| MATÉRIA DE CAPA | (continuação)
trabalho, que exerceu com o mesmo primor dedicado ao primeiro, prosseguiu mantendo a si mesmo e à sua ama. Mesmo prestando ainda seus serviços ao Sr. Nicolas, manteve também o seu próprio lar, pois se casou em 1811 e foi marido exemplar. A morte da esposa em 1851, dois anos antes dele, foi um golpe do qual nunca se refez inteiramente. A partir dessa ocasião sua saúde começou a decair.
Estes fatos são uma verdadeira epopeia de dedicação da alma católica aos familiares e aos patrões. Epopeia realizada de modo tão dedicado, e ao mesmo tempo tão brilhante, que a torna um verdadeiro romance, muito inocente e muito atraente. Mas a vida dele contém muito mais elementos próprios a nos atrair a atenção e servir de tema para altas reflexões de caráter moral. Tudo isto o leitor encontrará, lendo detidamente esta biografia editada pela Western Hemisphere Society, e refletindo sobre o seu significado moral. Sinceramente lhe aconselhamos que o faça.
Apresenta-se também aos nossos olhos uma reflexão capital, que é a antítese fulgurante entre Toussaint e o igualitarismo radical moderno, do qual o comunismo foi uma característica expressão. Tendo nascido na dura condição de escravo, atingido ainda muito jovem pelas labaredas de uma revolução social que o incitava a revoltar-se contra seus donos, ele teria tido fáceis meios para se libertar desse jugo. Bastar-lhe-ia ter aderido ao movimento revolucionário, chefiado com êxito por um homônimo seu, Toussaint l’Ouverture. Foi este uma prefigura do tão censurável Fidel Castro, que conduziu a revolução social e política em Cuba até os últimos extremos. Depois de décadas de uma cruel ditadura, ainda mantém na miséria e sob os ferros de cativeiro a população da Ilha [este texto é de 1992], outrora evangelizada pelo grande Santo Antônio Maria Claret e merecidamente qualificada, por suas belezas naturais, como a Pérola das Antilhas.
O comunismo é ateu, mas Toussaint era modelo de homem católico e piedoso, fiel a toda a doutrina católica, apostólica, romana, e cumprindo fervorosamente os Mandamentos.
A Revolução comunista é fundamentalmente igualitária e prega o ódio contra todos os superiores, mas Toussaint foi paradigma do homem de espírito hierárquico, amou seus superiores segundo preceitua o IV Mandamento: “Honrar pai e mãe”.
O brado de revolta do comunismo poderia perfeitamente condensar-se na exclamação de revolta de Satanás – “Non serviam” [Não servirei] – mas a vida de Toussaint resume-se nesta atitude digna do inimigo de Satanás, São Miguel Arcanjo: Ele serviu.
Toussaint serviu aos seus familiares, serviu aos seus patrões, serviu aos seus clientes, serviu a todos a quem pôde fazer bem, e o fez larga e generosamente. A quem menos ele serviu foi a si próprio. Seu espírito abnegado e generoso era bem exatamente o contrário do feroz egoísmo que Marx procurou insuflar em cada um de seus seguidores.
Nesta época, Toussaint se apresenta como um homem que, tendo embora poucas letras, penetrava muito bem o espírito da Igreja Católica: diante das desigualdades sociais, aceitava a doutrina de São Tomás de Aquino; a qual, muito resumidamente, afirma que as desigualdades harmônicas e ponderadas não são um mal. Pelo contrário, são um bem. São uma condição de ordem, nesta Terra como no Céu. O grande Doutor da Igreja ensina que, ao proceder à criação do universo, Deus era necessariamente movido pelo propósito de fazer desse universo um reflexo de suas próprias perfeições. Porém, sendo as perfeições divinas múltiplas e infinitas, seria impossível haver uma só criatura refletindo todas essas perfeições ao mesmo tempo. Por esta razão Ele deu o ser a várias criaturas, cada qual incumbida de refletir aspectos de sua perfeição.
Nas criaturas, as perfeições comportam vários graus, e por meio de perfeições graduadas as criaturas refletem melhor a perfeição absoluta que é Deus. Nessas condições, os homens — e também os Anjos, aliás — foram criados desiguais, pois a desigualdade é uma condição para que possam refletir a perfeição de Deus. Afirma o Doutor Angélico, São Tomás de Aquino, na Suma Teológica:
“Nos seres naturais, vemos que as espécies são ordenadas de acordo com graus de perfeição: assim, os compostos são mais perfeitos do que os elementos; as plantas mais perfeitas que os minerais; os animais, mais do que as plantas; os homens, mais que os outros animais; e em cada uma dessas classes encontram-se espécies mais perfeitas do que as outras. Sendo, pois, a divina sabedoria a causa da distinção das coisas para a perfeição do universo, também será causa da sua desigualdade. Pois não seria perfeito o universo se nas coisas só se encontrasse um grau de bondade” (Suma Teológica I, q. 47, a. 2).
Assim, as criaturas são necessariamente múltiplas. E não apenas múltiplas, mas também necessariamente desiguais. É essa a doutrina do Santo Doutor:
“Muitos bens finitos são melhores do que um só, pois eles teriam o que tem este, e ainda mais. Ora, é finita a bondade de toda criatura, pois é deficitária em relação à infinita bondade de Deus. Logo, é mais perfeito o universo havendo muitas criaturas, do que se houvesse um único grau delas. Ao sumo Bem toca fazer o que é melhor. Logo, era-Lhe conveniente fazer muitos graus de criaturas.
“Ademais, a bondade da espécie excede a do indivíduo, como o formal excede o material; logo, mais acrescenta à bondade do universo a multiplicidade das espécies, do que a dos indivíduos de uma mesma espécie. Por isso, à perfeição do universo contribui não só haver muitos indivíduos, mas haver diferentes espécies, e por conseguinte, diferentes graus de coisas” (Suma contra os gentios, Livro II, cap. 45).
São Miguel Arcanjo resistiu ao brado de revolta de Satanás e proclamou a santidade e perfeição de um universo fundamentalmente desigual, como é o dos Anjos.
Toussaint l’Ouverture, chefe revolucionário do Haiti na época em que Pierre Toussaint ainda era escravo.
Os anjos rebeldes se levantaram contra Deus depois de terem cobiçado a igualdade absoluta, no momento mesmo em que o Criador lhes revelou a Encarnação do Verbo. Ficou então clara para eles a superioridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que além de Deus seria também Homem, uma criatura. Na posição oposta, São Miguel Arcanjo resistiu ao brado de revolta de Satanás e proclamou a santidade e perfeição de um universo fundamentalmente desigual, como é o dos Anjos. Intrinsecamente, portanto, a desigualdade não é um mal. Ela é um bem. E a igualdade absoluta, pelo contrário, é um mal.
Profunda e admirável lição para os homens contemporâneos que, em sua grande maioria, tantas vezes