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| VIDAS DE SANTOS | (continuação)

Bento XIII não quis fazê-lo, por apego ao cargo, e foi deposto. Em novembro de 1417 foi eleito Papa o Cardeal Odo Colona, tomando o nome de Martinho V, que fez sua residência no Vaticano, restaurando assim para a Sé de Pedro seus antigos direitos e prestígio na Cristandade.4

São Vicente Ferrer e o cisma

Vinte e quatro anos antes, em 1394, São Vicente fora chamado à corte de Avinhão pelo antipapa Pedro de Luna, seu antigo benfeitor, para desempenhar o cargo de Mestre do Sacro Colégio, confessor papal e capelão penitenciário. Como esse antipapa era reconhecido como verdadeiro Sumo Pontífice pela Espanha e pelo Geral de sua Ordem, por insondáveis desígnios da Providência São Vicente o apoiou incondicionalmente. Ele julgava que a eleição de Urbano VI fora inválida, em razão do temor da população de Roma em meio ao tumulto durante o conclave.

Em 1399, depois de grave doença em que teve uma visão de Nosso Senhor, como veremos adiante, o santo deixou a corte de Avinhão e se lançou à empresa apostólica de evangelizar o mundo, sob a dependência imediata do Geral de sua Ordem.

Com a confusão estabelecida pela existência de três papas, agravada pela dificuldade das comunicações da época, notícias circulavam lentamente, às vezes truncadas ou deformadas, e o caos se estabeleceu. Para aumentá-lo, havia brigas de partidos e de nações, e sobretudo uma crise na disciplina eclesiástica e no pensamento teológico. Por isso houve santos apoiando ora o Papa legítimo, ora o antipapa.

Do lado do verdadeiro Pontífice, Gregório XII, encontravam-se Santa Catarina de Siena, Santa Catarina da Suécia, o Beato Pedro de Aragão e a Beata Ursulina de Parma. No apoio ao antipapa Bento XIII destacavam-se São Vicente Ferrer, Santa Colete e o Beato Pedro de Luxemburgo.

São Vicente fora um dos mais resolutos e fiéis partidários de Bento XIII, e por sua palavra, santidade e milagres, muito fez para fortalecer sua posição. “Não obstante, na conduta de São Vicente Ferrer foi sempre patente a devoção total à Igreja e a fidelidade ao Pontificado romano. Mais tarde, em contato com os homens que intervieram no Concílio de Constância, e também como resultado de suas viagens pela Itália, tomou conhecimento da realidade e produziu-se nele uma mudança. Tentou primeiro que os três papas chegassem a uma solução, para acabar o cisma. Depois rompeu definitivamente com Bento XIII, ao se convencer de que este não estava disposto a abdicar para o bem da Igreja”.5

“Vá pregar contra os vícios”

Enquanto estava na corte de Avinhão, São Vicente ficara angustiado com a situação da Igreja, por isso adoeceu gravemente. Nosso Senhor apareceu-lhe então, acompanhado de São Francisco e de São Domingos, e lhe disse: “Levanta-te, Vicente, e consola-te. O cisma irá logo acabar, e será quando os homens puserem fim às numerosas iniquidades com as quais se sujam. Levanta-te e vai pregar contra os vícios. É para isso que eu te escolhi especialmente. Adverte os pecadores a que se convertam, porque meu julgamento está próximo”.6

Curado milagrosamente, o santo partiu então para “a odisseia prodigiosa de orador, catequista e viajante. Obra apostólica, com brio de lutador, diplomacia de estadista, portento humano em resistência física e no domínio dos homens, e testemunho flagrante do poder natural que reside sempre na Igreja”, como diz um hagiógrafo.7

Durante mais de 30 anos, tornou-se o maior missionário da Igreja Católica até então, pregando não só na Espanha, mas também na França, Holanda, Itália, Saboia e Suíça. É menos provável que tenha chegado à Inglaterra, Escócia e Irlanda, como dizem alguns.

Dom das línguas e apóstolo do Juízo Final

Apesar de falar apenas sua língua materna e o latim, as diferentes multidões o entendiam perfeitamente, como se falasse sua própria língua: “Falava em sua língua d’oc catalã-valenciana. [...] Fazia-se compreender por enormes massas populares reunidas ao ar livre, porque nenhuma igreja era de molde a abrigar todos. Esses homens incultos, que ignoravam o catalão-valenciano, seguiam sem dificuldade os seus sermões, tomavam gosto e voltavam”.8 Muitos contemporâneos depuseram sobre esse dom das línguas no processo de beatificação.

É preciso dizer que São Vicente, seguindo à letra o que dissera Nosso Senhor – “meu julgamento está próximo” – parecia julgar que realmente se estava no fim dos tempos. Por isso seus sermões insistiam na mudança de vida, e na preparação para comparecer diante do Grande Juiz.

“O temor salutar dos acontecimentos terríveis e do Julgamento Final parece ter sido sobretudo articulado por ele para obter em seus sermões a conversão dos pecadores. Chegou a anunciar em seu primeiro sermão que o Anticristo provavelmente já teria nascido, e mais tarde afirmou aos mesmos ouvintes que uma boa comunhão pascal dissiparia esse pesadelo”.9

Para reforçar o efeito de suas palavras, São Vicente lançava mão de todo o cerimonial da Igreja, como procissões, missas solenes, exposições do Santíssimo Sacramento. Chegava sempre precedido por uma procissão, na qual se entoavam cânticos piedosos e penitenciais. Caminhava a pé, rodeado de um grupo de sacerdotes que administravam os Sacramentos; quando mais velho, deslocava-se montado numa mula.

As multidões apinhavam-se para ouvi-lo; e para não ser espremido pela multidão que tentava tocar-lhe, andava rodeado por um grupo de homens que o encerravam num quadrilátero de madeira.

Flagelantes, judeus e muçulmanos

“As populações se rendiam em massa diante dele nas cidades, nas quais as municipalidades regulavam a ordem de sua extraordinária estadia. Ele chegava, cercado por um grupo sempre crescente de discípulos. [...] O grosso do contingente que o acompanhava era de mulheres e homens, em conjuntos devidamente separados. Essas pessoas constituíam o grupo dos flagelantes”.

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São Vicente pregando – Alonso Cano, (1601-1667), Coleção Banco Santander.

São Vicente prega sobre o Juízo Final – Francisco Ribalta, (1565-1628), Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia.