P.18-19 CULTURA

O Santuário de Rocamadour

Nelson Ribeiro Fragelli

< p class="Quadro1">Pequena para ser considerada uma cidade, uma vila também não é. Os grandes fatos que nela se deram a colocam acima dos povoados comuns. Incrustada numa montanha, sua configuração mítica reproduz a seu modo o personagem que lhe deu o nome: Amadour, que tendo vivido ao lado da Santíssima Virgem, como seu criado, tornou-se grande e miraculoso santo.

Paris - Zaqueu, judeu de Jericó, era tão pequeno que, dele dizem os Evangelhos, para melhor contemplar a passagem do Mestre por sua cidade, subiu numa árvore.

Notando seu enlevo, Jesus o chamou e lhe disse que pernoitaria em sua casa. Essa honra marcou sua conversão.

Segundo imemorial tradição existente entre católicos franceses, após a Ressurreição de Jesus, não podendo mais servir o Mestre, Zaqueu tornou-se criado de sua santa Mãe.

Após a Assunção aos Céus de Maria Santíssima, não podendo mais servir à Mãe do Mestre, fez Zaqueu como fizeram Lázaro e Maria Madalena: veio servir àquela que futuramente seria, entre as nações, a primogênita da Igreja, a França, então denominada Gália. Nesse território de missão, Zaqueu era chamado de Amadour. Viveu no sudoeste francês, não longe da fronteira espanhola, solitário, nas grutas do penhasco hoje conhecido como Rocamadour.

Uma única rua e incontáveis milagres

Foram essas grutas que visitei no frio mês de fevereiro último. Elas estão hoje transformadas em oratórios, ou fazem parte de igrejas construídas de modo a contê-las.

Havia neblina e um pouco de neve na tarde em que cheguei. Poucos ousavam circular pela única rua da cidade, à qual a névoa emprestava um acréscimo de silêncio e tranquilidade. O ar gélido, agradavelmente defumado pelo odor de lenha queimada, fazia pensar em lareiras acesas e chocolates fumegantes, notáveis na região.

Aqui, um morador encapotado desponta num portão rústico de velha moradia. Lá, atravessa, também encapotado, o portal gótico de um antigo edifício, um religioso, talvez. Vendo um estranho naquele mundo tranqüilo, esboçavam um movimento de desagradável surpresa. Entre cachecol e touca, notava semblantes franzidos.

Mas um rápido raciocínio, logo desfazia neles a má impressão. Não sendo esta a estação de turistas, o visitante - no caso, eu - bem poderia ser um peregrino. E se o fosse realmente, não seria um intruso. Era bem-vindo. Vinha honrar os lugares de sua cidade. E assim... a aproximação se dava, transformava-se em troca de amabilidades, informações e relato das mil histórias locais, milagres portentosos ali realizados.

Foi assim que fiquei sabendo bem mais do que aqui narro. E, na previsão de fazer chegar estas notas a CATOLICISMO, muni-me, enquanto lá estive, de alguns documentos para melhor apoiar a narração. Em grande parte, eles me foram cedidos por um apaixonado colecionador de crônicas históricas da cidade, antigo tabelião do município, com quem mantive boa camaradagem. Pudera: ele tinha em mim ouvidos frescos a quem narrar suas antigas novidades. Eu não me saciava de seus contos. E quantos ouvi junto a vidraças embaciadas de um pitoresco restaurante, onde crepitava em magnífica lareira um fogo aconchegante! Remexíamos intermináveis xícaras de chá (o café torna trêmulas as mãos, o que não vai bem para um tabelião - explicava-me com mesuras e desculpas, pois sendo eu brasileiro e o Brasil grande exportador do produto recusado... ), ele falava, eu ouvia e perguntava.

Prodigiosa descoberta

Rocamadour foi sem dúvida escolhido pela Providência para ser um desses lugares onde grandes prodígios se sucedem. Desde os primeiros tempos do cristianismo sabia-se que por ali repousava o corpo de Amadour. Mas onde exatamente? Numa das grutas, um oratória, dedicado ao Santo, é há séculos lugar de oração e milagres.

Eis o que relata o abade do mosteiro-fortaleza do Mont Saint- Michel, Robert de Torigny, em 1170.

No ano da Encarnação de 1166, um habitante da região, achando-se em seus últimos instantes, pediu aos seus, sem dúvida por inspiração divina, de enterrá-lo à entrada do oratório. Cavando a terra, encontrou-se o corpo de Amadour, bem inteiro; foi colocado na igreja, junto ao altar, e assim é exposto, integro, aos peregrinos.

A descoberta do corpo de Santo Amadour multiplicou as peregrinações. Reis e santos ali foram rezar ao longo dos séculos. Multidões passaram contritas por aquelas rochas.

São Francisco de Assis lá esteve. São Luís com sua mãe, Branca de Castela, e seus irmãos juntaram-se ao longo cortejo dos peregrinos.

Navas de Tolosa

Dentre as crônicas, a do monge Alberico constitui uma das mais belas páginas dos milagres de Rocamadour. Havia em Rocamadour um religioso sacristão a quem a Bem-Aventurada Virgem apareceu três sábados seguidos, tendo em sua mão um estandarte enrolado e ordenando-lhe que fosse levá-la de sua parte ao pequeno rei de Espanha, que deveria combater os sarracenos. O sacristão alegou a pouca consideração dada à sua pessoa – não acreditariam em suas palavras. O preço de suas resistências foi sinal para sua morte, ocorrida no terceiro dia. Mas só morreu depois de comunicar esta revelação ao prior, que recebeu então o encargo de cumprir o desígnio, ao qual estava ligada a ordem de não desdobrar o estandarte antes do dia do combate; e, mesmo nesse dia, não o desdobrar antes de uma necessidade extrema. O prior de Rocamadour executou fielmente o desígnio, comparecendo pessoalmente ao campo de batalha. O estandarte levava a imagem da Bem-Aventurada Maria tendo em seus braços seu Filho, e aos pés o símbolo que o rei de Castela, chamado o pequeno rei, tem o costume de levar em seu próprio estandarte.

Essas aparições ocorreram em 1212. Os mouros ocupavam uma parte da Espanha. Os reis de Castela, Navarra e Aragão unem seus guerreiros

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