|Depoimentos esclarecedores no Amazonas | (continuação)

e também para avançar e ficar de igual a igual com o não índio. Nós prezamos estudar, e somos muito agradecidos ao governo municipal por apoiar esta iniciativa nossa das escolas indígenas. Antes os não índios davam aulas para nós, mas hoje os próprios indígenas já estão atuando nesta área e na da saúde. Estamos muito felizes com isto. Temos muito a conquistar, mas aos poucos chegaremos lá".

Integração e dignidade

No final da entrevista com a Selma chegou o subsecretário da Educação do município, José Carlos Amaral. Nascido em Manaus, ele se mudou ainda criança para Manacapuru. É um entusiasta da cidade, e não consegue pensar em viver em outro lugar. Apontou Selma como representante desse segmento indígena na Secretaria de Educação.

"Temos um Departamento de educação rural e indígena, que foi criado nesta gestão. O prefeito e o secretário estão hoje em visita a uma comunidade, onde se realizam os jogos escolares. Esses jogos já vêm sendo feitos há 15 anos, mas não eram exclusivos deles. Temos dois indígenas na coordenação, qualificados para tratar com uma realidade que eles conhecem bem. Foi feito um projeto em conjunto, com regras e regulamento próprio e 10 modalidades de jogos, incluindo o futebol. Foi um passo importante, porque saiu da informalidade.

"No Amazonas não estamos andando no meio de jacarés e onças. É um lugar como outro qualquer, só com muita natureza ao redor. As estradas são os rios, no tempo das cheias fica difícil chegar a determinados lugares, mas facilita chegar em outros. Às vezes a seca é pior que a enchente, o acesso fica muito restrito. A gente vai de canoa, depois a pé, caminhando durante horas para chegar ao local.

"O rio Manacapuru e o rio Miriti são de águas pretas como o Negro, e as do Solimões são barrentas. Aqui temos também o fenômeno do encontro das duas águas de cores distintas. O do Solimões com o Manacapuru é menor, mas o efeito é igual."

Quebra do isolamento

O subsecretário esclareceu que ainda há dificuldades, mas as coisas estão começando a mudar, pois existe a boa vontade do prefeito nesse sentido.

"Antes os índios viviam isolados, por falta de ligação ou de interesse das administrações em integrar essas comunidades. Era um distanciamento recíproco. Para modificar isso, colocamos essas moças (Selma e Andrea) dentro da Secretaria, para verem também a realidade nossa. Temos várias plataformas de formação à distância, mas a maioria é presencial".

Em seguida Selma mostrou no computador fotos de um barco grande, para umas 60 pessoas; a abertura dos jogos, com os anfitriões que levaram seus alunos para lá; ticunas, apurinãs e kambebas jogando futebol.

As entrevistas da pedagoga indígena Selma e do subsecretário Amaral deixam claro o desejo dos índios de integração e desenvolvimento, mas sem perder a sua identidade. Esse processo começa por educação, saúde, habitação, esportes e comunicação. Falta uma política de estímulo à produção e ao comércio, mas há um sentimento de harmonia e cooperação. A pregação de confronto, feita pelo CIMI e as ONGs, não conseguiu conquistar o coração dos índios.

Empreendedorismo indígena no Mato Grosso

Nosso primeiro contato com o empreendedorismo indígena foi em Manaus, em julho de 2008, quando participamos da III Conferência sobre Empreendedorismo Indígena nas Américas. À época era uma ideia nova para o Brasil, mas experiência de sucesso nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. O objetivo principal daqueles dias de estudo foi abrir caminho para os índios se tornarem menos dependentes do assistencialismo do Estado, além de livrá-los das garras de ONGs.

A ideia e iniciativa dessa conferência nasceram com o Dr. Raul Gouvêa, brasileiro residente nos Estados Unidos, onde leciona na Universidade do Novo México. Estiveram presentes lideranças indígenas do Brasil e das Américas, sendo alguns deles já empreendedores.

Na sua palestra, o Professor Dr. Jonathan Taylor, pesquisador do Projeto Harvard para o Desenvolvimento Econômico do Índio norte-americano, mostrou que a pobreza dos indígenas de seu país, de modo particular dos que vivem nas reservas, durante décadas vinha preocupando os responsáveis pela definição de políticas públicas indígenas, pois todas as políticas assistencialistas haviam fracassado na tentativa de melhorar a situação dos norte-americanos indígenas. Com a implantação do empreendedorismo indígena, no entanto, alcançaram em muitas reservas um ritmo de crescimento de renda média três vezes maior que o da renda per capita dos Estados Unidos. Acrescente-se que o orçamento federal para os indígenas permaneceu igual, e em alguns casos foi mesmo diminuído. O Prof. Taylor explicou que esses índios haviam preparado um ambiente fértil para o desenvolvimento, quando os seus líderes nativos reduziram seu poder e estimularam o empreendedorismo nativo ou profissional liberal de maneira duradoura.

No Brasil, tal mentalidade ainda é incipiente, encontrando grande obstáculo na burocracia e na questão da tutela. Nos governos de Fernando Henrique e do PT, foi ainda mais agravada, pois a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) não definiu se o índio tinha ou não direito de desenvolver negócios em suas reservas. Isso dificultou para eles o estímulo e a educação de lideranças com mentalidade empreendedora. Durante aquele evento os índios tikuna do alto Solimões reclamaram que no Brasil só se falava em assistencialismo, nunca empreendedorismo.

Tempos novos no horizonte

No dia 21/5/2019, o Deputado Federal Nelson Barbudo (PSL/MT) protocolou o Projeto de Lei 3045/2019, que dispõe sobre cultivo agrícola e atividade pecuária em terras indígenas e dá outras providências. Nesse mesmo dia manifestamos ao deputado nosso desejo de conhecer a experiência dos índios Parecis, no Mato Grosso.

Poucos dias depois, encontramo-nos em Cuiabá, no gabinete do deputado estadual Silvio Fávero (PSL), com o Dep. Nelson Barbudo e algumas lideranças do Grupo de Agricultores e Produtores Indígenas. Esse grupo tinha acabado de enviar uma carta ao Presidente Bolsonaro, da qual destacamos:

"O Estatuto do Índio e sua orientação — ainda a mesma da década de 70, quando foi criado — paira sobre as nossas cabeças como uma sentença arquitetada por alguém que simplesmente ignorou a mudança da vida das pessoas com o tempo, adequando-se para melhor ou pior. No nosso caso, para pior, muito pior.

"Não queremos recontar a história, mas apenas registrar que nós povos indígenas queremos hoje, e precisamos, estar em coesão com tudo que cerca nossas vidas. Precisamos produzir muito além de simples roças tradicionais e/ou artesanatos; precisamos cuidar das matas e dos rios, da floresta, da mata atlântica, da caatinga,

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José Carlos Amaral - Foto: Nelson Barretto.

Dep. Nelson Barbudo (círculo), à sua esquerda os dois jornalistas autores desta reportagem, e lideranças indígenas. - Foto: Nelson Barretto.