P.22-23 | BRASIL REAL, BRASIL BRASILEIRO |

A paranóia do gás

Leo Daniele Vejo "Catolicismo" elogiar com frequência o Brasil. Será que minha querida e prestigiosa revista não está caindo em certo ufanismo balofo?
Não entendo como uma publicação habitualmente tão objetiva se encantou de repente com o "oba-oba" tropical deste pedaço do "terceiro mundo".
Escrevo numa manhã ensolarada de sábado. A um metro de mim está a janela. Para além, já é a rua... Ou melhor, uma pequena e animadíssima feira. Uma feira do Brasil. Quase não seria preciso ir ao parapeito para ver o que se passa. A feira vai alta. Os vendedores, com medo de voltarem com suas mercadorias, redobram seus pregões, que se mesclam com a conversarada solta e alguns risos. Tudo isso entra por minha janela, junto ao cheiro de salsinha, de azeitonas e de queijo parmesão. –– "Leva 6, freguesa, e paga 5". Ufa! Até que enfim se encontra algum lugar no mundo onde os fregueses são fregueses mesmo, e não "clientes", como quer a afetadíssima moda comercial! Os pregões às vezes exageram "um pouquinho". Por exemplo, acabo de ouvir de um vendedor de laranjas que "até o caroço é doce". Mas esse exagero é encarado com bonomia. Ninguém pensa em acionar o Código de Defesa do Consumidor só por causa disso.

Ao menos no Brasil.

Num canto, um menino vende alguns passarinhos que ele mesmo capturou, atestando com isso que, apesar de tudo, nos encontramos numa economia de mercado, "para ninguém colocar defeito". Uma senhora gorda, rebocada por um menino que segura sua mão esquerda, com a direita arrasta um carrinho de compras. Pluf! Tinha que acontecer! As rodas de seu carrinho engancham nas do carrinho de uma preta magrela com lenço branco à cabeça, que vinha em sentido contrário. Xingatório? Nenhum. Elas acham graça e se põem a conversar. A prosa rola talvez sobre alguma receita de cozinha. E assim, na compra, na venda e na flanação, avança esse teatro vivo, cujo "script" ninguém compôs, e o qual felizmente nenhuma "FEIRABRÁS" teve a ideia de patrocinar. Seria, na certa, a morte das feiras! Permitam-me dizer que, apesar de toda essa balbúrdia, a feira é a seu modo calma e até distensiva. Uma calma e uma distensão que não se encontram absolutamente no metrô de São Paulo, tão "primeiro mundo". Assim é em toda parte a feira, desde o "Ver-o-Peso", em Belém do Pará, até o curiosíssimo "Brique da Conceição", em Porto Alegre. Animada, gentil, colorida, mexeriqueira mas sem maldade, barulhenta, cheia de charme, exuberante de bom-senso e enormemente eficiente para sua finalidade própria: a compra e a venda. Ah! É tonificante passear numa feira, mesmo sem comprar nada! Mas a cena muda. Chega a hora do fim e as barracas são desmontadas. A rua é lavada. Que ouço a todo momento? Caminhões de gás com alto-falantes de uma potência desproporcional, expulsando com brutalidade o charme que a feira deixara pairando no ar... Esclareço, para os leitores que não são de São Paulo e que vão pasmar-se com o fato, que aqui os vendedores de gás não podem, como o resto do gênero humano, apertar a campainha e esperar, para serem atendidos. As bocas de seus alto-falantes despejam então, a todo momento, para atrair a atenção da clientela, músicas deslocadas para esse fim como a "Für Elise" de Beethoven e outras nem um pouco ilustres. Vários caminhões costumam passar ao mesmo tempo, provocando enorme cacofonia, e a rua da feira se transforma numa espécie de manicômio sonoro. É outra forma de fazer a mesma coisa que a feira: vender. Mas... que diferença! Onde foi o bom-senso do Brasil? Oh! a feira e o gás! Coisas corriqueiras e sem importância! Para alguns, sem importância. Mas para muitos estrangeiros, no caso da feira, fonte de encanto. Se quisermos conhecer o espírito de um país, é preciso saber analisar com profundidade também as coisas comuns. É aí que, muitas vezes, o espírito de um povo se revela por inteiro, em sua autenticidade. Melhor do que na ordenação frequentemente artificial dos livros, na simplificação deformadora das estatísticas, ou em chavões surrados como este de "terceiro mundo". Repudio com o leitor o "ufanismo balofo", que fecha os olhos para, por exemplo, esta paranoia do gás. Mas tenho no coração muita coisa que ainda resta de maravilhoso e de bom em nosso país. Aí está, por exemplo, o Brasil dos balões, dos rodeios, dos repentistas, do vatapá. Da plasticidade dos empresários brasileiros. De Salvador e Ouro Preto, dos Profetas do Aleijadinho. Da inteligência e da intuição, do charme e da improvisação, da bondade –– e do luar do sertão.
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