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| CAPA | (continuação)

Barrabás. Cinco dias antes, aquele povo levara Jesus em triunfo, e Pilatos não imaginava que o mesmo povo iria preferir Barrabás. Levantando a voz, recordou ao povo o costume de libertar um criminoso naquele dia; e depois, sem lhes dar tempo de reunir-se para deliberar, fez esta pergunta:

Qual dos dois quereis que ponhamos em liberdade: o salteador Barrabás? Ou Jesus, vosso Rei?

Ao ouvir aquele nome de Barrabás, houve um momento de assombro e hesitação. Mas os chefes do Sinédrio, compreendendo o perigo, espalharam-se por entre o povo, reaqueceram as paixões e persuadiram a plebe tresloucada a optar por Barrabás. Por isso, quando Pilatos renovou a pergunta, chegou-lhe aos ouvidos este grito feroz, que dominava toda a praça:

Barrabás! Queremos Barrabás! Dai-nos Barrabás!

Indignado com tal cinismo, Pilatos interpelou-os novamente:

Que quereis vós então que eu faça de Jesus, Rei dos Judeus?

E o povo todo, a uma voz:

Crucifica-o! crucifica-o!

Apesar do horrível clamor, Pilatos insistiu:

Que mal fez Ele?

Mas a turba continuou a vociferar:

Crucifica-o! Crucifica-o! (Lc 23, 17-23).

Pilatos condena o Inocente a ser flagelado

Pilatos ficara outra vez vencido. Em lugar de dar uma sentença em nome da justiça, tinha receado contrariar as paixões de um povo fora de si. E agora aquele povo, encarniçando-se contra a sua presa, imperava como senhor, já não via nem ouvia, era um tigre sedento de sangue. Pilatos retornou à sua primeira ideia: já que o povo quer sangue, ele o dará, mas com certa medida. Mandou açoitar Jesus, para dar alguma satisfação àqueles sectários, pensando em colocá-lo depois em liberdade. Propôs este meio termo, pois repetiu que não via nenhuma razão para aplicar a pena capital. Ainda que a turba reclamasse a crucifixão com furor cada vez maior, ordenou aos carrascos que procedessem à flagelação.

O suplício da flagelação era aplicado pelos romanos com tal requinte de crueldade, que muitas vezes os condenados expiravam sob os golpes. Nesta circunstância, como se tratava de excitar o povo à compaixão, receberam os algozes ordem de não poupar a vítima. O inocente cordeiro foi então levado à praça pública. Quatro carrascos despiram-no até a cintura e prenderam suas mãos a uma coluna isolada no meio da praça. Empunhando o terrível açoite armado de bolas de ferro, atiraram-se contra Jesus e feriram-no com uma sanha verdadeiramente infernal. O sangue corria de todos os pontos, voavam as carnes aos pedaços, e todo o corpo contundido não era mais que uma chaga. Assim se cumpria a profecia: “Foi esmagado por causa das nossas iniquidades” (Is 53, 5). Os verdugos só pararam quando o açoite lhes caiu das mãos. Desamarrando então o Salvador, arrastaram-no quase exânime para o pátio do pretório, onde se encontrava reunida a coorte dos soldados romanos.

Naquele pátio se passou uma cena de irrisão sacrílega, mais revoltante ainda que a flagelação. Como era preciso lançar qualquer roupa sobre aquele corpo despedaçado e ensanguentado, e tendo em vista que o acusavam de aspirar à realeza, imaginaram os soldados vestir Jesus como um rei de comédia. Mandaram-no sentar sobre uma coluna, como se fosse um trono, e estenderam sobre seus ombros um andrajo de cor escarlate, simulando um manto real, e nas mãos puseram uma cana, para simbolizar um cetro. Faltava apenas uma coroa, e ela foi tecida de espinhos e posta na sua cabeça. Dobrando então o joelho um após outro, zombavam d’Ele gritando: “Salve, Rei dos Judeus”. Levantando-se, davam-lhe bofetadas, cuspiam-lhe no rosto e faziam a coroa de espinhos penetrar na cabeça ensanguentada, à força de pancadas que Lhe davam com a cana. Como na coluna da flagelação, também agora sofria Jesus aquelas torturas e humilhações sem exalar uma queixa.

Eis aqui o Homem

Após aquela paródia estúpida e cruel, os soldados levaram Jesus de volta a Pilatos. Movido pela compaixão, não duvidou ele de que aquela figura ensanguentada inspirasse afinal ao povo um sentimento de comiseração. Dirigiu-se de novo àquela multidão, exasperada com tão longa espera:

Torno a trazer-vos o acusado, para que saibais que não acho n’Ele culpa alguma. Caso ele fosse culpado, vereis em que estado Ele se encontra, e dar-vos-eis por satisfeitos.

Jesus, levado pelos soldados, apareceu ao lado de Pilatos com o rosto coberto de sangue, a coroa de espinhos na cabeça e um andrajo escarlate sobre os ombros. Estendendo o braço para Ele, mostrou-o Pilatos ao povo:

Eis aqui o Homem!

O ignóbil juiz implorava a piedade dos amotinados, mas vozes dos chefes responderam-lhe:

Crucifica-o!

E a turba repetiu o horrível grito:

Crucifica-o! Crucifica-o!

A vista do sangue irritava aqueles monstros, ao invés de os acalmar. O coração do juiz romano soergueu-se perante tal infâmia, e lançando àqueles homens de ódio um olhar de desprezo, disse-lhes:

Que eu O crucifique? Tomai-O vós e crucificai-O, que eu não encontro n’Ele culpa alguma.

Pilatos, portanto, punha resolutamente de parte a acusação de sedição, com que os sectários tinham contado para convencê-lo. Vendo-se iludidos, estes retornaram à acusação do pretenso crime de blasfêmia, que o Sinédrio imputava a Jesus:

É culpado, e segundo a nossa legislação deve ser punido com a morte, pois se atreveu a proclamar-se Filho de Deus” (Jo 19, 4-7).

Não sabes que tenho poder sobre ti?

Ao ouvir este nome de Filho de Deus, ficou Pilatos todo hesitante. E o seu olhar fixou-se em Jesus, sempre calmo e paciente no meio de inefáveis dores e ignomínias sem nome. Recordou-se daquela palavra que Jesus dissera: “O meu Reino não é deste mundo”, e começou a pensar se não teria diante dos seus olhos um daqueles gênios benéficos que os deuses enviavam aos mortais para lhes revelar um segredo. Os prodígios feitos por Jesus e o sonho recente de Prócula só podiam confirmar aquela sua opinião. Entrou Pilatos a tremer, com a ideia de que talvez tivesse mandado açoitar um imortal. Deixando de novo os conspiradores a tumultuar na praça, reentrou no pretório e mandou que lhe levassem Jesus a fim de esclarecer aquele mistério, e perguntou-lhe:

De onde és tu?

Pilatos conhecia a origem humana de Jesus, mas quanto à sua geração eterna, não lhe deixava o seu

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A Flagelação – Ludovico Carracci (Bologna, 1555–1619). Coleção Particular.

Ecce Homo, detalhe – Munkácsy Mihály, séc. XVIII. Galeria Nacional da Hungria.