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| CAPA | (continuação)

Um grito espantoso, saído de milhares de peitos, ressoou pela Cidade Santa:

Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos! (Mt 27, 24-25).

Este grito subiu até Deus, decidindo a ruína de Jerusalém e de toda a nação.

Momentos depois, proclamava um arauto a sentença redigida por Pilatos: “Jesus de Nazaré, sedutor do povo, desprezador de César e falso Messias, será levado através das ruas da cidade ao lugar ordinário das execuções; e uma vez lá, despido dos seus vestidos, será pregado numa cruz, onde ficará suspenso até a morte”.

Assim terminou o mais iníquo de todos os processos. Os príncipes dos sacerdotes deram-se parabéns pelo seu triunfo. A multidão, ébria de sangue, aplaudiu.

Pilatos, sombrio e mal-humorado, entrou no palácio para lá ocultar a sua vergonha. Só Jesus, o condenado à morte, no meio das suas dores, ostentava na alma uma alegria que nada pode traduzir, pois acabara de soar a hora do sacrifício que salvaria a humanidade, a hora pela qual suspirava desde a sua aparição neste mundo.

Violaram todas as leis da humanidade

Em todas as nações civilizadas deixa-se decorrer algum tempo entre o julgamento e a execução dos condenados. Os romanos concediam até dez dias de prazo, e segundo as leis judaicas só se supliciava depois do sol posto. Mas estava dito que a respeito de Jesus seriam violadas todas as leis da humanidade, a fim de fazer compreender a todos que um ódio infernal perseguia a santa vítima. Logo depois da condenação, Pilatos entregou Jesus ao furor dos príncipes dos sacerdotes, os quais decidiram que fosse conduzido, sem mais delongas, ao lugar do suplício. Pareceu-lhes perigoso adiar a crucifixão para depois das solenidades pascais, pois aquela turba em delírio, depois de ter pedido a morte de Cristo com uma espécie de frenesi, dentro de oito dias poderia querer novamente entoar o hosana em sua honra. Por outro lado, em vez de chamar o povo ao respeito das leis, Pilatos tinha também pressa de arrumar aquele assunto e fazer desaparecer quanto antes, no silêncio do túmulo, a vítima da sua criminosa covardia.

Do tribunal, foi Jesus levado ao pátio do pretório para os preparativos do suplício. Quatro carrascos arrancaram-lhe o andrajo de púrpura, que estava pegado ao corpo ensanguentado, e devolveram-lhe as roupas comuns, enquanto prodigalizavam mil injúrias. Deixaram-lhe na cabeça a coroa de espinhos, a fim de provocar, com esta alusão à sua realeza, os insultos e zombarias da populaça.

O Divino Inocente a caminho do Gólgota

Para aviltar ainda mais o Salvador, os príncipes dos sacerdotes tiraram da prisão dois ladrões condenados ao patíbulo, para os exibir em público e crucificar ao lado de Jesus. As cruzes, que os condenados deviam levar até o lugar da execução, compunham-se de dois postes, dos quais o maior media sete metros; e o outro, metade do primeiro, atravessando-o a dois terços do seu comprimento. Era um peso esmagador para Jesus, exausto de sangue, cansaço e sofrimentos, sobretudo após a horrível flagelação que há pouco sofrera. E atiraram-lhe brutalmente para cima das costas aquela cruz, símbolo de infâmia, pois nela expiravam escravos, desonrados, ladrões, assassinos e falsários. Em vez de se queixar, recebeu Jesus com amor aquele madeiro de ignomínia, transformando-o no lenho entre todos precioso, o lenho redentor do mundo, o troféu da mais brilhante das vitórias, o cetro do Rei dos Reis.

Os dois ladrões, postos ao lado de Jesus, carregaram também o seu patíbulo. Terminados os preparativos, foram os três condenados conduzidos pelos carrascos para a praça onde se devia formar o cortejo. Recebeu-os lá a multidão, proferindo gritos de morte e horrorosos sarcasmos, apontando com o dedo para o rei coroado de espinhos, para o Messias entre dois ladrões.

Deu a trombeta o sinal da partida, e pôs-se em marcha o exército dos deicidas. À frente ia um arauto apregoando, em todo o percurso, os nomes e crimes dos condenados. Seguiam logo os soldados romanos, incumbidos de manter a ordem e abrir passagem ao préstito. Ia depois um grupo de homens e rapazes com as cordas, escadas, cravos, martelos e uma placa com o título que devia encimar a cruz de Cristo. Atrás deles avançavam os dois ladrões, e por fim Jesus, com os pés descalços, coberto de sangue, inclinado sob o peso da cruz e cambaleando a cada passo, como um homem prestes a desfalecer. Repassado de suor, devorado de sede e com o peito arfante, amparava com uma das mãos a cruz às costas, e com a outra soerguia com dificuldade o longo manto que lhe embaraçava os movimentos. Os cabelos flutuavam em desalinho sob os espinhos, que lhe ensanguentavam a fronte. A sua face e a barba, maculadas de sangue, desfiguravam-no a tal ponto que ninguém o reconheceria. Seguravam-no os verdugos por cordas presas à cintura, e divertiam-se em maltratá-lo, puxando por Ele violentamente ou batendo-lhe para que apressasse o passo.

Olhai e vede se há dor semelhante à minha

Como inocente cordeiro levado ao matadouro, assim sofria Jesus aquelas indignidades, sem que lhe escapasse dos lábios um murmúrio, e no seu rosto atribulado podia qualquer um ler a mais sublime expressão de amor e resignação.

Em torno d’Ele caminhavam apinhados os seus inimigos figadais, os príncipes dos sacerdotes, os chefes do povo e aqueles fariseus que tantas vezes foram por Ele reduzidos ao silêncio, e que então se confraternizam dando rédea solta ao ódio que lhes transborda do coração. Abeiravam-se ora uns ora outros de Jesus, oprimiam-no com invectivas e zombavam das suas profecias e milagres. Fechava a marcha um destacamento de soldados, comandados por um centurião a cavalo que continha em respeito uma multidão de escravos, trabalhadores e homens da ralé do povo, os quais desde a manhã vociferavam, e agora corriam ao lugar da execução, ávidos de ver correr sangue.

O caminho que Jesus devia percorrer, pedregoso e acidentado, media cerca de mil e duzentos passos. Do monte Mória descia para a cidade baixa, tornando logo a subir um aclive bastante pronunciado, para desembocar pela porta ocidental da cidade. A crucifixão devia executar-se no Gólgota, fora dos limites da cidade. O caminho do Gólgota chama-se bem merecidamente Via Dolorosa, pois Jesus pôde dizer: “Ó vós todos que passais pelo caminho, olhai e vede se há dor semelhante à minha dor” (Jer, Lam 1,12). Mas podemos também chamá-lo caminho triunfal, pois viu passar com seu glorioso estandarte um vencedor maior que os Césares, quando subiam ao Capitólio. A humanidade não esquecerá nunca o caminho do Gólgota. De todos os pontos do globo virão os discípulos de Cristo reunir-se em Jerusalém, para seguir passo a passo o caminho que seguiu o Mestre, misturar lágrimas de amor com as gotas do seu sangue adorável e meditar nos incidentes memoráveis que assinalaram as diversas partes daquele caminho, doravante sagrado. 

Notas:

1. Jesus foi condenado por um tribunal romano, como observa São João (18, 32), a fim de se cumprir uma das suas profecias, pois anunciara aos apóstolos que seria crucificado. Os romanos crucificavam os condenados, ao passo que os judeus reprovavam tal gênero de suplício. Se a sentença fosse executada pelo Sinédrio, não seria Jesus crucificado, mas apedrejado.

2. Aquela escadaria de mármore branco, de 28 degraus, que Jesus regou com o seu sangue depois da flagelação, foi transportada para Roma por ordem de Constantino. É a Scala Santa, que se venera na Cidade Eterna. Os fiéis sobem por ela de joelhos.

Cenas da Paixão de Cristo – – Hans Memling, séc. XV. – Galeria Sabauda, Turim, Itália.

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