Em 1972, com a promulgação do motu próprio Ministeria Quaedam, suprimindo as ordens menores e substituindo-as por dois novos ministérios litúrgicos reservados aos homens — o Leitorado e o Acolitado —, Paulo VI canonizou esse abandono da exclusividade do vocábulo ‘ministério’ às funções dos clérigos. “Na disciplina antiga, comentou o Pe. Rincón-Pérez, ditos ministérios eram reservados ao Ordo clericorum, tendo em conta que o conceito de clérigo era mais amplo que aquele de ministro sagrado [de fato, a clericatura começava com a tonsura, antes de qualquer ordenação]. Ao ser restrito o conceito de clérigo — equivalente a ministro sagrado [portanto, a partir do diaconato] — e esses ministérios [do Leitorado e do Acolitado] serem confiados a varões leigos, é obvio que se produz uma ‘desclericalização’ de tais ministérios; mas ao mesmo tempo produz-se a agregação do leigo à organização eclesiástica”.14
Paulo VI voltou à carga na Constituição Apostólica Evangelii Nuntiandi, texto favorito de Francisco, dedicando toda uma seção aos ‘ministérios diversificados’ dos leigos, na qual afirma que “a Igreja reconhece também o lugar de ministérios não-ordenados, e que são aptos para assegurar um especial serviço da mesma Igreja”.15
Mais tarde o novo Código de Direito Canônico deu uma base jurídica a esse statu quo pós-conciliar, consagrando o conceito de ‘ministérios instituídos’ (também chamados ‘ministérios laicais’) no seu cânon 230, que o Papa Bergoglio acaba de reformar para incluir neles as mulheres.
O Sínodo dos Bispos de 1987, que foi consagrado ao apostolado dos leigos, culminou com a exortação pós-sinodal Christifideles laici. Nela o Papa João Paulo II reconheceu que na assembleia tinham sido formulados “pareceres críticos sobre o uso indiscriminado do termo ‘ministério’, a confusão e o nivelamento entre sacerdócio comum e sacerdócio ministerial, [...] a ‘clericalização’ dos fiéis leigos e o risco de se criar de fato uma estrutura eclesial de serviço, paralela à fundada no sacramento da Ordem”.16
Dez anos mais tarde, ante o florescimento desordenado e abusivo de todo tipo de ‘ministérios laicais’, a Santa Sé publicou uma Instrução sobre algumas questões acerca da colaboração dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes, assinada pelos cardeais responsáveis de oito dicastérios romanos. Tal Instrução reiterou o ensino tradicional de que “o exercício do múnus docendi, sanctificandi et regendi por parte do ministro ordenado constitui a substância do ministério pastoral”; e de que “o que constitui o ministério não é a tarefa, mas a ordenação sacramental”.17
Essas advertências não serviram muito, pois apenas dois anos mais tarde a CNBB publicou o documento Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, aprovado na 37ª Assembleia Geral da entidade. Após diluir o ministério sagrado numa lista ascendente de ministérios — ‘reconhecidos’, ‘confiados’, ‘instituídos’ e, finalmente, ‘ordenados’ —, acrescenta que “o ministério ordenado, numa eclesiologia de totalidade e numa Igreja toda ministerial, não detém o monopólio da ministerialidade da Igreja”, e que “seu carisma específico é o da presidência da comunidade e, portanto, da animação, coordenação e — com a indispensável participação ativa e adulta de toda a comunidade — do discernimento final dos carismas”.18
É difícil imaginar uma fórmula mais redutiva da autoridade de um pastor junto ao seu rebanho. Ela corresponde ao modelo das comunidades de base da Teologia da Libertação, nas quais, segundo Leonardo Boff, o poder é uma “função da comunidade e não de uma pessoa”, pelo que elas rejeitam o monopólio do poder “que implica desapropriação em benefício de uma elite”, e afirmam, pelo contrário, que “toda a comunidade é ministerial, não apenas alguns membros”.19 Nessas comunidades de base o sacerdote goza apenas do ‘ministério da unidade’, ou seja, “um carisma específico com a função de ser o princípio de unidade entre todos os carismas”.20
Não muito diferente é a linguagem do Papa Francisco na sua carta de acompanhamento do motu próprio Spiritus Domini, dirigida ao Cardeal Ladaria. Segundo ele, numa melhor configuração dos ministérios laicais e na redescoberta do ‘sentido de comunhão’ que caracteriza a Igreja, “a sinergia frutuosa resultante da ordenação mútua do sacerdócio ordenado e do sacerdócio batismal pode encontrar uma melhor tradução”.
Uma ‘reciprocidade’ que é chamada a refluir no serviço ao mundo “que alarga os horizontes da missão da Igreja, impedindo-a de ser encerrada em lógicas estéreis destinadas sobretudo a reivindicar espaços de poder, e ajudando-a a experimentar-se como uma comunidade espiritual que ‘caminha juntamente com toda a humanidade, participa da mesma sorte terrena do mundo’ (GS, nº 40)”.
Essa nova eclesiologia comunitária e anti-hierárquica é o que explica, de um lado, a insistência do Papa Francisco na ‘sinodalidade’; e de outro seus contínuos ataques ao que ele chama de ‘clericalismo’ dos eclesiásticos formados segundo a doutrina tradicional, que não é senão a consciência da própria dignidade e da superioridade ontológica em relação aos leigos, por causa de sua conformação com Cristo sacerdote e inserção na Hierarquia da Igreja.
A abertura dos ministérios instituídos de Leitor e Acólito às mulheres, consagrada por Spiritus Domini, não é apenas uma resposta “aos desafios de cada época, em obediência à Revelação”, como pretende Francisco em sua carta ao Cardeal Ladaria, mas implica numa real “superação da doutrina anterior”, ou seja, numa ruptura com ela. Ainda que o negue.