Entre 1510 e 1511 o futuro heresiarca fez uma viagem a Roma, fato citado como importante em suas primeiras biografias, mas cujo verdadeiro objetivo ainda não foi esclarecido. O próprio Lutero afirma ter feito essa peregrinação em cumprimento do voto de fazer uma confissão geral na Cidade Eterna. Melanchton afirma ter sido para resolver uma "disputa monástica".
Sobre sua mocidade e vida no convento, Lutero declarou em 1526: "Sim, eu fui um grande, um triste, um vergonhoso pecador. Vivi e perdi culposamente minha juventude. Entretanto, resta ainda que meus pecados mais monstruosos foram de pretender ser um santo monge e de ter irritado, ferido e martirizado tão abominavelmente meu Mestre durante mais de 15 anos com tantas missas [celebradas de modo indigno]".9
Dispomos de poucas informações autênticas sobre a vida monástica de Lutero. As que possuímos são tiradas de suas próprias declarações, que biógrafos admitem ser francamente exageradas, frequentemente contraditórias e habitualmente enganosas.
De acordo com o axioma latino "nada de grande se faz de repente", somos levados a crer que o processo desse monge agostiniano rumo à apostasia e rompimento com a Igreja começara mais cedo, pois "Lutero sofria por causa de sua natureza melancólica e atormentada. Sofria também do vício inicial que o tinha conduzido ao convento: não foi o amor de Deus, nem o gosto pela vida monástica, mas uma inquietude, um impulso, o medo do julgamento de Deus, a angústia por sua predestinação. A tristeza e o abatimento estavam sempre às portas de sua alma, ameaçando submergi-la".10
De volta a Erfurt em 1511, separou-se dos agostinianos observantes e se aproximou de Staupitz, Geral da Ordem. Desde então não cessará de invectivar e agir contra os frades observantes do mosteiro e seus costumes. "Daí, em parte, seus ataques contra as obras, quaisquer que fossem, e [a elaboração de] sua teoria da justificação pela fé".11
Em 1512 Lutero foi nomeado subprior do convento, e no fim desse mesmo ano conseguiu seu doutorado em filosofia, sendo-lhe confiada uma cátedra de Sagrada Escritura. Em 1515 foi nomeado vigário de um distrito, o que correspondia a ser inspetor de onze conventos de sua congregação.
Escrevendo a Lange em 1516, após enumerar as mil ocupações que dissipavam seu espírito no convento, afirmou: "Raras vezes me sobra tempo necessário para rezar o breviário e celebrar; acrescentem-se minhas próprias tentações da carne, do mundo e do diabo".12
Afirma-se que em determinado momento Lutero "compreendeu" que a justiça de Deus é aquela que Ele nos concede. Como o justo vive da fé, basta a fé para nos levar à salvação, sem necessidade das obras. Essa "compreensão", segundo historiadores, ter-se-ia dado em finais de 1525.13
Onde e como o heresiarca teve essa "compreensão"? Diz um historiador: "Foi então que se deveu produzir o 'acontecimento da torre', do qual se fala tanto na Alemanha. [...] Em 1532, Lutero dizia a seus convivas: 'o Espírito Santo me deu essa intuição nesta cloaca'".14 Ou seja, na "cloaca" do convento, onde ele era obrigado a passar longos períodos por indisposições intestinais, ocupando a cabeça em outras coisas. "Depois do acontecimento da torre, ele permanecerá firmemente apegado à teoria da fé justificante, sem as obras".15
A teoria da justificação pela fé — uma espécie de legislação em causa própria, germinada "na cloaca" — foi-se desenvolvendo gradualmente na cabeça de Lutero, de modo a tornar-se uma das doutrinas centrais da Pseudo-Reforma. Atormentado pelos "rasgos enérgicos e obscuros de sua visão de Deus, [...] a pergunta que o acossava era: 'Como encontrarei um Deus misericordioso?'. A experiência da concupiscência, que considerava invencível e produtora de um pecado permanente, o fazia desesperar",16 e Lutero temia pela sua salvação. Seu confessor lhe dizia: "Você é louco, Deus não está encolerizado consigo, você é que está encolerizado com Ele".17 E seu superior Staupitz recomendava: "Por que torturar-se desse modo com sua predestinação? Volte o olhar para as chagas de Jesus Cristo e o sangue que Ele derramou por você".18
Esse estado de alma se transformou em escrúpulo, com a consequente decadência religiosa: "infração às regras, quebra da disciplina, práticas ascéticas distorcidas, em rápida sucessão e crescente gravidade, seguidas por reações convulsivas espasmódicas, tudo tornava sua vida uma agonia. [...] Como toda vítima de escrúpulos, não via nada em si mesmo além de maldade e corrupção. Deus era o ministro da ira e da vingança. [...] Essa ira de Deus, que o perseguia como sua sombra, só podia ser evitada 'por sua própria justiça', pela 'eficácia das obras servis'. [...] Tal condição física, tensa e neurótica, exigiu uma reação; e, como frequentemente ocorre em casos análogos, [Lutero] foi para o extremo oposto".19
O heresiarca chegou então à conclusão, muito conveniente para si mesmo, de que "basta a fé para o homem poder ser salvo. Nossa fé em Cristo torna seus méritos possessão nossa, envolve-nos em trajes de justiça que nossa culpa e pecaminosidade escondem, e cobre com abundância todo defeito da justiça humana".20 Em outras palavras, se a pessoa tem fé, todos os seus pecados são cobertos pelo manto dos méritos de Cristo, e nada mais necessita fazer... Por isso recomendava descaradamente a seus seguidores: "Seja um pecador, e peque com bravura; mas tenha fé mais forte e se regozije em Cristo, que é o vencedor do pecado, da morte e do mundo. Não imagine por um momento que esta vida é o lugar da justiça: para você, o pecado deve ser suficiente para reconhecer o Cordeiro que tira os pecados do mundo; o pecado não pode nos afastar dele, mesmo que você cometa adultério cem vezes por dia e muitos assassinatos".21
De acordo com a doutrina católica, o Pecado Original vulnerou no homem a prerrogativa divina, mas não a destruiu. "Na revolta das paixões desencadeadas
Lutero e o Geral da Ordem Agostiniana João de Staupitz, no jardim do mosteiro de Erfurt, em 1512.
A teoria de Lutero da justificação pela fé é contrária à doutrina católica que diz: o Pecado Original vulnerou no homem a prerrogativa divina, mas não a destruiu. – Anunciação (detalhe) – Fra Angelico, 1435. Museu do Prado, Madrid.