| MATÉRIA DE CAPA | (continuação)
são penetrados pelo espírito da igualdade completa, ainda mesmo quando não a pratiquem em suas ações. E que, tantas e tantas vezes, se revoltam contra aqueles a quem devem amor, respeito e obediência: seus pais, mestres, patrões e demais pessoas constituídas em autoridade nas esferas política, social e econômica.
Bem entendido, essa apologia da desigualdade não importa em elogiar todas as desigualdades, devemos recusar as injustas. No que diz respeito aos direitos inerentes à natureza humana, e que tocam a todo homem como homem, todos são iguais, pois todos são homens. Mas, na medida em que os homens são acidentalmente desiguais, é preciso respeitar essas desigualdades, amá-las e servi-las. Essa é a grande lição que recebemos de Pierre Toussaint, e cuja meditação e imitação recomendamos a todos os leitores da presente obra.
Em nosso continente, em que tantas vezes as lutas raciais têm trazido discórdias e divisões lamentáveis, esse grande exemplo, que ajuda os católicos a reverenciar um negro tão digno de todo o seu respeito e amor, contribui para apagar as discórdias e as desconfianças mútuas entre as raças, e a consolidar assim a concórdia entre todos os americanos.
Em suma, a vida de Toussaint foi um reflexo remoto, mas luminoso, do preceito enunciado por São Pedro, que mandava aos escravos de seu tempo obedecerem aos seus senhores, não só quando dignos de respeito e afeto – como seria o caso da Sra. Bérard – mas até quando têm caráter difícil: “Servi, subditi estote in omni timore dominis, non tantum bonis et modestis, sed etiam dyscolis” (1 Pt 2, 18).
Sepultura de Pierre Toussaint na cripta da Catedral de São Patrício, em Nova York
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Plinio Corrêa de Oliveira*
Negros livres, na Ilha de São Domingos, 1770 – Agostino Brunias (1728 - 1796). Coleção Yale Center for British Art, New Haven, Connecticut (EUA).
A raça negra certamente foi beneficiada pelo fato de missionários católicos exercerem na África seu apostolado e terem convertido à verdadeira Fé muitas pessoas. Também o deslumbramento produzido pela civilização ocidental levou número considerável de africanos a abandonar hábitos milenares censuráveis e adotar estilo de vida menos distante de uma conversão.
Poder-se-ia fazer poeticamente a seguinte pergunta: no conjunto das flores que Deus criou, pode-se conceber uma flor preta? Que relação ela teria com as harmonias do universo?
Alguns pequenos fatos ocorridos em minha vida, mas com significado simbólico, ilustram o encanto que se pode discernir na cor preta e na raça negra.
Certa vez, passeando de automóvel em Paris, atravessei alguns bairros periféricos e encontrei numa loja, exposto numa vitrine, um vaso com tulipas. O bonito e pitoresco vaso — com aquela nota picante que só os franceses sabem dar — continha uma tulipa negra, e em torno dela tulipas de vermelho cor de sangue, de amarelo próximo a dourado e brancas. O conjunto formava uma policromia em que a cor preta era a nota firme, dando encanto a todo o resto. Isso fez-me lembrar da raça negra.
Não posso me esquecer também da noite que, numa de minhas viagens à Europa, tive de passar em Dakar (capital do Senegal), devido à escala do avião. Minha grande recompensa foi ver os negros. Dakar é uma grande cidade. Sob influência da França, modelou-se muito, sem deixar de ser uma grande cidade negra.
Fui visitar um parque, ao lado de companheiros de viagem. Observando certo movimento repentino das pessoas, percebi que uma celebridade estava chegando. Realmente, uma mocinha preta como ébano, de uns 18 a 20 anos, portanto na flor de sua juventude, vinha cercada por um grupo de outros negros. Correspondia ao que poderia ser uma filha ou sobrinha do Bem-aventurado Pierre Toussaint.
Estava vestida de tal modo, que espero nunca me esquecer. Um cor-de-rosa muito mimoso, muito leve, com panejamentos abundantes e um turbante da mesma cor. Portava também miçangas com vidros coloridos, que ela sacudia – um modo indireto de chamar a atenção. Era um “livro” africano com encadernação francesa...
A moça tinha aprendido maintien [atitude ereta do tronco e da cabeça]. Seus modos não eram altivos, mas dignos e distintos, com desembaraço. Seu modo de sorrir afável, mas mantendo distância, pareceu-me bem moralizado. Em torno de si, mantinha uma atmosfera de gracejo leve e inocente, como uma brisa vinda do mar.
Prestei atenção nos outros negros que estavam andando por ali. Eram altos, bem constituídos e com fisionomia séria. Portavam na cabeça um chapeuzinho em forma de cone truncado, chamado fez. Eram de um vermelho escuro, alguns deles ostentando no alto um pompom preto.
Os senegaleses usavam duas peças de roupa: túnicas de cores diferentes, muito discretas, que iam do alto do pescoço até as plantas dos pés; e por cima delas uma espécie de colete sem mangas, como cobertura para o tronco, que não era fechada na frente e tinha aberturas bem grandes para deixar passar os braços. Toda essa indumentária comunicava-lhes uma atitude evocando um tanto a de um professor catedrático de uma grande universidade, como também a de janízaros.**
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Isto posto, e aproximando essas imagens de muitas outras semelhantes que admirei ao longo da vida, o que podemos concluir sobre a raça negra? Em certas circunstâncias e ocasiões ela manifesta grande capacidade de expressão. Não é tanto a expressão da palavra, mas sim do porte, do movimento, do gesto, do riso e da compenetração, que lhe dá um poder próprio a causar inveja a muitos povos brancos. Eu seria tentado a dizer que causaria inveja a todos, mas excetuo de boa vontade os que queiram se excetuar.