|Depoimentos esclarecedores no Amazonas | (continuação da pág. 10)
No dia 18 de junho estivemos em Manacapuru, cidade de quase 100 mil habitantes, a 90 km de Manaus. Manacapuru, em tupi-guarani, significa Flor matizada (que vai mudando de coloração). Através do vereador Pedro Henrique, contatamos a professora indígena Kameiri Apurinã (Selma, em português), conhecida entre as colegas por Selminha do povo indígena Apurinã.
Os Apurinã são um povo indígena brasileiro, e se autodenominam Popũkare. A maioria habita no vale do rio Purus, afluente do Amazonas. Em 1991, sua população estimada era de 2.800 pessoas. Em 2003, de acordo com a Funasa, a população cresceu e somava 4.087 almas.
Selma nos atendeu no final do expediente, na Secretaria da Educação do município de Manacapuru, onde há cinco anos é pedagoga, e agora chefe do ensino indígena. Sempre sorridente, ela acabava de chegar de uma visita a escolas de aldeias, onde faz acompanhamento pedagógico. Naquele dia só lhe fora possível visitar uma escola, devido à distância, com várias horas de barco. Nessa escola são apenas dois professores, do pré ao 5º ano. Uma irmã de nome Andrea é também pedagoga.
Muito capaz e esforçada, Selma diz ter enfrentado dificuldades para se adaptar na cidade e estudar. Mãe aos 15 anos, tem um filho de 16 anos e uma filha de 20, já casada, e dela tem três netos. Hoje Selma é professora bilíngue na comunidade. Seu primeiro marido morreu, e hoje está casada com um indígena da sua comunidade, que vive na cidade. Ele é do Alto Purus, onde vivem seus pais.
Ela acompanha o trabalho dos professores e o aprendizado dos alunos. As aulas são dadas em duas línguas, em horários diferentes — pela manhã a língua portuguesa, e à tarde só a língua materna. São oito escolas indígenas, na sua maioria apurinã. Existem cinco comunidades escolares, com 85 alunos, e o atendimento vai até o 5º ano. Quem quiser estudar mais, tem de vir para a cidade. Tudo depende da vontade do índio, pois ele não tem nenhum apoio de transporte escolar.
Até pouco tempo atrás os índios não tinham formação para lecionar. Mas, sobretudo a partir deste ano, 99% dos professores são indígenas e moram nas aldeias. Tudo é feito entre o município e o Estado, a FUNAI não entra. O município paga os professores dos dois turnos. Os indígenas ainda não possuem pessoas habilitadas para gerir uma escola, nem recursos para merenda escolar.
"Temos uma equipe no município para atender especificamente a saúde dos indígenas. Clínicos gerais, enfermeiros e microscopistas formam uma equipe para fazer uma ação mensal em cada comunidade. Os casos mais graves são trazidos para a cidade. Foi uma conquista esse atendimento diferenciado por meio da Saúde Indígena, de âmbito federal. Antes era a Funasa, hoje a responsável em coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas é a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
"Os índios se sentem bem assistidos. Produzem os próprios alimentos nas suas terras e se alimentam bem, de modo geral. Temos uma terra fértil para plantio, e o cultivo é à maneira tradicional. Na nossa região não há gente passando fome, só quem quiser."
"A reserva está demarcada, são três comunidades. Minha comunidade é nova, a primeira do município foi a Apuanã. Vou lá de canoa com motor, o canoeiro me leva na escola. Nas aldeias já há casas de alvenaria, ocas não existem mais. Morei em casa de palha, elas existiam até há pouco tempo. Na cidade o meu pai fez casa de palha quando chegou. Já há eletricidade em algumas comunidades, com motor que gera energia... quando tem gasolina. Chove muito na região.
"Algumas comunidades ainda comemoram festas tradicionais do meu povo, casamentos e batismo. Desde que haja uma gravidez, faz-se o casamento, mas precisa ser de clã diferente. Um filho meu pode se casar com a tia dele, que seria minha irmã. Um irmão meu pode se casar com minhas filhas, porque são de clãs diferentes, além disso meu irmão é homem e eu sou mulher, eu sou de um clã e meu irmão é de outro clã. Cada povo adota um costume, mas já houve uma quebra de cultura entre nós. A filha da minha irmã, se quiser casar com meu filho (primos), não pode, porque nós duas somos mulheres. Na cultura, os primos são irmãos. Meu pai é tio de minha mãe. Não se conhecem enfermidades causadas por consanguinidade.
"Já há miscigenação, tanto que sou casada com um não índio. Minha mãe lutou muito para esta quebra de valores. Eu não estava prometida para índio nenhum, e meu pai queria manter a cultura. Hoje, mesmo se quiséssemos que nossos filhos se casassem com alguém escolhido pelos pais, eles não aceitariam".
A economia tem por base a agricultura. A maioria recebe bolsa família e complementa com aquilo que planta. A mandioca para fazer farinha; feijão, melancia e frutas que tiram da natureza; pequi, tucumã, açaí, tudo isso para consumo. Como tudo é muito distante e não há transporte, trazem pouca coisa para vender na cidade. Para completar as necessidades, antes faziam artesanato, que parou um tanto.
"Estamos trabalhando muito com as atividades da escolaridade, da cultura materna, que revitalizam essas culturas. Muitos vêm para a cidade e fazem o curso superior. Minha filha concluiu o ensino médio e já dá para trabalhar na escola, porque é o nível mais elevado que a gente consegue. A língua materna que o meu pai ensinou para mim, eu passei para ela.
"Aqui em Manacapuru, fui professora pioneira nesse projeto de revitalização da língua materna, pois estava deixando de existir. Hoje temos 14 professores e cinco pedagogos formados entre os indígenas, e eu sou uma delas. Temos aqui um Núcleo Técnico Local da FUNAI, onde dois técnicos administram o município e alguns outros próximos, como Manaquiri, Miranduba, Anamã, Beruri, Caapiranga, mas a base é aqui. Na região não há mais índios isolados".
No final da entrevista, Selma enviou esta mensagem aos nossos leitores: "Só tenho a agradecer por esta oportunidade de mostrar para o mundo que aqui existem indígenas lutando para permanecer na sua cultura
Kameiri Apurinã (Selma, em português). - Foto: Nelson Barretto