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| CAPA | (continuação)

Sem dúvida, tinha sacrificado a inocência e atraiçoado a verdade, mas não ia naquilo o seu interesse.

Pelas oito horas da manhã chegava um arauto de Pilatos à casa de Herodes, anunciando-lhe que o seu amo, por deferência para com o tetrarca da Galileia, enviava para o seu tribunal um certo Jesus de Nazaré, suposto réu de diferentes crimes. Tinha o poder de julgar aquele galileu, preso em território judaico, mas preferia pôr aquela causa nas mãos do soberano de quem Jesus imediatamente dependia, em razão da sua origem e domicílio.

Tanto mais lisonjeado se sentiu Herodes com tal mostra de benevolência, quanto menos a esperava, pois havia alguns anos que se desentendera com o governador da Judéia. Além disso, esta decisão inesperada oferecia-lhe a ocasião, de há muito procurada, de ver o Profeta de Nazaré. O rei dissoluto, o marido incestuoso de Herodíades, o assassino de João Batista, regozijou-se de poder falar com aquele sábio tão celebrado e poderoso taumaturgo, que havia três anos os povos aclamavam.

Herodes manda Jesus de volta a Pilatos

O palácio de Herodes elevava-se a uns 100 passos da torre Antônia. Jesus, sempre algemado e escoltado por uma turba furiosa, lá foi conduzido pelos chefes do Sinédrio. Sentado no seu trono, estava o rei à espera em meio de seus cortesãos, ansiosos por assistir a um divertidíssimo espetáculo. Para homens licenciosos, tudo se torna espetáculo, até o sofrimento, a agonia ou o martírio do Inocente. Aqueles, porém, ficaram bem frustrados na sua expectativa.

Durante toda aquela audiência, apesar das vociferações e odiosas calúnias dos fariseus, permaneceu Jesus com os olhos baixos e num silêncio absoluto. Herodes, que se dava ares de sábio e doutor, fez-lhe um longo interrogatório acerca das questões controversas entre Ele e os fariseus, sobre os seus milagres, projetos e reino. Em pé, diante dele, esteve o Salvador a ouvi-lo sem dar mostras da mais ligeira emoção e sem proferir uma só palavra. Herodes e os seus entreolhavam-se com assombro, desorientados e despeitados. Os príncipes dos sacerdotes, pensando ter chegado o momento de extorquir ao rei uma sentença de condenação, disseram-lhe que aquele sedicioso se atrevia a chamar-se Cristo e Filho de Deus. Esperavam que o tetrarca da Galileia, amigo dos romanos, salvasse a nação e a religião, imolando aquele blasfemo. Herodes convidou Jesus a defender-se, mas não obteve uma palavra, um gesto, um olhar ao menos, como se o acusado fosse surdo e mudo (Lc 23, 8-12).

Jesus dignara-se falar a Judas, Caifás, Pilatos, e ao próprio servo que ousou esbofeteá-lo. Porém não falou a Herodes, que tinha sufocado as duas grandes vozes de Deus: a de João Baptista e a voz da consciência. O Filho de Deus não falou ao homem que, com os seus vícios e crimes, se rebaixara ao nível dos brutos.

Tomou então o tetrarca uma deliberação à altura dos seus baixos instintos. Manchado ainda com o sangue de João Baptista, não ousou fazer um novo mártir, preferiu divertir-se à custa de Jesus. Afinal de contas, disse ele consigo mesmo, este silencioso obstinado talvez não seja mais que um louco indefeso, com quem podemos nos divertir uns momentos. Depois disso será mandado de volta a Pilatos, que o tratará como quiser.

A ideia do amo fez sorrir os homens de prazer que o rodeavam. Trouxeram uma túnica branca e a vestiram no Salvador, entre os aplausos da assistência. A túnica branca — vestido próprio dos grandes, dos reis e das estátuas dos deuses — era também a libré dos loucos. Aos olhos daqueles sábios, aquele Jesus que se tinha por Messias e Filho de Deus era mesmo um louco, mil vezes merecedor da veste da ignomínia. A fim de lhe fazer sentir todo o seu desprezo, entregou-o Herodes como divertimento às mãos dos seus servos e soldados. Depois de se divertirem quanto lhes aprouve, com os seus jogos cínicos e graçolas sacrílegas, mandou Jesus de volta para Pilatos.

Assim procederão os Herodes de todos os séculos. Não podem elevar-se à altura das coisas divinas, e tentarão sempre desprezá-las.

Morte! Morte! Queremos que ele morra!

Pelas nove horas, os chefes do Sinédrio, seguidos de multidão cada vez mais tumultuosa, reapareciam diante do palácio de Pilatos, pedindo com grandes gritos a morte de Jesus. Um juiz imparcial teria proclamado a inocência do acusado, e em caso de necessidade dispersaria pela força os homens do Sinédrio e seus asseclas. Mas, dominado sempre pelo temor de se comprometer, recuou Pilatos diante da sua obrigação. Pôs-se a parlamentar com os mentores do motim, coisa que naturalmente lhes aumentou a audácia.

O exórdio da sua arenga mostrava alguma coragem:

Há algumas horas me apresentastes este homem como um faccioso, revoltado contra a dominação romana. Depois de o ter interrogado diante de vós, não encontrei n’Ele nenhum dos crimes de que o acusais. Remeti-o para Herodes, e vedes que o tetrarca também não o julgou digno de morte (Lc 23, 13-14).

Ia prosseguir, quando os amotinadores, pressagiando uma sentença de absolvição, o interromperam com gritos ferozes e sinais de um furor diabólico. Pilatos ficou de tal modo atemorizado, que depois de ter estabelecido a perfeita inocência de Jesus, concluiu a sua alocução de modo singular e inteiramente inesperado:

Como este homem de nenhum modo mereceu a pena capital, vou mandá-lo açoitar, e depois será solto (Lc 23, 15-16).

Esta concessão covarde produziu violentos protestos. Se Jesus está inocente, por que açoitá-lo? Se é culpado, por que poupá-lo? De todos os ângulos da praça se elevaram clamores selvagens:

Morte! Morte! Queremos que ele morra!

À vista daquela horda de furiosos, ia talvez Pilatos ceder, quando um incidente misterioso lhe foi levar um pouco de energia. Um mensageiro, enviado por sua mulher, entregou-lhe uma carta. Dizia-lhe Prócula: “Não te metas nesse caso e não te tornes responsável pela morte desse justo. Porque muito sofri hoje em sonhos, por causa d’Ele” (Mt 27, 19). Pilatos não tinha fé; mas era supersticioso como todos os pagãos, por isso viu naquele sonho um supremo aviso do Céu (nisto não se enganava), e resolveu fazer uma tentativa desesperada para salvar Jesus.

Os deicidas preferem Barrabás ao Salvador

Era costume muito antigo entre os judeus dar a liberdade a um preso por ocasião das festas pascais. A alegria do infeliz, posto em liberdade, lembrava-lhes o gozo dos seus pais ao saírem do cativeiro do Egito. Uma vez senhores da Judéia, não pensaram os romanos dever abolir aquele uso imemorial, e a cada ano o governador soltava um preso, à escolha dos judeus. Resolveu Pilatos aproveitar-se desta circunstância para chegar ao seu objetivo.

Havia então nas prisões de Jerusalém um conhecido malfeitor chamado Barrabás, cujo nome bastava para inspirar terror. Era chefe de uma horda de salteadores aninhada nas montanhas de Judá, tinha sido aprisionado durante uma sedição e condenado ao suplício da cruz. Resolveu Pilatos dar ao povo a escolha entre Jesus e

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Jesus na casa de Herodes – Miguel Cabrera, séc. XVII. Igreja da Profesa (Oratório de São Felipe Neri), Cidade do México.

“Escolhemos Barrabás” – Ilustração do livro “The Bible and its Story Taught by One Thousand Picture Lessons”, editado por Charles F. Horne e Julius A. Bewer, 1910.