(continuação)
do prédio, e todas as janelas foram caiadas de branco. Nicolau II tinha permissão de passear num pequeno jardim, apenas duas horas por dia. E o Tzarevitch Alexei, de 13 anos, sofrendo de hemofilia, estava acamado praticamente o tempo todo.
No dia 27 de junho de 1918, o chefe do soviete local, Jacó Jurovski, assumiu o comando na casa de Ipatiev. "Vimos o novo Comissário — seu rosto é muito desagradável" — anotou em seu diário a Tzarina.
No dia 16 de julho, Alexandra escreveu em seu diário: "Joguei cartas com Nicky. Às 10 horas, para a cama. 15 graus". O repouso da família imperial não duraria muito: "O pelotão de fuzilamento já estava pronto na sala ao lado, os Romanov não suspeitavam de nada" — relatou Jurovski mais tarde.7 Por ordem direta de Lenine e de Jacó Sverdlov, seu braço direito, Jurovski tinha sido escolhido para encarregar-se do massacre, como se verificou depois de abertos os arquivos soviéticos.
Por volta de 1h30min da manhã foram todos despertados, com ordem de se dirigirem ao porão, sob o pretexto de que havia tumultos na cidade. Meia hora depois, o Tzar, a Tzarina, seus cinco filhos, a dama de companhia, o médico e dois criados foram conduzidos ao andar de baixo. Jurovski entrou no pequeno cômodo, acompanhado de guardas armados. Suas memórias relatam com frieza brutal a tragédia:
"Quando o destacamento entrou, eu disse aos Romanov que, pelo fato de seus parentes continuarem a ofensiva contra a Rússia soviética, o Comitê Executivo do Soviete do Ural decidira fuzilá-los. Nicolau deu as costas ao pelotão e encarou a família. Então, como se recompondo, tornou a encarar-me, perguntando: 'O quê? O quê?'. Repeti rapidamente o que dissera, e ordenei ao pelotão que se preparasse. Todos estavam devidamente instruídos sobre quem fuzilar, visando diretamente no coração, a fim de evitar muito sangue e maiores delongas. Nicolau não pronunciou mais nenhuma palavra, voltando-se novamente em direção à família. Os outros gritaram algumas exclamações incoerentes. Tudo isso durou alguns segundos. Os tiros demoraram dois ou três minutos. Eu matei Nicolau no ato" .8
A morte do Tzar foi imediata. O mesmo não se deu com a Tzarina e as princesas, cujas joias costuradas em seus espartilhos faziam ricochetear as balas. Elas foram então mortas com tiros na cabeça. À jovem Anastásia, ainda respirando, desferiram golpes de baioneta. Quando o pequeno Alexei ferido ainda gemia, Jurovski chutou-lhe brutalmente a cabeça e lhe desferiu dois tiros no ouvido.
Os cadáveres, depois de saqueados, foram levados para uma clareira perto da aldeia de Koptiaki. Ali foram esquartejados, os rostos deformados por ácido sulfúrico, e depois queimados. Como versão oficial, os soviéticos espalharam a notícia de que a família do Tzar tinha sido "morta numa tentativa de fuga".
* * *
Na calada da noite, num porão de uma casa perdida nos Urais, com uma saraivada de tiros, em meio a gemidos e golpes de baioneta — assim se extinguiu uma dinastia multissecular.9 Pelo ódio bárbaro dos comunistas, cujos herdeiros se dizem hoje defensores dos direitos humanos...
Notas:
1. Inspiração e modelo sim, porque em 1918 o governo bolchevique estava reduzido a um estado de "cadáver ambulante" — como disse na época um alemão residente em Moscou — , atacado de todos os lados e abandonado por muitos partidários. Para reter seus elementos radicais, era preciso um ato de caráter altamente simbólico e cruel, era preciso "queimar os navios" e prender à Revolução todos os indecisos, pelo laço da infâmia e de um grande crime. Leon Trotski admitiu-o em suas memórias: "A decisão de executar o ex-Tzar e sua família não foi apenas prudente, mas necessária. A severidade da punição mostrou a todos que continuaríamos a lutar sem piedade, sem nos determos diante de nada. Não se tratava apenas de amedrontar, aterrorizar e infundir o senso de desesperança no inimigo, mas também de sacudir nossas fileiras, demonstrando que não havia outra saída: vitória total ou ruína definitiva" (apud Richard Pipes, História Concisa da Revolução Russa, Edições BestBolso, p. 236).
2. Para se ter uma ideia dos crimes e desvarios praticados pela turba multa nos dias 27 e 28 de fevereiro de 1917, em São Petersburgo, vale a pena ler as Memórias da Condessa Kleinmichel, onde ela descreve de modo vívido e estarrecedor a invasão e depredação de seu palácio, presenciada através das janelas de uma mansão vizinha. Ver também: Douglas Smith, Der letzte Tanz – Der Untergang der russischen Aristokratie, S. Fischer, Frankfurt am Main, 528 pp.
3. No início de 1914, Lenine vivia em Cracóvia, subsidiado pelo governo austríaco. Foi confinado pelo governo polonês no início da guerra, mas logo libertado e levado sob custódia para a Suíça, onde permaneceu até 27 de março de 1917, financiado desta vez pelo governo alemão, desejoso de criar uma quinta-coluna dentro da Rússia. Calcula-se que o governo alemão deu aos bolcheviques 50 milhões de marcos, quantia suficiente na época para comprar 10.000 toneladas de ouro.
4. Sobre a história e atuação dos partidos de esquerda no período entre a queda do trono e o "putsch" bolchevique, pode-se consultar com proveito: Die russische Linke – zwischen März und November 1917, ed. Wladislaw Hedeler, Dietz, Berlin, 2017
5. De fato, já em julho os bolcheviques haviam tentado tomar o poder através de um golpe. Fracassaram, e Lenine fugiu novamente para o exílio na Finlândia, temendo ser preso e julgado como traidor pelo Governo Provisório.
6. Sovietes eram conselhos de operários ou de militares comunistas, durante a revolução russa de 1917.
7. Apud Jan von Flocken, Der Tod des Zaren Nikolaus und seiner Familie, Die Welt, 19.11.2010.
8. Apud Richard Pipes, op. cit., p. 234.
9. Um mês antes dessa tragédia, na noite de 12 de junho, o Grão-Duque Miguel fora fuzilado numa floresta nas cercanias de Perm, nos Urais, juntamente com seu secretário particular. Ao todo, os bolcheviques assassinaram 18 membros da Família Imperial.
LEGENDAS:
- Massacre da família imperial, e de alguns de seus incondicionais acompanhantes, no porão da casa de Ipatiev, em Yekaterinburg.
- Jacó Jurovski, comandante da bárbara execução.
- O sinal da brutal violência aplicada no crime ficou palpável nas paredes do porão e nas joias quebradas que as princesas tinham escondido costuradas em suas roupas.