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| MALEFÍCIOS DE LUTERO À IGREJA... | (continuação)

parecia intensificar a sua fúria. [...] Só agora via que o evangelho não pode ser introduzido sem tumulto, escândalo e rebelião; a palavra de Deus é uma espada, uma guerra, uma destruição, um escândalo, uma ruína, um veneno.31 Para ele, papa, cardeais, bispos 'são toda a ninhada da Sodoma romana'. Por que não atacá-la 'com todo tipo de armas e lavar as mãos no seu sangue?'".32

Bem mais tarde, em 1537, quando foi acometido de grave doença que parecia fatal, expressou a um dos camareiros do Eleitor o desejo de que fosse escrito em seu epitáfio: "Pestis eram vivus, moriens ero mors tua, Papa" (Peste eu era para ti enquanto vivo, ó papa; morrendo serei a tua morte).33 "Não devemos ceder aos ímpios papistas. [...] Nossa contestação ao Papa é necessária. [...] Não haveremos de ceder nem a todos os anjos do céu, nem a Pedro, nem a Paulo, nem a cem imperadores, nem a mil Papas, nem a todo o mundo, [...] a ninguém cedo nada".34

Os escritos espalhafatosos de Lutero encontraram grande receptividade entre os camponeses, principalmente o de fevereiro de 1525, no qual pedia a abolição da servidão, a diminuição dos impostos e o restabelecimento dos bens comunais. Isso acabou por excitar ainda mais os camponeses, levando-os a uma verdadeira revolução, que se espalhou por toda a Alemanha e gerou repressão enfurecida. O levante dos camponeses provocou a inquietação dos nobres partidários da pseudo-reforma, pois eles desleixavam o trabalho nas terras destes. Era preciso agradar aos seus protetores, e ele então escreveu, no tom habitual usado para os inimigos da hora, o panfleto Contra os bandos assassinos e ladrões camponeses: "É preciso parar os camponeses, degolá-los, passá-los a fio de espada, em segredo como em público. Nada é mais pernicioso, mais prejudicial, mais diabólico do que uma revolta. É como um cão raivoso: se não o matas, ele te mata, e a todo um país contigo".35

Autenticação celeste

Lutero via a necessidade de uma autenticação celeste para sua reforma. A fim de impedir a pregação de Tomas Münzer em Mulhouse, ele escreveu em 1524 aos magistrados desta cidade, dizendo-lhes que não recebessem o turbulento inovador caso este não pudesse provar a sua missão com obras extraordinárias: "Se ele disser que Deus e o seu espírito o enviam como apóstolo, que o prove com prodígios e milagres; do contrário, proíbam-lhe a pregação".36

Quando Carlostadt o contradisse, apelando para citações divinas, intimou-o a demonstrar com milagres a sua vocação: "É necessário que Deus manifeste com obras milagrosas que revoguem os seus antigos preceitos".37 E tornava abrangente essa exigência: "Quem quiser pôr em campo alguma novidade ou ensinar doutrinas diferentes, deve ser chamado por Deus e comprovar a sua vocação com verdadeiras ações prodigiosas. Quem não puder demonstrá-la deste modo, abra mão da empresa, que deve ser tida como má".38

Mas ele percebia que sua própria obra não tinha essa chancela, e mudou de realejo: "Não hão de ver milagres feitos por nós, porque se os fizermos o mundo os há de atribuir ao diabo".39 Sua modéstia excedia todo limite: "Até o aparecimento do meu Evangelho, ninguém soubera quem era Cristo, o que eram os sacramentos, o que era a fé, quem era Deus e a sua Igreja".40 Por isso, "muito embora a Igreja, Agostinho e os outros doutores, Pedro e Paulo e até um anjo do céu ensinem o contrário, minha doutrina é tal que só ela engrandece a graça e a glória de Deus, e condena a justiça de todos os homens na sua sabedoria".41

É claro que muitos deveriam estranhar tal quantidade de elogios em boca própria, por isso ele se pergunta: "Este Lutero não vos parece um homem extravagante? Quanto a mim, penso que ele é Deus. Senão, como teriam os seus escritos e o seu nome a potência de transformar mendigos em senhores, asnos em doutores, falsários em santos, lodo em pérolas?"42

Lutero e a nova Igreja

Para a Igreja Católica, a Bíblia, a Tradição e o Magistério são as fontes de interpretação dos ensinamentos divinos sem possibilidade de erro. Lutero, pelo contrário, começou a pregar: "A Bíblia, só a Bíblia, e nada mais que a Bíblia é a única regra de fé". Além disso, em sua teoria do "livre exame", decretou que cada crente pode interpretá-la fielmente, sem necessidade da Igreja.

Mas não se deteve aí. Em sua obra Sobre o Papado de Roma, ensina: "A Cristandade, como congregação de todos os fiéis, não é uma reunião física, quer dizer visível, mas uma congregação espiritual 'dos corações em uma mesma fé', reconhecível 'no Batismo e no Evangelho'. A Igreja não tem nenhuma cabeça na terra; 'só Cristo, que está no céu, é sua cabeça, e só Ele é que reina'. Existe autoridade e subordinação só 'na Igreja externa', que tem uma organização humana. Foi dado a São Pedro o poder das chaves, não pessoalmente, mas no lugar da comunidade".43

Em 1524, no púlpito, falou violentamente contra a Missa: "Sim, eu o digo, todos os prostíbulos, todos os homicídios, assassinatos, roubos e adultérios são menos perniciosos que a abominação da missa papista".44

Criando o seu "sacerdócio universal de todos os cristãos", delegando à "assembléia ou congregação cristã" a autoridade "para julgar todas as doutrinas" e nomear ou demitir professor ou pregador, o que Lutero visava era derrubar a Igreja Católica e estabelecer uma nova igreja. Mas reconhecia que sua reforma fez "existirem tantas seitas quantas eram as cabeças".45 Em sua nova igreja ele estabelece como únicos sacramentos válidos o Batismo, a Penitência e a Ceia, esta com a comunhão sob duas espécies. Não aceita o conceito da Eucaristia como sacrifício e a doutrina da transubstanciação.46

Ataques às ordens monásticas

Como foi possível inúmeros frades apostatarem da verdadeira fé, repudiando seus votos religiosos, para seguir alegremente as teorias de um aventureiro que se apresentava como reformador? Tal apostasia e o consequente esvaziamento de mosteiros e igrejas se deveram, sobretudo, ao Parecer sobre as ordens monásticas. "Nele Lutero afirma que a concupiscência é invencível; os instintos sensuais, irreprimíveis; a gratificação das propensões sexuais naturais, inexoráveis como o desempenho de qualquer uma das necessidades fisiológicas do nosso ser. [...] A 'impossibilidade' de resistência bem-sucedida às nossas paixões sensuais e naturais foi atraída por um deslumbrante fascínio retórico de que a salvação da alma e a saúde do corpo exigiam uma revogação instantânea das leis do celibato. [Pois os] votos foram feitos a Satanás, não a Deus".47

Nesse parecer, "as doutrinas, os escritos e os ditos de Lutero foram submetidos a uma análise tão profunda, suas imprecisões históricas se mostraram tão flagrantes, sua concepção do monaquismo tão caricatural, seu conhecimento do escolasticismo tão superficial,

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Tomas Münzer e os camponeses antes da batalha de Frankenhausen – gravura colorida de José Matias de Trenkwald (1824–1897).

Representação satírica do Papa Leão X, numa publicação luterana da época.