Cônego José Luiz Villac
Pergunta — Primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo esforço em defender a Fé católica. Eu gostaria de poder ter a habilidade de defendê-la num mundo secularizado, como tem o senhor. Mas como não tenho essa habilidade e, quando falo, mais irrito a plateia do que a convenço, decidi restringir minha ação à oração pelos incrédulos, para não prejudicar a Igreja. Vivo em angústia constante ao ver tantas almas no erro diante de mim, pouco podendo fazer para salvá-las da morte eterna. Também sou provado em minha solitária certeza, pois todos à minha volta dizem que sou um acadêmico esquizofrênico: um homem irracional, supersticioso, contraditório e até louco! Diante de tantos cientistas e homens considerados sábios, que dizem que o Cristianismo é pura mitologia, como não tenho tanto conhecimento científico quanto muitos ateus e agnósticos, tentações de incredulidade me assaltam, mas misteriosamente nunca tiveram sucesso sobre mim.
Em segundo lugar, gostaria de dizer que li sua resposta na revista Catolicismo de novembro de 2004, elogiosa em relação à Inquisição. Quanto a isto tenho algumas perguntas. O senhor diz: “Porém isso (os abusos meramente humanos e nunca inerentes à instituição) não é motivo para condenar generalizadamente essas instituições (Inquisição)”.
1. Ora, parece ser fato inconteste, e aceito até pela própria Igreja, que tal instituição usava formas de tortura, com aprovação papal e conciliar. Se a tortura era branda ou severa, não é relevante: usava tortura de forma institucional/ordinária e ponto.
2. Também é fato notório que se trata de um Tribunal de consciência, em que um herege era coagido, sob ameaça de condenação à morte horripilante, a professar publicamente a Fé católica e a se converter.
3. Se é verdade que era o tempo em que “a filosofia do Evangelho governava os Estados”, pode-se dizer que a prática legal e frequente da tortura para extrair confissões era um reflexo do esplendor da Igreja e uma manifestação da harmonia dos tribunais civis com os princípios do Evangelho? Por que a Igreja nunca censurou os governantes, até o século XVIII, para que abolissem completamente a tortura nos Estados católicos?
Resposta — A pergunta se divide nitidamente em duas partes distintas: a primeira se refere à polêmica que o missivista trava com ateus e agnósticos que ridicularizam a Igreja; e a segunda visa esclarecer o elogio que fizemos à instituição da Inquisição. Respondamos a cada uma na sua devida forma.
O responsável por esta coluna não é especialista em questões científicas, como aliás grande parte dos leitores desta revista também não é, e o próprio missivista parece não ser. De modo que a maioria de nós não está em condições de travar uma discussão com cientistas agnósticos e ateus, no campo especificamente científico.
Acontece que a discussão sobre problemas religiosos não se trava apenas no campo científico, mas voa mais alto e abrange também e prioritariamente os pressupostos que governam as ciências naturais, os quais se encontram no campo metafísico. Isto é, no campo que está além da física, que é o significado da palavra grega metafísica (metá = além de). É muito comum que os cientistas agnósticos e ateus se limitem a analisar os fatos que têm diante dos olhos, sem se perguntarem sobre as causas desses fatos, sobretudo sobre a Causa inicial, que deu origem a tudo, isto é, Deus. Precisamente por isso são agnósticos e ateus... Arrogantes e presunçosos, e vendo-se impotentes para cientificamente aniquilar a Religião, máxime o Cristianismo, esforçam-se por ridicularizá-los como um conjunto de mitos, com os quais eles, homens superiores, desdenham se preocupar.
Assim, meu conselho ao missivista é que absolutamente não se desencoraje. Analise, se quiser, os pronunciamentos dos cientistas agnósticos e ateus, e procure neles o grande furo metafísico que invalida suas pretensas conclusões antirreligiosas. O ateísmo deles é um apriorismo que não se sustenta à vista das provas da existência de Deus –– mesmo no campo meramente natural, independente da Revelação –– que a Igreja ensina com tanta sabedoria. Ciência sem sabedoria é como estudar com lupa a pata de uma formiga, sem se dar conta de que ela pertence à formiga.
Abusos, como os que o missivista aponta na Inquisição, os houve –– muito excepcionalmente –– sobretudo na segunda fase dessa instituição, em que ela foi desviada, especialmente em algumas regiões, para fins políticos. Sem querer aqui aprovar nenhum deles, é preciso entretanto ter em conta a época em que se deram. As torturas, por exemplo –– aplicadas pelo Poder Civil, após julgamento e sentença do tribunal do Santo Ofício declarando que tais doutrinas erradas (heréticas), se divulgadas, levariam à conturbação da ordem na sociedade temporal –– não constituíram usos característicos da Inquisição, mas faziam parte dos costumes de uma época recém-saída das invasões bárbaras. A Igreja exercia sobre as populações uma ação não só religiosa, mas civilizatória, que visava aos poucos mudar os costumes bárbaros, coisa que não se consegue de uma hora para outra. A época medieval foi elogiada por Papas exatamente pelo fato de que aqueles povos, sob a ação dos princípios cristãos, mostraram-se dóceis à influência católica e foram aos poucos mudando seus hábitos e costumes no que eles ainda tinham de muito rebarbativo e pagão. Os neopagãos de nossos tempos, ao invocar tais costumes para transformá-los num libelo contra a Igreja, de fato mostram-se mais anticatólicos do que defensores da liberdade. Numa época tão longa quanto a Idade Média (10 séculos no total), vista em seu conjunto, houve lugar para coisas excepcionalmente reprováveis, mas sobretudo muitas outras amplamente luminosas. É preciso analisá-la no seu desenvolvimento geral, que levou a um alto grau de civilização, acabou com a escravidão da Antiguidade (a qual só retornaria depois, no Renascimento), e sobretudo produziu um surto de amor de Deus e do próximo, que se refletiu nas almas e nas instituições da vida civil. O elogio que fiz da Inquisição supõe exatamente a consideração desses abusos como extrínsecos à instituição. Creio ter sido bem claro a respeito, o que, aliás, o missivista reconhece.
O que não o impede de fazer perguntas muito agudas a respeito. Respondo-as concisamente.
Pela doutrina da Igreja, não se pode forçar a conversão de ninguém. O que a Inquisição exigia era que o herege cessasse de propagar os seus erros, pois é obrigação da Igreja velar pela salvação das almas, especialmente preservar os fiéis das heresias.
Diante da ameaça de uma epidemia, qualquer governo tem obrigação de fazer tudo que estiver a seu alcance para evitar que os cidadãos sejam atingidos por ela. Daí as barreiras sanitárias, a proibição de entrada no país de pessoas suspeitas de haver contraído a doença, o confinamento dos empestados, etc. Ora, os males que atingem a alma têm consequências muito mais graves do que aqueles que atingem o corpo, pois podem levar a uma morte muito pior, que é a morte eterna. Ensina Nosso Senhor: “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena” (Mt 10, 28).
Portanto, a Igreja não pode tolerar que o herege procure angariar adeptos nas fileiras católicas. Inter parietes, o herege podia professar a sua crença, sem contudo procurar atrair para o seu culto falso os fiéis católicos. Se o fizesse, nos tempos da Cristandade medieval, em que havia união entre a Igreja e o Estado, a Igreja apelava para o braço secular, a fim de impedir esse proselitismo que punha em perigo as almas, com redundâncias, também, no bem-estar social. Daí o nosso elogio à instituição enquanto tal. Que nem sempre os inquisidores ficaram dentro dos justos limites, é fato bem comentado. Bastaria lembrar o caso emblemático de Santa Joana d’Arc, executada em praça pública, em Rouen, após um julgamento iníquo de um Tribunal da Inquisição. Mas a própria Igreja depois a reabilitou, num processo regular de outro tribunal eclesiástico, e por fim a canonizou, propondo-a como modelo de santidade para todos os fiéis. O que mostra que a Igreja não teme admitir os erros cometidos por seus membros.
Por fim, quando o Papa Leão XIII elogiou a Cristandade medieval, dizendo que nela a “a filosofia do Evangelho governava os Estados”, nem por isso se deve concluir que a Idade Média alcançou em todos os pontos a plenitude da aplicação dos princípios do Evangelho. Ela foi apenas um auge historicamente alcançado, não a plenitude de perfeição. Os princípios estavam postos, mas o seu pleno desabrochamento, em alguns pontos, se deu apenas séculos mais tarde, já no Ancien Régime. Neste último período histórico, por sua vez, se verificou um retrocesso agudo de outros princípios do Evangelho em pontos até mais fundamentais. Em diversos outros pontos, nunca se conseguiu um desabrochar pleno da Civilização Cristã, sobretudo devido ao advento do processo revolucionário que corroeu a pós-Idade Média. Mas aqui seria preciso um longo desenvolvimento histórico, que o leitor encontrará com facilidade no livro Revolução e Contra-Revolução, do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, que mais de uma vez temos recomendado a nossos leitores.
Legenda: Execução de Sta. Joana d’Arc (Rouen, 1431)