| MALEFÍCIOS DE LUTERO À IGREJA... | (continuação)
sua deturpação da teologia medieval tão impetuosa, sua interpretação do misticismo tão errônea, e isso com um domínio circunstancial e impiedoso do detalhe, a ponto de lançar a sombra da dúvida sobre todo o tecido da história da Reforma".48
Durante a ausência de Lutero em Wartburg, de abril de 1521 a março de 1522, Karlstadt (Andreas Rudolph Bodenstein von Karlstadt, 1486-1541), também padre apóstata, assumiu as rédeas da liderança do movimento, auxiliado e apoiado por Melanchton e pelos frades agostinianos. Mais radical ainda que o mestre, ele defendeu o direito de os padres e monges se casarem, pediu a remoção dos quadros e estátuas do santuário e das igrejas, fez protestos públicos contra a reserva do Santíssimo Sacramento, a elevação da Hóstia, investiu contra as orações pelos mortos, e exigiu que a missa fosse dita no vernáculo alemão.49
Uma vez abertas as comportas, o dilúvio se seguiu. Em 9 de outubro de 1521, 39 dos 40 frades agostinianos declararam formalmente sua recusa de celebrar a missa privada. Gabriel Zwilling [1487-1558], um dos mais raivosos deles, denunciou a missa como uma instituição diabólica; Justus Jonas [1493-1555], também padre apóstata, estigmatizou as missas pelos mortos como pestilências sacrílegas da alma. A comunhão sob duas espécies foi administrada publicamente. Em 12 de novembro, 13 frades abandonaram seus hábitos, e com demonstrações tumultuosas fugiram do mosteiro com mais 15. Os que permaneceram leais foram submetidos a maus-tratos e insultos por uma plebe enfurecida, liderada por Zwilling. Multidões impediram a celebração da missa. Lutero, que nesse interim fez uma visita clandestina a Wittenberg, entre 4 e 9 de dezembro, não teve palavras de desaprovação para esses procedimentos. Pelo contrário, manifestou sua satisfação a Georg Spalatin, outro pseudo-reformador (1484-1545): "Tudo o que vejo e ouço agrada-me imensamente".50 Em 6 de janeiro de 1522, os agostinianos removeram de sua igreja todos os altares, exceto um, e queimaram as gravuras e os óleos sagrados. No dia 19, "Karlstadt, aos 41 anos de idade, casou-se com uma jovem de 15, ato que estimulou o caloroso endosso de Lutero. Seguiram seu exemplo Justus Jonas, em 9 ou 10 de fevereiro, e mais ou menos na mesma época Johannes Lange [1487-1548], prior do mosteiro agostiniano de Erfurt".51
Em 1521, Lutero escrevia a Spalatino: "Santo Deus! Nossos wittenberguenses quererão casar também os frades? A mim é que não hão de impingir mulher. [...] Toma tento e não cases, para não incorreres nas tribulações da carne".52 Dois anos depois, acrescentava: "Se acontecesse que um, dois, mil ou mais concílios decidissem que os eclesiásticos pudessem contrair matrimônio, eu preferiria, confiando na graça de Deus, perdoar a quem tivesse uma, duas ou três meretrizes por toda a vida, ao invés daquele que, consoante à decisão conciliar, tomasse mulher legítima e, sem tal decisão, não a pudesse tomar".53
Mas também isso mudaria. No domingo de Páscoa de 1523, chegavam a Wittenberg 12 religiosas cistercienses partidárias das novas idéias, e que por isso tinham abandonado o convento. Três delas voltaram às suas famílias, e as outras nove não tinham para onde ir nem recursos para viver. Lutero se encarregou de sua subsistência. Entre elas estava Catarina de Bora. No convívio com as egressas, o monge apóstata acabou se enamorando de Catarina. Coincidentemente, ele estava justamente reformulando sua doutrina sobre o casamento, e aproveitou para mudar também essas convicções veementes. Em carta de março de 1525, já escrevia ao arcebispo Alberto, de Mainz: "Da parte do próprio Deus, o homem é destinado e constrangido, por necessidade, ao estado de matrimônio. [...] Todos somos criados para esse estado; nossos corpos fazem-no muito ver. [...] É terrível chegar à hora da morte sem ter tido uma mulher".54
Coerente com esse parecer, no dia 13 de junho de 1525, por um golpe "súbito e maravilhoso" da mão de Deus, Lutero se casava, em matrimônio duplamente sacrílego, com Catarina de Bora, de quem teve seis filhos. Como até então ele tinha se mostrado idealista, essa atitude não caiu bem para muitos dos seus correligionários. Ele mesmo percebeu o sinistro passo que dera, e afirmou: "Com este meu casamento, tornei-me tão desprezível, que os anjos hão de rir, e os demônios hão de chorar. Só em mim escarnece o mundo a obra de Deus como ímpia e diabólica".55
Para Lutero, inicialmente, o casamento tinha como fim sujeitar os instintos sexuais indomáveis. Mas se a finalidade fosse apenas essa, forçosamente acabaria negando sua indissolubilidade. Em alguns de seus escritos, deixa claramente entender que o casamento não passa de um contrato de aluguel, que pode ser rescindido pela vontade das partes. Já em seu Cativeiro de Babilônia, de 1520, admite a possibilidade do divórcio: "Num sermão sobre o casamento, enumera três motivos para o divórcio: a impotência sexual, o adultério e a recusa do dever conjugal.56 [...] Em 1523, acrescenta mais dois motivos: a diversidade de religião e o mau caráter de um dos cônjuges. [...] No fim de 1536, aprovou o divórcio para o homem que, com dispensa papal, se tivesse casado com a viúva de seu irmão. Deveria considerar a dispensa como um abuso de poder, deixar sua mulher e contrair novo matrimônio".57 Mostra-se assim cheio de indulgência, por exemplo, com uma mulher casada com um homem impotente, que permanecesse com ele, mas procurasse outro à sua escolha, para dar filhos a seu marido.
Entre os "reformadores" estavam Karlstadt, Ecolampadio e Bucer, sacerdotes infiéis aos seus juramentos, que sacrilegamente contraíram matrimônio. "Estes padres e frades apóstatas, impacientes da disciplina monástica, que se bandearam para o partido reformado, não puderam sequer conservar-se nesta mediania moral de qualquer homem honesto. Quem negara a fé jurada a Deus, como havia de ser fiel à palavra dada a uma mulher? A poligamia começou a se arrastar entre os novos evangélicos. O 'pároco' Miguel Kramer
Lutero – Catarina de Bora.
Felipe o Magnânimo casou-se antes dos 20 anos com Cristina, filha do duque Jorge da Saxônia, e tiveram sete filhos. Considerado o mais imoral dos príncipes alemães, tornou-se um dos sustentáculos de Lutero e de sua heresia. Felipe desejava, sem deixar a primeira mulher, ter "uma segunda esposa legítima", que seria Margarida von der Saal, então com 17 anos.