P.18-19 | HAGIOGRAFIA | (continuação) Por isso mesmo ele não é bem visto pelos negros norte-americanos partidários da Teologia da Libertação, como se deduz das palavras do Pe. Michael Pfleger, pároco de Santa Sabina, em Chicago, que, em declaração ao "New York Times" sobre a possível canonização de Toussaint, afirmou: "Creio que os católicos negros agora já escolheram seus próprios santos, e o abono de Roma é desnecessário". E prossegue o diário norte-americano: "Orgulhosa congregação de 900 famílias de afro-americanos, Santa Sabina fez um altar para um dos seus ‘santos’, colocando nele um busto de Martin Luther King Jr. com o fundo vermelho, preto e verde da liberação negra".(3) Vê-se por que "devotos" de um líder pacifista revolucionário negro, além de pastor protestante, não o podem ser de Pierre Toussaint! Pierre Toussaint, durante muitos anos, assistiu Missa na velha igreja de São Pedro, em Nova York. É bem verdade que ele, em lugar da sociedade vivida como uma "cascata de desprezos rolando de cima para baixo do alto da hierarquia social" –– no dizer de um líder revolucionário –– encontrou, na família à qual servia, um ambiente de mútua afeição e compreensão entre senhores e escravos. Essa situação, se não era a norma geral, também existia, e representa uma outra face da realidade que é preciso levar em conta sob pena de se ser unilateral.(4) A grandeza de alma desse humilde escravo surge por inteiro e impressiona profundamente na dedicação à sua senhora, caída em desgraça. Ele, por sua aplicação e talento, vai se tornando o cabeleireiro mais em moda de Nova York. Ela, pelo contrário, exilada e sem parentes, em terra estranha, quase num só golpe perde o marido, as propriedades e as rendas. Toussaint não vê aí ocasião para rebaixá-la ou humilhá-la, vingando-se com ressentimento ou rancor de qualquer coisa que pudesse ter surgido entre ambos, no convívio diário. Nem cede à má propensão de nossa natureza decaída de, quando uma situação se inverte, fazer com que os que estavam em cima passem a sentir o ônus da dependência. Ainda mais em se tratando de duas posições extremas, como a de senhora e escravo. Sua dedicação e verdadeiro enlevo por Marie Bérard, em desgraça, leva-o ainda a maiores atos de abnegação e desinteresse, chegando mesmo a um ponto que bem poucos bons filhos atingem em relação aos próprios pais. Tal dedicação heroica, que nos enche de entusiasmo, só pode provocar estranheza e hostilidade da parte de certos clérigos "engajados" e "comprometidos" de hoje. Veja-se esta declaração: "No começo da revolta dos escravos, o que Toussaint fez foi fugir dessa luta pela liberdade", disse o Rev. Gilles Danroc, padre francês do Vale de Artibonite. "Temos que nos perguntar: a Igreja está encorajando o modelo do escravo dócil, que segue seu senhor e espera pacientemente sua alforria?".(5) Em outras palavras, a prosperidade não lhe virou a cabeça, a fantasia, ou o coração. Vimos em anterior artigo como ele se esmerou em amparar sua antiga dona, não só no necessário, mas até se comprazendo em lhe proporcionar algum tanto do antigo luxo a que estava habituada. E se sentia satisfeito e recompensado quando conseguia suavizar um pouco a tristeza mortal que a atingira após tantas desgraças.

Contente com sua condição e com sua cor

Euphemia, sobrinha de Pierre Toussaint, foi adotada por este quando se tornou órfã de mãe. Duas foram as notas constantes que acompanharam Toussaint em todas as circunstâncias de sua vida: a alegria no servir, e uma perfeita e despretensiosa conformidade com a vontade divina. Essas tônicas predominantes de seu caráter se manifestavam mesmo no fato de ser preto e escravo. Eis um pequeno mas encantador exemplo disso, narrado por ele mesmo àquela que foi depois sua primeira biógrafa. Falando de sua sobrinha e filha adotiva, conta ele: "No dia do santo de Eufêmia, eu sempre a levava a uma confeitaria onde enchíamos uma cesta com bolos, biscoitos e pães de gergelim que carregávamos ao Asilo" (de crianças brancas, que ele ajudara a fundar e a manter). "E aí você a deixava distribuir tudo entre as outras crianças?", pergunta-lhe sua interlocutora. "Oh!, não, Madame. Isso não seria próprio à pequena menina negra", responde. "Eu lhe dizia que perguntasse a uma das Irmãs se poderia fazer esse favor. Eufêmia ficava ao meu lado esperando. E quando as crianças, muito contentes, recebiam os regalos, minha Eufêmia ficava tão feliz!" Que nota de superior grandeza e magnanimidade!.(6) Ora, esse habitual estado de espírito não se consegue sem a prática da virtude em grau insigne. Juliette Noel, esposa de Pierre Toussaint, participou generosamente das obras de caridade por ele promovidas Segundo seus biógrafos, Toussaint também "evitava falar sobre o tema da escravidão", entretanto tão candente. Por quê? Não porque não amasse e desejasse ardentemente a liberdade para si e para todos os seus irmãos de raça. O fato de ter comprado a alforria de sua irmã e a de sua futura mulher o comprova. A resposta talvez esteja no fato de que, já na época, esse assunto era explorado com uma carga de paixão muito forte. E repetiam-se banalidades que, embora verdadeiras, eram apresentadas de modo acentuadamente demagógico. Aliás, como se faz muito frequentemente hoje em dia com temas como "racismo", "miséria", "ecologia" e tantos outros. Toussaint não era suficientemente instruído para fazer apologias tomistas da necessidade da desigualdade no corpo social como melhor modo de refletir as perfeições de Deus. Nem, tampouco, para fazer pregações anti-igualitárias. Sua vida, no entanto, foi um testemunho vivo e contínuo do amor desinteressado à hierarquia e às desigualdades sociais, e de conformidade amorosa com os desígnios da Providência a seu respeito.

Ascensão social, e não castas

Isto suscita outra consideração. É realmente uma mancha para um país o haver nele um grupo racial, étnico ou social, que não possa, por virtudes eminentes ou ações extraordinárias, ascender ao mais alto ponto da escala social. (Aliás, as ações extraordinárias geralmente não aparecem onde não há virtudes). Isso equivale a estabelecer um regime de castas. Pierre Toussaint é um exemplo marcante da possibilidade de ascensão social. Da mais humilde extração, por seu esforço, méritos e virtudes, chegou a tornar-se "o mais amado negro de Nova York", sendo mesmo ali considerado, por pessoas da mais alta sociedade, como "um consumado gentil-homem". E isso se reflete até em suas fotos.

Todos o honravam enquanto católico

Evidentemente, para praticar uma virtude que tanto choca as más tendências do pecado original e as da época, é preciso uma assistência contínua da graça e o cumprimento dos Mandamentos de modo exímio. Pierre Toussaint, por isso, não pode deixar de ter sido sobretudo um homem eminentemente religioso. E esse é o seu maior título de glória. Vivendo em meio a uma maioria esmagadoramente protestante –– apenas 2 mil católicos numa população de 30 mil habitantes ––, ele ostentava sua fé com convicta naturalidade. "Sua religião era fervorosa, sincera –– declara uma antiga cliente –– e fazia parte de si próprio. Nunca ele a deixou de lado por algum interesse mundano".(7) Quer dizer, não foi ao preço de sua fé que ele encontrou a estima geral. E seus contemporâneos são unânimes em afirmar que "todos o honravam enquanto católico". Essa foi sua maior glória e a razão pela qual sua memória é lembrada até nossos dias; e caso seja ele elevado à honra dos altares, até a consumação dos séculos. Notas: 1 –– Ellen Tarry, The other Toussaint, St. Paul Edition, Boston, 1981, p.359. 2 –– Catolicismo, nº 485, maio de 1991, pp. 14 a 16. 3 –– Deborah Sontag, Canonizing a Slave: Saint or Uncle Tom? Is Sainthood Choice an Uncle Tom?, New York Times, edição metropolitana, 23 de fevereiro de 1992, 1ª página. 4 –– Diga-se de passagem que o afeto católico, quando bem compreendido e vivido tanto pelos de cima quanto pelos de baixo da escala social, ameniza e torna flexíveis e praticáveis as desigualdades. Torna-se uma fonte de harmonia social e mesmo de santidade. 5 –– "New York Times", ibidem. 6 –– Annah Saw Lee, Memoir of Pierre Toussaint, Born a slave in St. Domingo, Crosby, Nichols and Company, Boston, 1854, pp.51,52. Também em Ellen Tarry, op. cit. p. 263. 7 –– Annah Saw Lee, op. cit., p. 109. * Outras obras consultadas: Arthur e Elizabeth Odell Sheehan, Pierre Toussaint - A Citzen of Old New York, P.J. Kennedy & Sons, New York, 1955. The Quiet Man, in The Anthonian, The Franciscans of Paterson, N.J. (USA), 1974.
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