| MALEFÍCIOS DE LUTERO À IGREJA... | (continuação)
pela primeira prevaricação, na insurreição da concupiscência e dos apetites inferiores contra o ditame do espírito, a vontade — debilitada sim, mas não aniquilada — conservou na sua decadência o cetro da realeza primitiva. Ela é ainda rainha. O homem é ainda senhor de seus atos; e, pela liberdade, o artífice de seus destinos. A graça eleva, fortifica, sobrenaturaliza a vontade; mas no segredo insondável de sua ação nas almas, respeita-lhe sempre a independência nativa. [...] Não se poderia melhor conciliar a gratuidade das generosidades divinas com a grandeza da dignidade humana".22
Para Lutero era o contrário: "A vontade do homem é semelhante a um jumento. Se Deus o cavalga, ele vai aonde Deus o guia. Se lhe monta em cima o diabo, ele vai aonde o diabo o conduz. Tudo se realiza segundo os decretos imutáveis de Deus. Deus opera em nós o mal e o bem. Tudo quanto fazemos, fazemo-lo não livremente, mas por pura necessidade".23 Por isso ele acrescentava: "Foi o diabo quem introduziu na Igreja o nome de livre arbítrio".24
A questão das indulgências foi a ocasião e o pretexto para Lutero se rebelar e expor publicamente suas novas teorias. A doutrina das indulgências, que permanece a mesma até hoje, em alguns aspectos ainda era assunto de disputa entre as escolas teológicas, não havendo até então sobre elas nada proclamado pela Igreja como de crença obrigatória. Só se tornou pública depois do decreto do Papa sobre as teses de Lutero, em 9 de novembro de 1518, no qual o Pontífice rechaçou a tese do heresiarca de que a indulgência perdoa só o castigo canônico imposto pela Igreja, mas não a pena do pecado ante Deus.25
O Papa Leão X fez publicar na Alemanha a Bula das Indulgências, com o objetivo de arrecadar fundos para a construção da basílica de São Pedro, em Roma. Estabelecia que, mediante esmola para aquela obra, os fiéis podiam ganhar indulgências aplicáveis às almas do Purgatório. Na Alemanha essa pregação se mesclou com interesses econômicos, prestando-se a muitos abusos. O ambicioso e inescrupuloso Alberto, Bispo de Magdeburgo e Halberstadt, tendo sido postulado para arcebispo de Mainz, quis conservar também os outros dois bispados. Para isso precisava pagar as taxas curiais e os gastos da dispensa. Propôs então a Roma pregar durante oito anos as indulgências em seus territórios, com a condição de ficar com a metade da soma total arrecadada. Roma aceitou, infelizmente, levando pregadores fogosos — no calor do entusiasmo retórico visando ao êxito financeiro da empresa — a declarações exageradas sobre o valor das indulgências, o que provocou reações negativas em muitos fiéis.
Lutero fez-se o porta-voz desses fiéis, manifestando sua preocupação ao bispo Jerônimo Schulz de Brandenburg e ao arcebispo Alberto de Magdeburg-Mainz, em cartas de 31 de outubro de 1517. Nelas já incluía suas 95 teses sobre as indulgências, seguindo-se a ameaça: se os bispos não respondessem, daria publicidade a elas. Sem esperar resposta, no mesmo dia (vigília de Todos os Santos) afixou suas teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, que servia de "quadro de aviso" da Universidade.
Enquanto isso o arcebispo submetia as teses aos seus conselheiros em Aschaffenburg e aos professores da Universidade de Mainz. A opinião unânime foi de que as teses tinham caráter herético. Esse parecer e uma cópia das teses foram transmitidos ao Papa pelo arcebispo de Mainz, em dezembro desse mesmo ano. Leão X escreveu então ao representante geral dos agostinianos, Gabriel de la Volta, dizendo-lhe que era necessário opor-se prontamente a essas novas doutrinas, que podiam provocar um grande incêndio.26
Intimado a comparecer em Roma dentro de 60 dias para se justificar, Lutero pressionou o imperador Maximiliano e o eleitor Frederico para que a audiência e os juízes fossem nomeados na Alemanha, mesclando assim o poder político com os assuntos religiosos.
Como uma rosa dos ventos, o reformador mudava constantemente de posição. Em 1519, escrevia: "Confesso plenamente o supremo poder da Igreja Romana. Fora de Jesus Cristo, Senhor Nosso, nada no céu e na terra se lhe deve preferir".27 Já no ano seguinte, Leão X é tachado de Anticristo, e a Igreja Romana de "uma licenciosa espelunca de ladrões, o mais impudente dos lupanares, o reino do pecado, da morte e do inferno".28
No dia 3 de janeiro de 1521, a Bula Decet Romanum Pontificem pronunciava a excomunhão de Lutero, o que pouco o abalou. Pelo contrário, levou-o a radicalizar-se ainda mais e dar novo impulso à sua agitação revolucionária.
A aplicação da bula papal, segundo o costume medieval, devia ser feita pelo poder civil. Isso se deu na Dieta de Worms, na qual o recém-coroado Carlos V se reuniu pela primeira vez com as assembleias alemãs em solene deliberação. Foram inúteis todos os esforços para levar o heresiarca a se retratar. Lutero rechaçou a submissão a um concílio e a participação em qualquer disputa. Foi então publicado em 26 de maio de 1521 o Edito de Worms, no qual o Imperador condenava Lutero ao desterro e ordenava a queima de seus escritos. Contudo, o soberano de Lutero, Frederico o Sábio, partidário de suas ideias, recusou-se a obedecer à ordem de desterro e hospedou-o no castelo de Wartburg, em Eisenach, onde o heresiarca escreveu vários documentos polêmicos e muito agressivos.
Segundo um erudito historiador e teólogo, a estada de Lutero por um ano em Wartburg marca um novo e decisivo período em sua vida e carreira. Durante esse isolamento, ele foi sujeito a "um irreprimível surto de sensualidade, que o assediava com fúria desenfreada, tornada ainda mais feroz pela ausência das armas comprovadas de defesa espiritual. [...] Suas tentações morais e espirituais tornaram-se realidades vívidas. Manifestações satânicas eram frequentes e alarmantes, não consistindo em meros encontros verbais, mas em embates pessoais. Sua disputa com Satanás sobre a missa tornou-se histórica. Sua negligência com as antigas restrições dietéticas monásticas geraram em seu corpo 'paroxismos de dor', que não atenuaram o tom de seus escritos polêmicos,29 nem adoçaram a acidez de seu temperamento, nem suavizaram a grosseria de seu discurso. Muitos escritores consideram seus relatos de manifestações satânicas como puras ilusões".30
"Em explosão apaixonada, Lutero cortou todas as suas amarras católicas. [...] O menor traço delas
Exemplar de Indulgência Plenária do Papa Leão X (1513-1521).
A aplicação da bula papal, segundo o costume medieval, devia ser feita pelo poder civil. Isso se deu na Dieta de Worms, diante de Carlos V.