| CAPA | (continuação)
ceticismo que a admitisse. Sabia também, por outro lado, que se Cristo se chamava rei, o seu reino invisível não devia de modo algum inquietar a César. Isto bastava para as exigências da causa. Por isso, nada respondeu Jesus, fato este que acabou de desorientar o governador. Sentia-se subjugado pelo ascendente de um ser em tudo superior aos outros homens. Não pôde, contudo, deixar de queixar-se de um silêncio que lhe pareceu ofensivo à sua dignidade:
— Não respondes a mim? Não sabes que tenho poder sobre ti, e que de mim depende mandar-te crucificar ou pôr-te em liberdade?
Àquela afirmação do direito de julgar, sem tomar como referência a justiça eterna, opôs Jesus o direito de Deus:
— Tu não tens outro poder sobre mim, a não ser o que te foi dado do alto.
Ao mesmo tempo, o olhar divino mergulhou até o mais íntimo da alma do governador, para lhe exprobrar a iniquidade do seu procedimento. Todavia, levando em conta os esforços que ele fizera para o arrancar à morte, acrescentou:
— Os que me entregaram nas tuas mãos são mais pecadores do que tu.
Levantou-se Pilatos desassossegado, transtornado, bem decidido a cumprir com o seu dever, ainda que à custa de incorrer na ira dos revoltosos. Voltou a anunciar-lhes a sua resolução definitiva, que era a de libertar Jesus. Mas os príncipes dos sacerdotes judeus e os anciãos do povo o esperavam, naquele momento decisivo, para lhe disparar o último tiro:
— Se o deixais em liberdade, não sois amigo de César, pois todo aquele que se faz rei conspira contra César” (Jo 19, 8-12).
Pilatos sentiu-se esmagado. Ao ouvir o nome de César, esqueceu-se de Jesus, dos direitos da justiça e do sentimento da sua dignidade. César era o temeroso Tibério rodeado dos seus delatores; o monstro que, por uma simples suspeita, condenava à morte amigos e parentes. Imaginou-se logo denunciado, deposto e irremediavelmente perdido. O interesse venceu a consciência, e afinal decidiu-se a sacrificar Jesus.
Restava dar a sentença de acordo com as formalidades exigidas por lei. Na praça, em frente do pretório, havia uma cadeira elevada formada com pedras multicores, chamada Gabata em hebreu, que significa elevação, e em grego Litostrotos ou montículo de pedras. O governador romano devia proferir as suas sentenças do alto daquele tribunal, diante de todo o povo. Pilatos tomou lugar naquela espécie de estrado, de onde dominava a multidão, e Jesus foi trazido perante ele, preso e rodeado de guardas. Todos os olhos se fixaram no juiz e na vítima, e todos os ouvidos se aplicaram a ouvir os termos da sentença que se ia dar.
Olhando para a multidão, Pilatos ainda tentou, por última vez, levá-la a perdoar o réu. Uma força superior o impelia a proclamar a realeza de Jesus perante aquele povo revoltado. E mostrando Jesus coberto de sangue e de feridas, disse com voz comovida:
— Eis o vosso Rei!
Responderam-lhe com horríveis clamores:
— Fora! Fora! Seja crucificado! (Jo 19, 13-15).
Tentou o romano despertar até os sentimentos patrióticos daqueles judeus, outrora tão ciosos da sua nacionalidade e dos seus príncipes:
— Quereis então que eu mande crucificar o vosso rei?
E eles responderam covardemente:
— Não temos outro rei senão César! (Jo 19, 15-16).
Foi assim que aquele povo de Deus — pontífices, escribas, magistrados, que a cada passo blasonavam de ser descendentes de Abraão e David — abdicou da sua nacionalidade, da realeza do Messias libertador, de todas as glórias do passado e de todas as esperanças do futuro. Ei-los todos de joelhos diante de César, a vituperar Pilatos por não ser assaz dedicado ao Imperador.
Por que motivo se prostra aquele povo com tal impudor aos pés dos pagãos? Por ódio a Cristo, Filho de Deus; para obter de Pilatos que o pregue num patíbulo e lhe verta as derradeiras gotas de sangue. O ódio levado a tais extremos já não é sentimento humano.
Ao vê-los calcar aos pés o interesse e a glória da sua nação, para fartar a sua raiva, compreendeu Pilatos que tudo era para temer de semelhantes furiosos, se lhes resistisse mais tempo. Atormentado de remorsos, mas atado ao seu posto mais do que ao seu dever, concordou em dar a vitória ao motim, mas decidiu protestar solenemente contra a sentença que lhe extorquiam.
Pilatos mandou que lhe trouxessem água, lavou as mãos diante da assembleia, e disse:
— Estou inocente do sangue deste justo, vós respondereis por Ele.
A Coroação de Espinhos – James Tissot, 1896. Brooklyn Museum, Nova York.