| AUTODEMOLIÇÃO DA IGREJA | (continuação)
ao outro, o direito de ser ele próprio e de ser diferente” (nº 218); e, do outro lado, “um pacto cultural” que “implica também aceitar a possibilidade de ceder algo para o bem comum”, já que “ninguém será capaz de possuir toda a verdade nem satisfazer a totalidade dos seus desejos, porque uma tal pretensão levaria a querer destruir o outro, negando-lhe os seus direitos” (nº 221). Trata-se do realismo dialogante “por parte de quem pensa que deve ser fiel aos seus princípios, mas reconhecendo que o outro também tem o direito de procurar ser fiel aos dele” (idem); e permite sonhar juntos “como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos” (nº 8).
Para Francisco, isso não é sincretismo nem absorção de um pelo outro, mas uma aposta “na resolução num plano superior que preserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste” (nº 245), que parece uma forma particular de dialética hegeliana em que a síntese permanece como horizonte inatingível.
É fácil perceber que tudo isso não se coaduna com o ensinamento com que São Pio X condenou o movimento Le Sillon, por ter-se distanciado da doutrina católica: “O mesmo acontece com a noção da fraternidade, cuja base eles colocam no amor dos interesses comuns, ou, além de todas as filosofias e de todas as religiões, na simples noção de humanidade, englobando assim no mesmo amor e numa igual tolerância todos os homens com todas as suas misérias, tanto as intelectuais e morais quanto as físicas e temporais. Ora, a doutrina católica nos ensina que o primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por sinceras que sejam, nem na indiferença teórica ou prática pelo erro ou o vício em que vemos mergulhados nossos irmãos, mas no zelo pela sua restauração intelectual e moral, não menos que pelo seu bem-estar material” (§ 23).
O relativismo filosófico e o interconfessionalismo religioso de Fratelli Tutti se estendem igualmente às relações entre a Igreja Católica e as outras religiões. Na foto o Papa Francisco com a líder da igreja luterana sueca, na sua visita a esse país.
O relativismo filosófico e o interconfessionalismo religioso de Fratelli Tutti se estendem igualmente às relações entre a Igreja Católica e as outras religiões. Visto que consideram “cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus”, as várias religiões “oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade” (nº 271). Neste aspecto, todas as religiões seriam iguais: “A partir da nossa experiência de fé e da sabedoria que se vem acumulando ao longo dos séculos e aprendendo também das nossas inúmeras fraquezas e quedas, como crentes das diversas religiões sabemos que tornar Deus presente é um bem para as nossas sociedades” (nº 274).
Também a Bíblia se enquadra nesta equiparação, porque para Francisco todos os “textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora” (nº 275). E mais adiante acrescenta: “Outros bebem doutras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo” (nº 277).
Ademais, Deus não tem opção preferencial pelos batizados em geral (que são os únicos verdadeiros filhos de Deus), nem pelos fiéis católicos, membros do seu Corpo místico, em particular, mas antes “o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor” (nº 281).
Desses pressupostos religiosos e filosóficos — que seriam um denominador comum aceitável por todos os homens — a encíclica Fratelli Tutti extrai principalmente duas consequências práticas, que darão origem a um mal-estar que alargará ainda mais a brecha entre o Papa Francisco e uma grande parte dos fiéis católicos. Trata-se de: 1) a promoção da imigração como condição para uma sociedade aberta; 2) um governo mundial para a solução dos problemas globais.
A encíclica condiciona a soberania das nações sobre seu próprio território: “cada país é também do estrangeiro, já que os bens dum território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha doutro lugar”.
Para Francisco, “o amor que se estende para além das fronteiras está na base daquilo que chamamos “amizade social” em cada cidade ou em cada país”, condição para “uma verdadeira abertura universal” (nº 99). Tal universalismo não se confunde com a globalização desses últimos anos, que promove “o domínio homogêneo, uniforme e padronizado duma única forma cultural imperante” (nº 144), mas ele constrói uma sociedade poliédrica “onde ao mesmo tempo que cada um é respeitado no seu valor, ‘o todo é mais que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas’” (nº 145). Como no caso do diálogo, para o Papa “uma sã abertura nunca ameaça a identidade, porque, ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia nem mera repetição, mas integra as novidades segundo modalidades próprias. Isto provoca o nascimento duma nova síntese que, em última análise, beneficia a todos” (nº 148).
Para isso é preciso “pensar e gerar um mundo aberto” (é o título do capítulo 3 da encíclica), onde vigorem “direitos sem fronteiras” (é o subtítulo de uma seção), pois “ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra” (nº 121). Visto que a destinação universal dos bens da terra não só transforma a propriedade privada numa mera função social — “quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos” (nº 122) — mas também condiciona a soberania das nações sobre seu próprio território, pela qual “cada país é também do estrangeiro, já que os bens dum território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha doutro lugar” (nº 124).
Na realidade, os bens de qualquer país devem estar à disposição não só dos estrangeiros que sofrem extrema necessidade, mas também dos que querem apenas melhorar sua situação. Porque “é nosso dever respeitar o direito que tem todo o ser humano de encontrar um lugar onde possa não apenas satisfazer as necessidades básicas dele e da sua família, mas também realizar-se plenamente como pessoa” (nº 129). Isso significaria que qualquer pessoa que se considere um novo Picasso ou um novo Einstein teria o direito de exigir sua mudança para Paris ou Massachusetts, a fim de desenvolver plenamente os seus talentos artísticos ou científicos na Écôle des Beaux Arts ou no MIT!
Hoje muitíssimos emigram apenas para buscar um futuro melhor nos países ricos. Nesta nova encíclica — ao contrário do que alhures já disse de passagem — o Papa Francisco não se preocupa com o trauma que isso provoca no país de acolhida, nem com o direito de cada país em regular o fenômeno migratório de acordo com as suas respectivas possibilidades. Ele se limita a dizer que “a chegada de pessoas diferentes, que provêm dum contexto vital e cultural distinto, transforma-se num dom” e “numa oportunidade de enriquecimento e desenvolvimento humano integral para todos” (nº 133). E insiste: “Se forem ajudados a integrar-se, os imigrantes são uma bênção, uma riqueza e um novo dom, que convida a sociedade a crescer” (nº 135).
Não há referência ao risco de imigração massiva e desestabilizadora, como é o caso atualmente na Europa,