O projeto do petista Paulo Delgado, em tramitação final no Senado, trará como resultado a disseminação de um exército de infelizes na sociedade.
Leo Daniele
SIM, A LOUCURA é uma doença contagiosa.
Quem o afirma não é um articulista empenhado em atrair a atenção de seus leitores.
Muito menos um cientista desejoso de ganhar o Prêmio Nobel, a anunciar a descoberta do vírus da demência. Como se sabe, esse vírus não existe.
A expressão "contágio mental" está na própria lei que dispõe atualmente sobre a proteção dos psicopatas. Fala mesmo em "contágio mental iminente", que pode ocorrer quando pessoas quase saudáveis ficam reclusas com outras em estado de loucura mais adiantado.
Não há dúvida. O desequilíbrio mental é contagioso.
Claro está que não se transmite como a cólera ou um resfriado. Mas é de bom senso, e está cientificamente comprovado, que a contaminação existe.
"De médico, poeta e louco, cada um tem um pouco", diz o ditado. Não admira que esse "um pouco" possa se transformar em "um tanto" ou mesmo "muito" em circunstâncias de promiscuidade. Pois a sociabilidade da natureza humana propicia a permeação dos estados mentais das pessoas colocadas em contato.
* * *
Já aprovado na Câmara dos Deputados, está em tramitação no Senado projeto do petista Paulo Delgado (MG), que proíbe a construção de novos hospitais psiquiátricos públicos. A intenção do projeto é forçar, com o tempo, a que os loucos só sejam tratados com recursos "não manicomiais". Como exemplo, o texto fala em "unidade psiquiátrica em hospital geral, hospital-dia, hospital-noite, centro de atenção, centros de convivência, pensões".
O assunto já veio à baila recentemente em CATOLICISMO. Na medida em que o efeito seja desmassificante, pode-se ver até um ou outro aspecto simpático no projeto. Se um louco pode ser tratado em casa, ou em unidades menores, por que atirá-la em imensos manicômios, que por vezes podem ter a dimensão de pequenas cidades?
A realidade do projeto, entretanto, é outra, e dela se ocupa com brilho o Prof. Edmundo Maia, em rápida, mas contundente entrevista a nosso órgão. Não há dúvida possível: os doentes mentais serão os grandes prejudicados pelo projeto.
Além dos interesses dos alienados, há também os da sociedade. A respeito deles, é o caso de dizer duas palavras.
Pintura executada por paciente psiquiátrico. Coleção Clínica Maia (Taboão da Serra, SP)
Aprovado o projeto, não mais serão construídos manicômios. Com o crescimento da população, em breve os atualmente existentes serão insuficientes. O Estado, com sua mão lerda e seu pé de chumbo, não terá providenciado em número suficiente os tais "centros de atenção", "centros de convivência", pensões especiais etc., obviamente mais difíceis de erigir e de manter do que estabelecimentos grandes. Faltará lugar onde colocar os loucos, como falta - e é oficialmente reconhecido - lugar onde colocar os criminosos que deveriam estar presos, pois o Estado não consegue construir um número adequado de prisões.
Essa filmagem em câmara lenta do futuro leva a que, em breve, muitos loucos estarão disseminados na população.
Sem emprego, sem rumo, sem família - como frequentemente acontece - sem teto - caso também frequente - sem meios de subsistência, alvo de chacotas e de toda sorte de abusos, um novo exército de infelizes virá se misturar, nos grandes centros, aos mendigos e aos favelados, para serem pasto dos criminosos.
Ensaios dessa situação já existem. Há psicopatas "relativamente restabelecidas" que estão sendo orientadas para obter trabalho como domésticas ocultando sua verdadeira situação (cf. "O Estado de S. Paulo", 22-3-91). Com a aprovação do projeto, tais casos passarão a ser correntes (se é que já não o são e não sabemos...).
Até parece que a ordem é amalgamar tudo, numa confusão dantesca. Os criminosos com os homens de bem, os vagabundos com os trabalhadores, as prostitutas com as mães de família, agora os débeis mentais com as pessoas lúcidas. Nos grandes centros, nós que já temos marreteiros no leito das ruas e trombadinhas nas laterais, veremos loucos e mendigos por toda parte. E quando tudo estiver bem ruim, alguns dos responsáveis pela piora virão posar de revolucionários ou reformadores, "porque assim não pode continuar".
* * *
Voltemos à problemática do início. O "contágio mental" existe. A própria lei vigente o reconhece.
Se um menos louco pode ser "contagiado" por um mais louco, um não louco, mas com predisposições, o pode ser por um verdadeiro louco, o qual circula pelas vias da vida em estado "não manicomial".
Como se defenderá uma sociedade em que a saúde mental geral anda tão cambaleante? Que lucrarão as crianças, obviamente mais sensíveis às influências? Em definitivo que ganharão os loucos, tão dignos de compaixão, com o fato de que outros fiquem como eles? No que com isto melhorarão as condições gerais da sociedade? Poderemos nos dar ao luxo de sermos, juntamente com os loucos, as cobaias de experiências como estas?
A resposta só pode ser: não.
Em entrevista telefônica concedida a CATOLICISMO, o Prof. Edmundo Maia põe em foco os efeitos catastróficos da lei n° 3.657-A.
Prof. Edmundo Maia, sabe-se que o projeto do Dep. Paulo Delgado inspira-se principalmente na lei italiana n° 180. O que o Sr. pode nos dizer a respeito desta experiência?
A lei 180, do deputado comunista Franco Basaglia, que fechou os manicômios na Itália, só vigorou de 1978 a 1984. Tantos foram os problemas médico-sociais causados, que o governo a teve de revogar e autorizar a reabertura dos manicômios, evidentemente em melhores condições do que se encontravam. Somente nas cidades de Trieste e Gorizia, por exceção, os "modelos" do programa basagliano permaneceram funcionando. Só que os doentes mentais da região, necessitados de tratamento psiquiátrico, estão internados em frenocômios de cidades vizinhas.
E no Brasil, houve experiências de tratamento psiquiátrico "extra-manicomial"?
Franco da Rocha, por volta de 1929, criou no Juqueri uma Assistência Domiciliar, um tipo de Lar protegido. A experiência fracassou. No Hospital São Paulo, uma Unidade de Psiquiatria para mulheres criou sérios problemas internos, porque as doentes mentais invadiam outros andares, assustando doentes clínicos e cirúrgicos, o que forçou a colocação de uma porta de separação, logo incendiada pelas doentes confinadas.
Em Santos, desde maio de 1989 está havendo uma experiência da corrente basagliana (liberdade total dos doentes mentais) na Casa de Saúde Anchieta, sob intervenção municipal. Surgiram problemas sociais: doentes em surtos psicóticos foram recusados e tiveram de ser internados em hospitais conveniados distantes, longe de seus familiares. Os internados, desfrutando de porta aberta, entram e saem livremente do hospital, uns regressando embriagados, outros perturbando o ambiente no velório da Beneficência Portuguesa de Santos...
Que resultado se pode prever, se a lei for aprovada e os manicômios forem fechados?
Convém saber que, no Hospital do Juqueri, 400 pacientes estão com alta. Mas permanecem no hospital, porque, abandonados pelos familiares, não têm para onde ir. Os doentes mentais de recursos, internados em frenocômios particulares, não serão atingidos pela lei. Mas os doentes desprotegidos, cronificados e incapacitados, terão de ficar soltos, nas ruas, praças, viadutos, aumentando a mendicância. E os que estiverem com crises de agitação com impulsividade, auto e heteroagressividade, terão de ser recolhidos às superlotadas cadeias públicas, como já aconteceu no passado.
Página seguinte