| AUTODEMOLIÇÃO DA IGREJA |

Spiritus Domini no contexto da aversão do Papa Francisco ao ‘clericalismo’

José Antonio Ureta

Em maio de 2017, Abigail Eltzroth foi “ordenada” (na Carolina do Norte - EUA) “sacerdote católico” por um grupo dissidente da Igreja autodenominado Associação de Católicos romanos de mulheres sacerdotes. Evidentemente não tem validade nenhuma, mas indica a direção para onde se quer levar o feminismo dentro da Igreja verdadeira.

Com o motu proprio Spiritus Domini, de 10 de janeiro último, o Papa Francisco modificou o primeiro parágrafo do cânon 230 do Código de Direito Canônico, permitindo o acesso das mulheres aos ministérios do Leitorado e Acolitado, até agora reservados de modo permanente e institucional aos homens. Na realidade, por uma derrogação pontual prevista no terceiro parágrafo do mesmo cânon, as mulheres já desempenhavam amplamente essas funções no altar há muitas décadas.

Algumas católicas feministas, como Luceta Scaraffia, ex-diretora do suplemento feminino de L’Osservatore Romano, deploraram o fato como subterfúgio para não aceitar as reivindicações do diaconato feminino. Para ela, “nenhuma mulher pode se alegrar com este motu uma verdadeira desilusão”.1 E Paola Cavallari, membro da Coordenação italiana de teólogas, acrescenta que o motu proprio parece “uma iniciativa inspirada no ditado do Príncipe Salinas, na novela ‘O Leopardo’: mudar algo para que tudo continue a mesma coisa”.2

Outras católicas feministas, pelo contrário, viram no documento “uma pequena mudança, com grandes consequências eclesiais”. Foi o caso de Silvia Martínez Cano, professora da Pontifícia Universidade de Comillas, num artigo no portal espanhol Religión Digital: “Esta mudança é importante, sobretudo por aquilo que não é dito no motu proprio, mas fica implícito nele, porque afeta o terceiro parágrafo do cânon [n° 230], que as mulheres possam suprir o ministro nas suas funções, como exercer o ministério da palavra, presidir algumas liturgias, administrar o batismo e dar a comunhão sem que alguns fiéis mudem de fila pelo fato de recebê-la de uma mulher”.3

Mesmo entusiasmo da parte de Isabelle Roy, membro das Comunidades de Vida Cristã, ligadas aos jesuítas: “A decisão do papa abre uma brecha, coloca um marco para outras possibilidades. Nos hospitais, nos funerais, em suma, onde não há um sacerdote, leigos já comentam o Evangelho. Por que não reconhecê-lo de maneira institucional?”.4

A estrutura da Igreja é alicerçada no sacramento da Ordem

O teólogo Andrea Grillo, professor de Teologia Sacramental no Ateneu Pontifício Santo Anselmo, de Roma, considera ‘histórica’ a decisão papal. Indo além da mera questão do diaconato feminino, focalizada pela imprensa, Grillo sublinha que o último concílio permitiu “repensar a ‘Ordem Sagrada’”, pelo que “a corresponsabilidade dos ‘não clérigos’ na vida da Igreja aparece agora claramente delineada” e “assumida com decisão”. “Se a categoria de ‘clérigo’ permanece ligada, por enquanto integralmente, ao sexo masculino — não excluindo um ulterior aprofundamento sobre o diaconato — a partir de agora os não clérigos corresponsáveis são concebidos sem diferença de gênero” e a Igreja se evidencia como “comunidade sacerdotal”.5

O fato de Francisco ter escolhido a festa do Batismo de Nosso Senhor para assinar o motu proprio e de escolher Spiritus Domini como título não podem ser vistos como mera coincidência.

De um lado, afirma o documento, “nestes últimos anos, alcançou-se um desenvolvimento doutrinário que evidenciou como determinados ministérios instituídos pela Igreja têm como fundamento a condição comum de batizado e o sacerdócio real recebido no Sacramento do Batismo; eles são essencialmente distintos do ministério ordenado, recebido com o Sacramento da Ordem”.

De outro lado, enfatiza que é o Espírito do Senhor

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