que não pode deixar de conhecer Mulot, que lá sempre vivera, tendo sido até candidato a prefeito em 1791. Mulot de la Ménardière nunca foi padre, é casado e agricultor, por demais conhecido na cidade.

Enquanto aguardam os carroções que as devem conduzir ao local do suplício, como estão em jejum, Madre Teresa de Santo Agostinho, temendo que alguma possível fraqueza física possa ser tomada como temor da morte, vende a um circunstante um chale de uma das freiras e proporciona a cada religiosa uma xícara de chocolate, que, segundo depoimentos, "todas tomam com a maior tranquilidade".

No longo percurso até a Praça do Trono "Derrubado", local da execução, as carmelitas cantam o Miserere, a Salve Regina e o Te Deum. Pela primeira vez, desde o início da Revolução, há um silêncio quase reverencial da multidão, não se ouvindo nem mesmo as "fúrias da guilhotina" - megeras debochadas e sedentas de sangue que habitualmente acompanham as vítimas, insultando-as e saboreando sua angústia e terror.

Era o dia 17 de julho de 1794. Aos pés da guilhotina, Madre Teresa de Santo Agostinho pede para ser a última a morrer, a fim de poder encorajar suas filhas até o final. Segurando uma pequena imagem de Nossa Senhora nas mãos, ela entoa o Veni Creator Spíritus.

Irmã Constância, a primeira a ser chamada para o suplício, aproxima-se dela, oscula a pequena imagem, e pede à Superiora sua bênção e licença para morrer. Sobe depois serenamente os degraus do cadafalso, indo colocar-se sob o cutelo para não permitir que os carrascos a toquem. As outras religiosas seguirão seu exemplo. Os carrascos, cheios de respeito, não mostram pressa nem impaciência, permitindo que todas cumpram esse último ritual da Comunidade.

As carmelitas portam, segundo testemunhas, o hábito religioso, inclusive o manto branco de cerimônia. Haveria algum sacerdote, disfarçado entre a multidão, para lhes dar a absolvição suprema? É provável, pois comprovadamente, durante todo o Terror, sempre houve mais de um desses heroicos defensores da fé que, com risco para suas vidas terrenas, possibilitavam a outros alcançar a eterna.

Mortas "in odium fidei"

O historiador do Terror e do Tribunal Revolucionário, Henri Wallon, do Instituto de França, senador, antigo ministro, e "pai da Constituição de 1875", no Processo de Beatificação das Dezesseis Carmelitas, declarou sob juramento: "Na minha opinião, elas foram levadas à morte in odium fidei (por ódio à fé) ... Que a Religião se tenha tornado um 'crime de Estado', isso salta com uma evidência perfeita de todos os atos do Tribunal Revolucionário, pelo qual, muitos, não só religiosos, mas padres e leigos, foram condenados à morte unicamente por fatos religiosos"

O sacrifício dessas mártires não foi em vão. Apenas dez dias após sua morte, alguns dos principais propulsores do Terror revolucionário perecem, por sua vez, na guilhotina, evidentemente sem a resignação nem a serenidade e convicção de inocência que as das carmelitas. Pelo contrário, a maioria morre, como Robespierre, desesperado, maldizendo-se a si próprio e aos outros.

Com a morte desse corifeu revolucionário finda o Terror, época que a nova corrente histórica "consensual" - tão celebrada nos dias de hoje, em que se comemora o bicentenário de 1789 - considera uma "derrapagem" do processo. Na verdade, a condenação e a execução das religiosas de Compiègne - um dos crimes mais simbólicos do Terror - como todos os demais delitos e abominações praticados durante essa fase, revelam a realidade mais profunda da Revolução. Tais monstruosidades não constituem "desvios" de um processo histórico, como hoje se apregoa, mas integram seu próprio cerne.

Este é o momento oportuno para denunciar a mais recente manobra visando despoluir a face sinistra da Revolução Francesa.

(*) Este artigo baseia-se no erudito livro "Le sang du Carmel - La véritable passion des seize Carmélites de Compiègne'", Librairie Plon, Paris, 1954. do Rev. P. Bruno de J. M., Carmelita Descalço, diretor dos "Études Carmélitaines" e autor de várias outras obras. Trata-se de um completo documentário com mais de 560 páginas, nas quais estão transcritos documentos públicos e privados relativos à vida e morte dessas carmelitas. Especialmente: os manuscritos de uma das três sobreviventes da tragédia. Ir. Maria da Encarnação; todo o Processo de Acusação existente no Arquivo Nacional; e os Processos Canônicos, arquidiocesano (1896-1899) e romano (1902-1905) para a beatificação das Veneráveis Carmelitas. Página seguinte