| MATÉRIA DE CAPA | (continuação)

caribenhas, então prósperas e tranquilas, sofreram a fundo os abalos da Revolução Francesa. Os escravos e colonos se levantaram contra os seus senhores e patrões, com o intuito de suprimir a classe deles, da mesma forma como na metrópole fora supressa a nobreza.

Entre as famílias prósperas de São Domingos figurava a de Jean Bérard du Pithon; e entre os escravos desta, Pierre Toussaint. Era um negro de apenas 21 anos, quando os abalos da Revolução levaram a família Pithon a refugiar-se em Nova York, e para lá ele a seguiu. Começa então a sua história exemplar.

Num primeiro momento, essa família pertencente à nobreza viveu folgadamente em Nova York, com as economias que levara consigo. Nisso agiram como muitos dos emigrados franceses que partiram para o Exterior, depois da queda da Bastilha (1789), levando as quantias à sua disposição. Tinham a esperança de que a revolução demoraria pouco. Também a família Bérard du Pithon esperava voltar prontamente a São Domingos, julgando que a revolução seria efêmera. Uns e outros se enganaram; e, esgotados os recursos financeiros, viram-se forçados a reduzir consideravelmente o nível de sua representação social, sentindo-se na contingência de subsistir por meio de empregos incompatíveis com sua condição.

A “mão da Providência” por meio de Pierre Toussaint

Foi nessa triste conjuntura que, após 11 anos de um feliz consórcio, faleceu em 1791 o Sr. Jean Bérard. A aristocrática viúva Marie Elisabeth Bossard Roudanes, com saúde precária, teve que enfrentar sozinha as novas condições adversas. Mas a mão da Providência velava por ela.

A “mão da Providência” é uma formosa metáfora, para designar o desvelo com que Deus acompanha a existência de suas criaturas e as socorre. Habitualmente a iconografia a representa como uma mão benfazeja e branca, mas no caso concreto desta viúva branca a “mão da Providência” era a do negro Pierre Toussaint.

Esse modesto escravo poderia facilmente esquivar-se do jugo dessa família. Pelo contrário, procedeu em relação a ela com uma dedicação e uma delicadeza de sentimentos que poucos filhos têm até mesmo em relação à própria mãe. Seguindo um programa abnegado, cujo cumprimento levou até o fim, ele deliberou trabalhar para que sua senhora não perdesse em nada as condições sociais e o conforto de vida correspondentes à educação que recebera.

A tarefa desse hábil cabeleireiro junto às senhoras da alta sociedade não se limitava aos cabelos. Durante o serviço, conversavam sobre vários assuntos, e em tudo ele respondia com acerto, fazia comentários judiciosos, e muitas passaram a tomá-lo como conselheiro.

Nova York era ainda uma cidade pequena, mas já rica, e ele se habilitou a exercer ali o ofício de cabeleireiro das senhoras da alta sociedade. Imaginoso e dotado de bom gosto, inventava formas variadas de penteado, muito do agrado das suas opulentas clientes, e estas lhe pagavam a bom preço o serviço. Em pouco tempo tornou-se disputado pelas senhoras ricas de Nova York, obtendo assim os recursos necessários para manter sua ama.

Com muita habilidade, Toussaint conseguiu ocultar de sua senhora a fonte dos recursos com que ela vivia. E o fazia sem mentir, pois era muito veraz. Católico fervoroso, diariamente assistia à Santa Missa e evitava qualquer ação que transgredisse os Mandamentos da Lei de Deus. Era visto matinalmente na Igreja de São Pedro (Rua Barclay), onde rezava o seu rosário, e só depois disto começava suas atividades profissionais.

Dedicação e responsabilidades que aumentam

Com as condições criadas por Toussaint, lentamente se foi restabelecendo também a saúde da Sra. Bérard, e ela pôde reabrir seus salões. Depois da sua faina diária, à noite ele se transformava espontaneamente em copeiro. Eximiamente trajado, com maneiras muito gentis e agradáveis, servia todos os convidados.

Entrementes, o refugiado francês Gabriel Nicolas, hábil músico cujo talento lhe proporcionara vida abastada, obteve a mão da viúva Bérard, que se tornou assim Sra. Nicolas. Aliviada por algum tempo com o novo casamento, o infortúnio voltou a visitá-la. Em decorrência de uma abstrusa legislação, vários teatros novaiorquinos foram fechados, com o que desapareceu a principal fonte de recursos do marido. Fiel à sua senhora, no entanto, Toussaint estendeu a ele o seu amparo.

A tarefa desse hábil cabeleireiro junto às senhoras da alta sociedade não se limitava aos cabelos. Durante o serviço, conversavam sobre vários assuntos, e em tudo ele respondia com acerto, fazia comentários judiciosos, e muitas passaram a tomá-lo como conselheiro, pedindo-lhe a opinião sobre problemas pessoais delicados. Algumas chegavam a ir à residência dele quando, surpreendidas por algum problema novo, precisavam receber com urgência uma solução judiciosa. Desse modo ele exercia uma influência harmonizante e benfazeja.

Riqueza de sentimentos na vida de Toussaint

A riqueza de sentimentos de Toussaint chega quase ao inimaginável, e a seguir veremos mais alguns exemplos.

O trabalho possibilitava-lhe acumular recursos, e poderia adquirir com eles sua própria liberdade. No entanto, sempre modelar na sua abnegação, preferiu continuar na condição de escravo e comprar a liberdade da própria irmã, que com ele viera de São Domingos. Só adquiriu a liberdade muito depois, em 1807, aos 41 anos. Em julho daquele ano a Sra. Nicolas, pouco antes de morrer, fez questão de, em comum acordo com o esposo, conceder-lhe a alforria.

Uma parte da família Bérard se tinha dispersado na Europa, com a Revolução Francesa. Depois, quando cessou o Terror e os emigrados começaram a voltar, Toussaint envidou esforços para saber se esses entes queridos sobreviviam, onde e como. Seu contentamento foi enorme quando, por meio de uma senhora francesa de passagem por Nova York, a quem ele fora atender, tomou conhecimento de que Aurora Bérard, irmã de seu antigo senhor e sua madrinha de batismo, não havia morrido, como supunha, mas vivia em Paris. Ela lhe escreveu uma primeira carta, tão logo soube suas notícias, e ele respondeu enviando-lhe junto uma dúzia de lenços de Madras, altamente apreciados pelas damas francesas da época. Foi longa a correspondência dele com a madrinha, e só cessou com a morte desta em 1834. O primogênito do casal Bérard, que também vivia em Paris, foi objeto dos desvelos epistolares de Toussaint.

Mas a vida de todos os homens é sacudida por tufões, que não faltaram na existência de Toussaint. Um deles foi uma brusca mudança na moda dos penteados femininos, que se tornaram muito mais simples, dispensando os seus serviços profissionais. Isto poderia ter representado para Toussaint uma completa derrocada. Contudo, muito habilidoso e jeitoso, ele não se deixou abater. Criou logo um escritório de empregos para domésticas. E a sua influência pessoal era tão grande, que as candidatas a empregos e as casas à procura de empregadas afluíram em torno dele. Com este novo

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