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| VIDAS DE SANTOS | (continuação)

Os “flagelantes” não eram raros na Idade Média, quando a religião era tomada muito a sério, e era comum flagelarem-se até o sangue. O santo era seguido de cidade em cidade, às vezes por multidão de até dez mil fiéis. “Ele velava para que nada de escandaloso saísse dessas demonstrações e exercícios, dos quais se pode discordar, mas que, de si, nada têm de necessariamente repreensível”.10

Com seu zelo verdadeiramente apostólico, queria atingir todos os pecadores. Nesse tempo havia na Espanha muitos judeus e muçulmanos, e segundo Ranzano, seu primeiro biógrafo, nas suas pregações na península hispânica (1410 a 1414) o santo converteu à fé de Cristo mais de 25 mil judeus, dentre eles 14 rabinos, e cerca de 18 mil mouros.

Taumaturgo e profeta

Milagres portentosos acompanhavam a pregação do santo, e Ranzano afirma que ele operou em vida mais de 860 milagres. O Papa Pio II, na bula de canonização, afirma que ele “a muitos demônios expeliu dos corpos, a muitos surdos restituiu a audição, a muitos mudos a palavra; iluminou cegos, limpou leprosos, ressuscitou mortos, e deu saúde a outros que estavam afligidos por muitas enfermidades”.11 São-lhe atribuídas mesmo algumas ressurreições.

São Vicente Ferrer fez várias profecias, algumas delas realizadas ainda em seu tempo. Estando em Barcelona, em 1373, uma grande fome e carestia afligia a população. Quando esta chegou a um estado crítico, num sermão o santo predisse a chegada próxima de navios com trigo, o que realmente ocorreu. Narra um de seus biógrafos que, enquanto pregava em Saragoça, ele interrompeu o sermão e começou a chorar. Mais tarde revelou aos ouvintes que, naquela hora, sua mãe havia expirado em Valência. Ficara triste por tê-la perdido, mas alegrava-se, pois Deus lhe havia revelado que os santos anjos a haviam levado para o Céu.

Quando pregava em Alexandria de la Palla, na Lombardia, estava presente um jovem de Siena, Bernardino. Disse ele então aos seus ouvintes: “Irmãos, trago-vos uma boa nova: sabei que neste auditório está um rapaz que será um grande lustre da Ordem de São Francisco e de toda a Itália, e luz da Igreja, a qual o honrará antes que a mim”. Com efeito, São Bernardino de Sena foi canonizado em 1450, cinco anos antes dele.12

No dia 13 de setembro de 1403, referiu-se aos nossos tão decadentes dias: “Anunciou como sinal que precederá um pouco os tempos do fim, a moda de as mulheres se vestirem como homens, e se portarem licenciosamente. E também os homens de usarem roupas femininas”.13

São Vicente Ferrer e Nossa Senhora

Segundo o geral de seus biógrafos, a piedade de São Vicente era cristocêntrica. Como é de se supor, tendo o Filho como centro, ele não deixaria de ter a Santa Mãe de Deus na mais alta consideração. Assim, há muitos sermões do grande apóstolo sobre a Virgem Maria, todos de cunho popular, acessíveis ao geral de seus ouvintes, que muitas vezes eram rudes camponeses.

Como diz um dos seus biógrafos contemporâneos, “não lhe interessava propor aos ouvintes as questões da Escola em termos técnicos, mas mover à devoção. [...] não queria ser um tratadista de mariologia, mas um pregador da Virgem Maria, que para ele tinha o cúmulo de graças exigidas para a digna realização de suas funções de Mãe de Deus e dos homens”.

No início de todas as suas pregações, depois de citar um versículo do texto bíblico da Missa do dia, que seria tema de seu sermão, rezava também uma Ave Maria. A propósito da Assunção de Nossa Senhora ao Céu em corpo e alma, ele pregou em um dos seus sermões: “A Virgem Maria, levada ao Paraíso nos braços de seu Filho, vive na glorificação corporal dos santos. A glória do Paraíso não terá sua plenitude integral no corpo e alma até o dia do Juízo. As almas têm glorificação perfeita, mas não os corpos, exceto a Virgem Maria e Cristo, que têm esta plenitude de glória, pois estão em corpo e alma no Paraíso”. Lembremos, a propósito, que esse dogma só foi proclamado muitos séculos depois.

São Vicente Ferrer, o último pregador medieval

O santo viveu quando a Idade Média – a “doce primavera da fé”, no dizer de Montalambert – chegara ao fim. Os pruridos renascentistas já infectavam a Igreja e a sociedade temporal, suscitando o renascer do espírito neo-pagão. São Vicente lutou tenazmente contra esse espírito.

Segundo o renomado historiador Matthieu-Maxime Gorce, “São Vicente é o apóstolo da Cristandade medieval que agoniza. Ele pretende deter esse afundamento, e para isso se converte em doutor da velha Europa; ensina-lhe as tradicionais doutrinas de São Tomás, utilizando como instrumento de sua docência a força mágica de sua palavra. São Vicente vem a ser a projeção de São Tomás sobre as massas no entardecer da Europa”.14

O apostolado do santo teve assim benéficas consequências para o futuro. Por isso afirma o mesmo historiador: “São Vicente Ferrer deu à civilização europeia um vigoroso impulso em uma direção determinada, impulso que influiu de maneira capital sobre os destinos imediatos do cristianismo. E quando, depois das profundas perturbações religiosas da [pseudo] Reforma, a calma foi restabelecida no século XVII, notou-se que os países nos quais o catolicismo antigo sobreviveu são todos aqueles nos quais São Vicente exerceu sobre as almas dos povos a influência direta e prolongada de sua pregação: França, Espanha, Itália. Das cidades que o mestre Vicente Ferrer visitou, uma só, Genebra, permanece até hoje protestante na metade da população”.15

Muito se poderia ainda dizer deste grande santo, se muito maior fosse nosso espaço disponível. São Vicente Ferrer faleceu há exatos 600 anos, no dia 5 de abril de 1419, em Vannes, na França, assistido pelos irmãos de hábito e pelas damas da corte da Duquesa da Bretanha. 

Notas:

1. M.M. Gorge, Vincent Ferrier, in Dictionnaire de Théologie Catholique, Librairie Letouzey et Ané, Paris, 1950, tomo XV, col. 3034. Citaremos esta obra como DTC.

2. Cfr. William Turner, Willian of Ockham, The Catholic Encyclopedia, CD Room edition. Citaremos essa obra como TCE.

3. DTC, col. 3034.

4. Cfr. Thomas J. Shahan, Council of Constance, TCE.

5. J. L. Martín Hernández, San Vincente Ferrer, in Gran Enciclopédia Rialp, Ediciones Rialp, S.A., Madri, 1975, tomo XXIII, p. 481.

6. Les Petits Bollandistes, Vies des Saints, Bloud et Barral, Libraires-Éditeurs, Paris, 1882, tomo IV, p. 221; http://www.ewtn.com/spanish/saints/Vicente_Ferrer.htm.

7. Fr. Justo Perez de Urbel, O.S.B., Año Cristiano, Ediciones Fax, Madri, 1945, tomo II, p. 52.

8. DTC col. 3031.

9. Id. col. 3037.

10. DTC cols. 3036-3037.

11. Pe. Pedro de Ribadenera, San Vicente Ferrer, Confessor, in La Leyenda de Oro, L. González Y Compañia – Editores, Barcelona, 1896, tomo II, p. 28.

12. Id. Ib. p. 29.

13. http://www.google.com.br/#q=San+Vicente+Ferrer&hl=pt-BR&biw=1280&bih=605&prmd=ivnsmb&tbs=tl:1&tbo=u&ei=8sKDTdDoC47UgAft8pnFCA&sa=X&oi=timeline_result&ct=title&resnum=19&ved=0CIABEOcCMBI&fp=6be522cf788d9d89

14. In Fr. José M. de Garganta, O.P., Filiación dominicana de San Vicente, apud Biografía y Escritos de San Vicente Ferrer, Biblioteca de Autores Cristianos, Madri, 1956, p. Introdução Geral, p. 13.

15. Id. Ib., p. 39.

Azulejo na casa da cidade de Morella, no reino de Valência, onde, no ano de 1414, São Vicente obrou o prodigioso milagre da ressurreição de um menino ao qual sua mãe, alienada, tinha esquartejado e cozido para oferecer de comida ao Santo.