| CAPA | (continuação)
divina missão, unicamente porque não viam n’Ele o Messias dos seus sonhos, o conspirador político, o rei conquistador que devia libertá-los da tirania de Roma. Atribuíam a Jesus o crime de rebelião, que Ele não quisera cometer, e pelo qual eles próprios ansiavam. Era o cúmulo da perfídia. Bem os conhecia Jesus, quando lhes dizia: “Vós sois filhos do mentiroso, daquele que foi homicida desde o princípio” (Jo 8, 44).
Não tomou Pilatos a sério as calúnias cegas do Sinédrio. Sabia, melhor que ninguém, qual era a seita que organizava as revoluções e se insurgia contra o pagamento do tributo. Todavia, quis examinar o fundamento de todas aquelas acusações e qual o motivo do encarniçamento dos fariseus em apresentar-lhe aquele homem tão modesto, manso, paciente e ao mesmo tempo tão digno, como se fosse um facínora extremamente perigoso. Deixando-os vociferar à vontade, entrou na sala do pretório e ordenou aos guardas que lhe trouxessem o acusado. Subiu Jesus a grande escadaria de mármore2 que conduzia à dita sala, e logo se viu a sós com o governador.
Sem se importar com as acusações inverossímeis que lhe faziam, perguntou-lhe Pilatos o que significavam os títulos de Rei e Messias que lhe atribuíam:
— Tu és o rei dos judeus?
— Perguntas-me isso por ti mesmo, para saber quem sou, ou simplesmente porque os meus acusadores o sugeriram?
— Sou eu porventura algum judeu? Tenho eu alguma coisa que ver com as vossas querelas religiosas? Os pontífices e o povo trouxeram-te ao meu tribunal como usurpador da realeza, e eu só te pergunto por que motivo tomas o título de rei.
— O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus servos combateriam por mim e para que Eu não fosse entregue aos que me perseguem. Mas o meu reino não é daqui (Jo 18, 33-36).
Não compreendeu Pilatos de que reino queria Jesus falar, mas sabia já o suficiente para se convencer de que o Império nada tinha a recear do seu interlocutor. Que podia contra César e as suas legiões o rei misterioso de outro mundo? Aquele homem pareceu a Pilatos um sonhador inofensivo, que tomava as quimeras por realidades.
E disse-lhe, como para lhe lisonjear o devaneio:
— Então tu és rei?
— Tu o dizes. Eu sou rei. Dizes bem. Nasci para reinar e vim ao mundo para dar testemunho da Verdade. Todo o homem que vive da Verdade ouve a minha voz.
— A verdade. O que é isso? (Jo 18, 37-38).
O romano tinha ouvido falar de opiniões filosóficas e religiosas mais ou menos acreditadas, e de interesses que, para muitos, valiam mais que as opiniões. Mas a verdade, quem a conhecia? Haveria mesmo por aí alguma verdade? Evidentemente, ficaria Pilatos pensando que tinha diante de si um sonhador, um simples, que sem dúvida professava doutrinas opostas às dos fariseus. Mas a ele, Pilatos, que lhe importavam as controvérsias judaicas? Voltou, pois, à fala com os príncipes dos sacerdotes, e disse-lhes, mostrando Jesus:
— Não encontro nada de repreensível neste homem. Por conseguinte, não o posso condenar (Jo 18, 38).
Mal proferiu estas palavras, explodiu na assembleia dos judeus um tumulto pavoroso. Os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo acumulavam contra Jesus as mais monstruosas acusações, às quais Ele somente respondia com o silêncio. Pilatos devia ter procedido contra aqueles vis caluniadores; mas os viu em tal grau de exaltação, que teve medo:
— Bem vês quantas acusações amontoam contra ti: e tu nada respondes? (Mc 15, 3-5).
Sempre impassível, Jesus nem abriu a boca para se desculpar. Isto desconcertou inteiramente o governador.
Ao ver Pilatos perplexo, insistiram os acusadores sobre o lado político da questão. A dar-lhes crédito, era Jesus um sedicioso que fomentava por toda a parte perturbações e levantamentos:
— Ele revolucionou todo o país, desde a Galileia, onde começou a pregar, até Jerusalém (Lc 23, 5).
À palavra Galileia, Pilatos interrompeu os fariseus. Acabara de achar uma escapatória para se desembaraçar de um negócio que principiava a inquietá-lo:
— Este homem é galileu?
Como lhe respondessem que sim, acrescentou logo:
— Se assim é, pertence à jurisdição do rei Herodes, que está atualmente em Jerusalém. Levai-lhe o vosso preso, e ele que o julgue. É do seu direito (Lc 23, 6-7).
Tendo dito estas palavras, voltou as costas aos homens do Sinédrio, aos fariseus e à populaça desconcertada, e entrou no palácio, dando a si próprio os parabéns por ter achado tão bom expediente para se livrar do caso.
Jesus Cristo diante de Pilatos – Munkácsy Mihály, séc. XVIII. Coleção Particular.
Ecce Homo, detalhe – Munkácsy Mihály, séc. XVIII. Galeria Nacional da Hungria.