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Uma "Reforma Agrária" confusa

Atílio Guilherme Faoro Um fato novo: o Governo pretende comprar e não desapropriar terras. Mas, com "títulos podres"! –– É um projeto "pra" valer, ou para inglês ver? Anunciado várias vezes no ano passado, e lançado com certo espalhafato no começo deste ano, o projeto de Reforma Agrária do Governo Collor traz consigo a marca da confusão. Confusão que aparece já no uso da expressão Reforma Agrária, largamente utilizada pela mídia e pelos meios oficiais para referir-se ao Plano, batizado com o nome de "Programa da Terra". Qualquer brasileiro razoavelmente informado sabe que a expressão Reforma Agrária, desde a década de 60, é utilizada, no Brasil, por um movimento que visa nivelar a propriedade rural, desapropriando terras a preço vil, para depois loteá-las e nelas "assentar" os chamados "Sem-Terra". O caráter igualitário, socialista e confiscatório da Reforma Agrária fez com que ela se transformasse na principal bandeira das esquerdas em nosso país. Assim, Reforma Agrária tornou-se sinônimo de socialismo confiscatório em marcha, rumo à supressão do direito de propriedade no campo. O que não é diferente do comunismo agrário fracassado na ex-URSS e que acaba de fracassar também no México [veja-se nossa edição de junho/92].

Confusão agrária

Ora, no "Programa da Terra" aparece um fato novo. O Governo quer fazer a Reforma Agrária, mas sem desapropriações confiscatórias: as terras necessárias serão compradas, segundo dispõe projeto de lei apresentado no Congresso pelo Executivo. A ser assim, não estaríamos diante de um plano de Reforma Agrária socialista e confiscatória com as características acima enunciadas. Mas, se este é o "Programa da Terra", por que então chamá-la de Reforma Agrária? Terá a mídia o propósito de fazer passar gato por lebre, isto é, "vender" a idéia de uma Reforma Agrária socialista e confiscatória, quando, na realidade, prepara-se um plano que em nada fere o direito de propriedade? Estaríamos diante de um projeto lançado apenas para inglês ver, ou seja, para atingir efeitos publicitários internos ou externos? TÍTULOS DA DÍVIDA AGRÁRIA

"Título podre", "Cheque sem fundo", "Confisco". Estes são alguns dos sinônimos dos TDAs, Títulos da Dívida Agrária, utilizados pelo Governo como forma de pagamento nas desapropriações para fins de Reforma Agrária.
Trata-se de um grande calote de porte nacional, que o ex-Consultor-Geral da República, advogado Clóvis Ferro Costa, assim analisou: "Os TDAs há mais de dois anos não são pagos, por uma divergência entre a área agrícola e a área econômica. Na verdade, o TDA vem funcionando como um confisco –– o Governo decreta a desapropriação de terras e depois não paga nem os juros, quando pela Constituição teria que somar também a correção monetária a esses títulos. Resultado: os TDAs valem hoje 15% de seu preço no mercado" ("Jornal do Brasil", 22-10-89) .
O panorama complica-se com outro elemento, também introduzido no "Programa da Terra". Não se pode condenar moralmente um plano que pretenda comprar terras, pagando aos proprietários, que livremente as vendam, o preço justo, à vista e em dinheiro. Ora, no "Programa da Terra" encontramos a singularidade de que o Governo vai pagar as terras com Títulos da Dívida Agrária, os famosos TDAs! Como se sabe, esses títulos são considerados "podres", pelo fato de estarem fortemente desvalorizados. Notícias recentes revelam que os TDAs são depreciados em até 90% de seu valor real.(1) Além de desvalorizados, os TDAs só são resgatáveis a partir do segundo ano, num prazo de até 20 anos. O Governo, por razões financeiras, não está podendo resgatar esses títulos, que vêm sendo considerados por isso como "verdadeiros cheques sem fundo".(2) Segundo notícias de imprensa, já no início deste ano, o Governo tinha uma dívida em TDAs vencidos no valor de 200 milhões de dólares, e mais 800 milhões a vencer a curto e médio prazos .(3) Nestas condições, causa perplexidade ver o Governo anunciar que vai pagar as terras com TDAs. Dificilmente encontrará ele quem queira vender terras nestas condições. O Governo não pode ignorar essa circunstância. Assim, como pretende ele que seu .plano de compra e venda de terras tenha sucesso? Mais uma vez, parece que estamos diante de um programa inviável, feito apenas para efeitos propagandísticos. Por causa disso, analistas políticos chegaram a chamá-lo de "lance demagógico", "plano muito vago", "exotismo típico do Basil".(4) Do próprio Ministro Antonio Cabrera saiu este surpreendente comentário: "Estou dando um salto no escuro".(5) Carente de lógica e de substância, confuso no seu real alcance, o projeto governamental vai rolar agora pelas comissões do Congresso, que dificilmente poderão apreciá-lo nos próximos meses. Senadores e deputados estão ocupados com o pleito eleitoral deste ano. Por que não uma política agrária sadia? Neste emaranhado caótico de projetos e planos governamentais, quem perde é o Brasil. Ficará ele mais uma vez esperando de seus legisladores uma política sadia para o setor agrícola. Isso só acontecerá quando o Governo adotar uma efetiva assistência técnica, sanitária e educacional, e aplicar uma sábia e estável política de créditos e preços agrícolas. E, sobretudo, quando tiver a coragem de eliminar os inúmeros vícios e entraves da burocracia estatal, herdados de leis e programas socialistas e socialistóides, ultrapassados no tempo e no espaço, mas que perduram em nossa legislação e nas rotinas governamentais. Notas: 1- Cfr. "Gazeta Mercantil", "Governo pretende assentar 400 mil famílias até final do mandato", 31-10-91. 2- Cfr. "Jornal de Brasília", "Desapropriação sem pagamento", 19-1-92. 3- Cfr. "Jornal de Brasília", "Cabrera erra dados sobre Reforma Agrária", 19-1-92. 4– Cfr. "Veja", "O Ciac do campo", 1-1-92 e "Estado de S. Paulo", "Demagogia e desperdício", 29-1-92. 5- "Veja", "O Ciac do campo", 1-1-92. PRIMEIRO ASSENTAMENTO DE COLLOR

"Fomos abandonados"

Um ano e meio depois de homologado, o primeiro projeto de Reforma Agrária do Governo Collor, o "Coqueiral", em Nobres (MS), está paralisado.
Segundo notícia da "Folha de S. Paulo" (11-12-91), as 82 famílias assentadas pelo INCRA, em julho de 1989, ainda esperam a demarcação dos lotes...
"Fomos abandonados", declara o assentado Zeferino Dorneles. "Além de não demarcarem a área, também não nos dão nenhum incentivo para o plantio ou mesmo para a nossa sobrevivência". Na realidade, acrescenta Zeferino, "não existe produção".
O dinheiro para a demarcação dos lotes foi definido em agosto de 1990 –– 125 milhões de cruzeiros –– mas só foi liberado em maio de 1991 , sem correção, e foi todo gasto em obras preliminares, como construção de estradas.
Enquanto não chega mais dinheiro, os assentados, abandonados à própria sorte e transformados em favelados do campo, sobrevivem graças a trabalhos que realizam nas fazendas vizinhas. Algumas famílias já estão abandonando o projeto, antes mesmo que ele seja implantado.
Muitos assentados já enviaram mulher e filhos de volta para seus lugares de origem, no Rio Grande do Sul. "Lá pelo menos eles têm o que comer", afirma Leciar Nolio, que mandou a família retornar a Ronda Alta.

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